O que aconteceu no domingo, 2 de outubro, na Colômbia, depois dos resultados da consulta plebiscitária sobre o Acordo de Paz entre o Governo Nacional e as FARC, sem dúvida provoca múltiplas reflexões, análises e, é claro, debates. Depois da confusão, frustração e tristeza produzidas pela vitória do “não”, os promotores do “sim” no plebiscito são os mais diretamente convocados a realizar este tipo de exercício. Foram eles que, com maior determinação e dedicação, destacaram a ideia de futuro para o país, uma vez que os Acordos foram legitimados popularmente. Essas reflexões certamente passarão por um balanço do que aconteceu, dos erros cometidos, das responsabilidades políticas e das possibilidades que se abrem no cenário (novo e impensável) do triunfo do “não” (uma espécie de releitura do futuro). Aqui estou interessado em destacar uma reflexão com o interesse de contribuir para o debate e a crítica.
Fiquei surpreso ao ouvir a tese de Raúl Zibechi apresentada em um evento acadêmico no México, segundo a qual para os movimentos populares e em geral para as resistências na América Latina não representa nenhum interesse nem deve ser motivo de preocupação participar ou não participar dos processos político-eleitorais, já que o que conta é o próprio poder que estas múltiplas e singulares expressões de resistência contêm, apesar de sua notável dispersão e debilidade. A tese baseia-se na avaliação política de Zibechi sobre o poder dos próprios movimentos de resistência, que é reforçado e complementado pela perda do poder estatal, minado pela globalização e que já não decide praticamente nada. A tese já havia sido lida em vários de seus textos e artigos que circulam profusamente em livrarias e centros acadêmicos latino-americanos, especialmente no sul, que o posicionaram como uma das vozes críticas mais autoritárias dos movimentos de esquerda e populares da América Latina, juntamente com outros autores que, com nuances diferentes, também compartilham essas abordagens. Em torno dele aglutina uma das mais importantes controvérsias contemporâneas entre os intelectuais de esquerda da América Latina.
Esta não é a ocasião para fazer uma reflexão crítica sobre o assunto. Refiro-me agora aos resultados de 2 de Outubro, uma vez que nenhuma outra tese desta corrente de pensamento latino-americano contrasta tão negativamente com a realidade como esta, para não dizer com a realidade de vários países da região, mas com a realidade da Colômbia. Isso significa que dois terços do eleitorado se absteve de participar da consulta plebiscitária que, segundo todos os analistas, definiu o futuro histórico e político do país, não apenas o futuro da atual geração de colombianos, mas de duas ou três gerações futuras. Ainda mais contrastante: dos 38% das sufragistas, apenas os 20% que representam a participação eleitoral do “não” decidiram o destino dos acordos de paz. Desta forma, pode-se dizer que uma minoria absoluta revogou o poder de decisão sobre o destino do país, ou seja, sobre o destino de 48 milhões de colombianos.
Não sei se esses 62% dos abstentionistas ouviram Zibechi ou leram seus textos, é bem provável que não tenham. Não sei se esses 62% de abstentionistas ouviram Zibechi ou leram seus textos, é bem provável que não tenham lido seus textos. Não sei se esses 62% de abstentionistas ouviram Zibechi ou leram seus textos, é bem provável que não. O certo é que esta abstenção política contribuiu vigorosamente para o bloqueio de uma das poucas oportunidades políticas que tivemos na Colômbia para fechar um longo e caro ciclo de guerra e abrir um novo cenário de futuros possíveis. É verdade que o Estado não é o único cenário político e que além dele existem formas e expressões genuínas de política, especialmente enraizadas em comunidades territorializadas e movimentos de resistência, também é verdade que os processos de globalização têm minado o poder historicamente preservado e exercido pelo Estado-nação (e que a abstenção eleitoral é multicausal); Mas também é muito claro que as decisões fundamentais de um país, de uma sociedade ou de uma nação passam pelo Estado, que gostaríamos de fazer política sem o Estado, ou para além do Estado, que acaba por se entrelaçar ou por nos interrogar direta ou indiretamente, quer queiramos quer não. O ideal de uma política sem Estado ou, mais radicalmente ainda, de uma sociedade sem Estado, é por agora apenas isso: um ideal, pois na prática política o Estado continua sendo o principal fator de poder, com tanto que pode até destruir ou dissolver qualquer processo de transformação do mundo ou da sociedade (assim nos lembra Poulantzas, quando nos adverte, entre algumas das funções estratégicas do Estado, a de desorganizar ou manter setores subordinados desorganizados), para que tais processos não proponham a tomada do poder. Se uma política sem Estado é para já um ideal, pelo contrário, uma política ideal passa pelo acerto de contas com o Estado.
Na Colômbia tivemos e continuamos a ter experiências de construção da paz e de construção política do território sem Estado, e muitas vezes contra o Estado. Esses processos sobrevivem e têm conseguido durar ao longo do tempo, são referências autorizadas de possíveis cenários pós-conflito se os atores do enfrentamento armado na Colômbia conseguirem canalizar novamente um acordo de paz. Eles contêm um poder vigoroso como possíveis mundos alternativos. Mas está claro que a possibilidade histórico-política de que tais processos sejam plenamente desdobrados e cujas experiências e lições se tornem hegemônicas ou ocupem em parte um papel de destaque no projeto hegemônico de construção da paz na Colômbia, passa por uma articulação mais global a partir da qual é possível estabelecer testes estratégicos decisivos de força entre os atores pelo comando político da sociedade, cujo referente não é outro senão o Estado. Se quisermos passar sem o Estado (o ideal), não temos outra escolha senão mexer com ele. É por isso que o cenário político eleitoral, no qual (ou a partir do qual) os cursos estratégicos são definidos não só para o Estado, mas também para o país, é crucial. É por isso que a esmagadora abstenção eleitoral no plebiscito de 2 de Outubro deve ser importante e preocupar-nos. É altamente provável que, em resultado destes resultados, o acordo de paz mais sério e solidamente construído seja estragado. E que a oportunidade perdida da política acabe por ser devolvida à guerra. Agora, tudo o que resta é persistir e, sobretudo, despertar o poder de possíveis mundos que provavelmente contenham esse 62% de abstinência.
Original: Palabras al Margen