Nas últimas semanas vários representantes do correísmo acusaram Lenín Moreno de ser um “traidor”, começando pelo próprio Rafael Correa, líder de um processo que, pouco a pouco, parece estar caindo em desgraça. O peculiar desta situação é que Moreno é precisamente o sucessor de Correa. Além disso, o seu (controverso) triunfo eleitoral, bem como a sua nomeação para a candidatura presidencial, tiveram a aprovação do caudilho e do seu partido. Correa chegou ao ponto de dizer que “Lenin é um grande ser humano, deixo a Pátria em boas mãos”. Essas são, neste momento, as únicas certezas que temos; o resto são elucubrações, algumas mais ou menos razoáveis.
Que acordos chegaram Moreno e Correa? Não temos a certeza disso, mas há algumas indicações. O que temos de admitir é que Moreno não foi o fantoche de Correa, como muitos de nós esperávamos. Pelo contrário, vemos uma espécie de “confronto épico” entre os dois. Confronto que gera dúvidas, rupturas de natureza diversa, mas também várias continuidades preocupantes (por exemplo, a frente econômica e produtiva).
Como corolário desta situação, Moreno aparece como “o traidor” para o senhor da guerra auto-exilado na Bélgica e seus seguidores mais leais, que não hesitaram em tratar o atual presidente com desprezo e até mesmo encorajar mobilizações contra ele. Por sua vez, Moreno lançou críticas cada vez mais duras e até mordazes, gerando surpresa, já que, durante dez anos, marchou junto com um processo que começou a se perfilar como uma “revolução cidadã”, mas acabou se tornando uma restauração conservadora. Longe estão as memórias que o próprio Moreno aproveitou da década de Corrientes, da qual foi ator permanente, ou seja, co-responsável por ela. Embora outros pudessem encontrar uma antecipação desta situação na carta que Moreno enviou ao Alianza País em abril de 2016, onde formulou críticas mornas à administração de Correa e exigiu medidas corretivas.
Aqui encontramos um elemento estratégico que merece atenção, por que era necessário primeiro chegar ao poder político e depois empreender uma crítica que realmente tivesse efeitos, teria sido possível outra saída concreta do correlato, dado o domínio que veio a ter sobre quase todas as instituições do país, não é uma implosão a melhor forma de cair o correísmo? A análise destas questões deve ser aprofundada em termos políticos, especialmente porque parece difícil pensar num cenário mais destrutivo para o correlato do que aquele em que as suas próprias raízes o penduram.
Além disso, poderíamos descobrir que Moreno e sua gente – porque nunca esqueçamos que os indivíduos não agem sozinhos na política – sabiam aproveitar muito bem a situação. Moreno era -espera-se- a única opção para o Alianza País de “manter” no poder, sobreviver politicamente e até mesmo “ocultar” um grande número de casos de corrupção. Jorge Glas não tinha o poder de convocação para ganhar as urnas (até foi vaiado publicamente durante as eleições); ainda mais quando acabou se afogando em acusações de corrupção que o levaram à prisão.
Talvez o próprio Rafael Correa tivesse dificuldades em ganhar nas urnas (como o próprio Moreno sugeriu); e se a informação que continua a aparecer for verdadeira, o binômio Correa-Glas pode ser repetido… atrás das grades.
Mas a ascensão de Moreno aparentemente não só aproveitou a fraqueza das principais figuras do Alianza País. Poderíamos também sugerir que aproveitou o fato de o outro finalista das eleições de Abril, Guillermo Lasso, ter sido quase condenado pela sua falta de luz e potencial. Lasso, um claro representante dos interesses dos grupos poderosos que não aderiram à corrida -não como outros grupos que aderiram-, era um candidato cuja derrota (legítima ou não) era compreensível dadas as circunstâncias concretas do momento.
O fato é que a ascensão de Moreno deixou uma lição muito clara para o correísmo: o poder não é possuído, é exercido como diria Michel Foucault. Qualquer crença de que o poder pode ser possuído quando é exercido por outros é uma ilusão. Uma ilusão em que o correísmo caiu por causa de seu desespero em sobreviver a qualquer preço.
Seja como for. Agora o correlato paga as conseqüências de seus próprios atos, porque parece que se cumpre a máxima de que “quem mata com ferro, morre com ferro”. Se falamos de traições, que maior traição pode haver do que a própria emergência do correísmo através da metamorfose das propostas revolucionárias em uma realidade de restauração conservadora e modernização capitalista? Não esqueçamos que foi o correísmo que traiu aqueles que originalmente apoiaram a ascensão de Correa ao poder, uma traição que se consumou com a emergência de um regime autoritário que não hesitou em ridicularizar – e até mesmo criminalizar – muitos de seus antigos aliados.
Ou seja, temos de deixar claro que aqui o grande traidor não é Moreno, mas Correa. Foi ele quem traiu os ideais revolucionários que emergiram da luta popular após anos de ataques e crises neoliberais no país. Basta fazer algumas leituras das ofertas iniciais da “revolução cidadã”, para ratificar esta afirmação. Por exemplo, a leitura do Plano de Governo do país da Aliança 2007-2011, elaborado em 2006 – quando foi proposta a candidatura de Correa – fornece material para entender que o verdadeiro e grande traidor não é Moreno. Como uma pequena amostra, lemos o seguinte convite para “trabalhar para realizar nossos próprios processos organizacionais e desenhar nossos próprios programas de vida sem nos atermos a mensagens e normas emanadas de alguém que finge assumir o papel de um iluminado; não acreditamos em lideranças individuais que levam à constituição de estruturas verticais e caudillescas, mas em lideranças coletivas sustentadas na autocrítica, na tomada de decisão coletiva, no respeito a outras opiniões e na humildade”.
As declarações de Correa a favor da Constituição Montecristi e as violações sistemáticas que a levaram a isso são outra clara traição. Depois de promovê-la como “a melhor Constituição do mundo”, “um hino à vida”, e mesmo dizendo que duraria “300 anos”, é mais que evidente que Correa via a Constituição e a Assembléia Constituinte como trampolins em sua ânsia de concentrar mais e mais poder. A propósito, vale a pena esclarecer que esta Constituição – já o provámos repetidamente – não foi um processo à medida do caudilho, como afirmam algumas pessoas distraídas (basta referir que em 9 anos sofreu cerca de 23 alterações, mais do que um número incontável de violações da Constituição através de leis e mesmo de decretos).
Esta Constituição foi formulada com ampla participação cidadã e foi maciçamente ratificada nas urnas, na tentativa de reunir o sentimento popular de luta contra as injustiças dos tempos anteriores. Este é precisamente o espírito de Montecristi que Moreno está supostamente tentando recuperar, uma questão que está longe de ser verdadeira, para o resto.
A Constituição de Correa foi tão problemática às vezes que ele até teve que emendá-la quase pela força e atropelar a mesma Carta Magna, apenas lembre-se de dezembro de 2015. Embora seja verdade que a Constituição tem falhas que devem ser corrigidas -como o excessivo poder concedido ao executivo-, ela também tem grandes sucessos como o reconhecimento do direito à resistência (art. 98) que o próprio Correa desprezou e considerou um simples romance. Não será isso uma traição vil quando foi a própria resistência popular que levou Correa à Presidência? Além disso, já em gritos desesperados, Correa e seus aúlicos mais íntimos auguram seu retorno através de outra assembléia constituinte…
E se as traições são observadas na política, a gestão econômica de Correa é ainda mais clara; uma gestão que mantém a mesma orientação com Moreno. O governo de Correa tornou-se uma mera ferramenta para o capital satisfazer sua voracidade acumulativa explorando os trabalhadores e a natureza, até mesmo compartilhando muitos objetivos neoliberais dos anos 80 e 90. Mas enquanto o velho neoliberalismo separou e reduziu o Estado para que os grandes capitalistas pudessem explorar livremente, o novo neoliberalismo correcionista fortaleceu o Estado para colocá-lo em comunhão com o grande capital -local e transnacional- para que esse capital pudesse explorar livremente. Assim, Correa estabeleceu uma espécie de neoliberalismo transgênico com a intervenção do Estado, temperado com uma corrupção desenfreada que está sendo descoberta dia a dia.
Apenas algumas jóias neoliberais do correísmo são: promover o Tratado de Livre Comércio (TLC) com a União Européia, expressão máxima do neoliberalismo; ampliar a fronteira petrolífera no centro-sul da Amazônia, incluindo a ITT-Yasuní (proposta que Correa não mediu); impor a mineração em grande escala, violando o mandato mineiro de 2008 e criminalizando e perseguindo aqueles que se opõem a ela, como Kimsacocha, Íntag, Mirador, Panantza; entrega de campos petrolíferos maduros a empresas estrangeiras (entrega do campo de Auca a Schlumberger, e tentativas -nem claras- de entregar o campo de Sacha à empresa chinesa CERG); concessão, sem licitação e durante meio século, dos portos de Posorja, Puerto Bolívar e Manta ao capital estrangeiro; apoio aos grandes agronegócios, monoculturas e agrocombustíveis marginalizando a soberania alimentar e o campesinato.
A lista de traições no campo social também é grande: praticamente “privatizar a saúde” por meio de convênios com clínicas privadas, incluindo superfaturamento; incentivar indiretamente a “privatização da educação” com o surgimento de cursos e universidades privadas para os “não eleitos”; reintroduzir a flexibilização do trabalho (por exemplo, permitindo a redução da jornada de trabalho, afetando benefícios como desemprego, distribuição irregular da jornada de trabalho durante a semana); aprovar os decretos 016 e 739 para controlar organizações sociais e sociedade civil e o decreto 813 para disciplinar os trabalhadores públicos; criar organizações sociais -especialmente sindicatos- paralelamente ao governo.
A lista de traições e fraudes do correísmo econômico é tão longa (como esquecer aqui a fracassada “transformação da matriz produtiva”) que até mesmo livros inteiros poderiam ser escritos. O crucial neste ponto é não perder a memória histórica de todo o desperdício de uma década feito pelo correlato para não nos deixarmos enganar quando se reclama que Moreno é o traidor…
Em resumo, não saberemos quais foram os acordos que Moreno e Correa firmaram. Se isto não for descoberto de forma transparente, não poderemos saber quem foi o traidor nessas conversas. Mas, neste momento, para o país que deveria ser um problema menor que acabará sendo resolvido dentro da Cosa Nostra equatoriana, ou seja, a Alianza País, que, segundo Fernando Vega, ex-deputado constituinte da Alianza País, tornou-se uma seita mafiosa.
O que deve ficar claro é que Rafael Correa foi quem traiu a confiança do povo equatoriano nas urnas e no próprio mandato constituinte. Não há espaço para meias-palavras aqui. O grande traidor é Rafael Correa.
Original: Sin Permiso