DOSSIÊ PLEBISCITO NA COLÔMBIA: Pobreza, manipulação e medo
Fonte: NUSO – Outubro de 2016 – Tradução: Charles Rosa
A vitória do Não no plebiscito pela paz na Colômbia, realizado no domingo, 2 de outubro, atraiu a atenção da maior parte da mídia mundial. A rejeição do Acordo de Paz assinado entre o Governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) foi um forte golpe para a região e fez com que jornalistas e analistas políticos repensassem as razões para esse resultado.
Quase um mês após a votação, é possível dizer que o resultado se deveu a numerosos fatores e causas de manifesta complexidade. Era evidente que uma forte campanha para gerar medo desorientou os eleitores mais pobres e levou ao triunfo da rejeição da paz (Não). A política instalada pelos grupos de direita se baseava na idéia de que os setores marginais perderiam os subsídios necessários para sua subsistência, porque o dinheiro iria para os guerrilheiros desmobilizados. Também se afirmou que o líder das FARC se tornaria o próximo presidente do país e que o castrocavismo chegaria, reforçando o medo de uma população tradicionalmente cansada e atordoada pelo conflito. A verdade é que as mensagens na mídia foram financiadas pelo grupo empresarial familiar do ex-presidente Álvaro Uribe, a principal engarrafadora e a RCN (a importante rede de rádio e televisão), entre outros colaboradores.
No entanto, existem dados alarmantes que devem ser tidos em conta à medida que afectam a paisagem regional. Foi demonstrado que as igrejas evangélicas desempenharam um papel importante na rejeição do acordo de paz. Eles se opõem ao que chamam de “ideologia de gênero”, que foi claramente incorporada no acordo. A posição de poder do evangelismo não é nova. Na Colômbia, essas igrejas vêm demonstrando força há décadas, em linha com o que está acontecendo em outros países da região. O último caso da cruzada evangélica conservadora é, de fato, o do Brasil, onde o pastor Marcelo Crivella chegou à prefeitura do Rio de Janeiro propondo posições homofóbicas e contrárias à liberdade sexual.
Entre as várias razões para compreender o resultado das eleições realizadas há um mês atrás, notou-se que a diferença entre Sim e Não era de apenas 53.894 votos. O absentismo, reafirmaram os meios de comunicação social, não foi muito superior à média de um país onde o voto é voluntário. Segundo a jornalista investigativa Olga Behar, entrevistada para esta coluna, o fenômeno deve ser pensado em termos dos fracassos da democracia: “O que aconteceu na eleição é que não houve promessas ou presentes como é comum nas campanhas dos políticos tradicionais. E há pessoas que se não lhe dá uma ajuda, não votam”, comentou.
Nos dias seguintes à eleição, a maioria das explicações para a derrota do SIM apontavam para o Furacão Mateus, o ódio às FARC e a apatia dos eleitores. No entanto, uma entrevista com Juan Carlos Vélez, gerente de campanha No, publicada no jornal colombiano La República, revelou que o objetivo da campanha publicitária era gerar indignação: “Estávamos procurando pessoas para sairem e votarem assustadas”. O próprio Velez comentou que vários assessores internacionais recomendaram que deixassem de explicar os acordos e, portanto, nos setores médio e superior, espalhassem mensagens de não à impunidade e à reforma tributária, enquanto para os setores inferiores, as mensagens enfatizavam a complexa questão dos subsídios. “Na costa individualizamos a mensagem de que nos tornaríamos Venezuela”, acrescentou o político.
Um dos redutos de Uribe é o departamento de Antioquia e sua capital, Medellín. No caminho para o aeroporto do município de Río Negro, que serve Medellín, na semana anterior ao plebiscito, os cartazes publicitários do Não eram notórios no topo das colinas ao longo dos lados da estrada. Mas Velez disse que eles fizeram mais uso do rádio e da mídia social porque descobriram seu poder viral. “Por exemplo, numa visita a Apartadó, Antioquia, um vereador deu-me uma imagem de Santos e Timochenko com uma mensagem que se referia criticamente à entrega de dinheiro aos guerrilheiros num contexto em que o país estava em crise. Eu publiquei no meu Facebook e no sábado passado eu tinha 130.000 compartilhados com um alcance de seis milhões de pessoas”, disse o gerente de campanha da campanha do NÃO.
A pobreza
Na segunda-feira, 3 de outubro, nas pesquisas de televisão colombianas, um cidadão de Bogotá respondeu que concordava com o Não porque considerava injusto que aqueles que trabalham duro ganhem apenas um salário mínimo e que os guerrilheiros desmobilizados recebam dinheiro (só para se reinserirem na vida civil, sem trabalhar, se entende). A qualidade dos serviços, especialmente dos transportes, em cidades como Bogotá e Medellín pode deixar uma má impressão se não se analisarem os dados sobre a pobreza no país. Em uma pesquisa realizada em 2015 pelo Departamento Administrativo Nacional de Estatística (DANE), 23,1% dos chefes de família relataram que não têm renda suficiente para cobrir suas necessidades mínimas e 61,7% disseram que só cobrem as despesas mínimas. Em março deste ano, o DANE informou que 27,8% da população nacional vive em situação de pobreza monetária, mas esta taxa sobe, dependendo da região, para 50% em Quibdó, capital do Chocó, o lugar mais pobre do país.
“Conselheiros estrangeiros aconselharam as pessoas a votar Não com uma série de mentiras, e dependendo do setor social com o qual eles estavam falando: se fosse para adultos mais velhos, eles disseram que as pensões seriam retiradas. Se falassem com pessoas que receberam subsídios, lhes disseram que agora os guerrilheiros serão subsidiados e que lhes serão tirados como um habitante merecedor”, acrescenta a pesquisadora Behar.
Mais de 8.800.000 pessoas recebem subsídios familiares na Colômbia, dos quais 75% recebem dois salários mínimos legais por mês. Os beneficiários são trabalhadores dependentes, trabalhadores independentes, pensionistas em condições especiais, pensionistas, mães comunitárias e trabalhadoras domésticas.
O lugar de Uribe
“Tem havido muita desinformação apesar dos esforços pedagógicos do governo, mas com este tipo de manipulação foi muito difícil competir. Agora abre-se um novo cenário como resultado das manifestações populares, não tanto para rever o acordo, mas para ver o que pode ser melhorado ou complementado.” acrescentou Behar , que também é autora de pesquisas sobre a parapolítica de Uribe, descoberta desde 2006, quando as ligações entre as Forças Unidas de Autodefesa da Colômbia (grupos armados ilegais de direita) e a coalizão governamental de Uribe se tornaram evidentes.
Se tivesse ganho o Sim, o ex-presidente Uribe teria ficado deslocado na política colombiana. No dia em que o acordo foi assinado em Cartagena, embora tenha sido convidado para um lugar de honra com os outros ex-chefes de Estado colombianos, preferiu retroceder, com um grupo de cidadãos, entre eles o pastor evangélico Miguel Arrázola, que se manifestaram contra o documento.
O partido Centro Democrático tem 20 membros no Senado, enquanto o Partido de la U, 21 de Juan Manuel Santos. Uribe está desconfortável com a impunidade por crimes cometidos pelas FARC, que também é o caso de milhões de colombianos, mas também está preocupado que aqueles que foram seus aliados em parapolítica sejam perseguidos por seus crimes, ao contrário dos combatentes desmobilizados das FARC.
A “ideologia de gênero“
No Peru, o Arcebispo de Lima, Juan Luis Cipriani, membro do Opus Dei, usa o termo “ideologia de gênero” para criticar as mobilizações do movimento Ni Una Menos. Na Colômbia, as igrejas evangélicas usam a mesma expressão para condenar a política do governo de Santos de promover o respeito aos direitos das pessoas LGBT, que é mencionada no Acordo de Paz. Segundo o jornal El País, existem cerca de seis mil igrejas evangélicas na Colômbia e, após a rejeição do plebiscito ao Acordo de Paz, o líder desta confissão, Arrázola, como parte da delegação do Não, disse ter apresentado suas “preocupações por valores familiares” na reunião realizada com o presidente Santos. Os panfletos do Não pela preservação da família também circularam no papel e como memes nas redes sociais antes de 2 de outubro.
A rejeição do processo de paz continuará, sem dúvida, a ser motivo de análise. Os fatores, como se vê, não foram tão simples quanto as primeiras reações observadas nos dias seguintes à votação. A busca por um mecanismo para acabar definitivamente com o conflito que mantém a Colômbia no limite há décadas ainda está em andamento, com a novidade de que o Exército de Libertação Nacional (ELN) iniciará negociações com o governo.