Embora a tecnologia gere processos e produtos mais rápidos, mais baratos e melhores, além dos avanços em ciências biológicas, inteligência artificial e big data vemos crescer desigualdades de renda, riqueza e poder político. Para entender para onde estamos indo e por que estamos enfrentando o desaparecimento de bons empregos e uma crescente polarização da sociedade, devemos ampliar nosso foco para além de uma simples análise de mudanças tecnológicas e tendências técnico-econômicas.
Estamos diante do colapso estrutural do contrato social do século XX (a democracia social do New Deal), que proporcionava cobertura e proteção aos trabalhadores e uma redistribuição entre renda e mão de obra através de salários mínimos negociados pelo Estado, acordos coletivos que envolviam os sindicatos e, claro, uma poderosa estrutura fiscal. Esse pacto social já não se sustenta e hoje se consolida uma nova geração que se sente cada vez mais excluída: parte do problema passa pela financeirização da economia, pela transferência massiva de riqueza da economia real para os setores financeiros e de alta tecnologia, pelo surgimento de plataformas monopolísticas e da gig economy (uma economia baseada em empregos pontuais e intermitentes e não mais nos postos permanentes da era industrial) e o aumento das máquinas em geral.
A rápida mudança tecnológica, motivada principalmente pela introdução de tecnologias de informação e comunicação em todos os setores da economia, não produziu uma era de ouro da sociedade do conhecimento nem os investimentos prometidos em tecnologias sustentáveis, novos empregos e bem-estar. Longe disso, a polarização de renda aumenta, os salários seguem caindo e a taxa de progresso tecnológico diminui1. Essa situação é favorecida pela incapacidade dos governos de tributar os lucros provenientes da alta tecnologia e de se impôr de forma mais decisiva sobre os gigantes financeiros.
O aumento da economia robótica
Apesar dos avanços notáveis dos últimos anos, a automatização total ainda está em seu início. A tecnologia de semicondutores vem progredindo a uma taxa de 40% por mais de 50 anos. Isso deu origem à criação de máquinas inteligentes, desde robôs e carros autônomos até drones, que estão transformando a economia. A chamada “Internet das coisas” (a conexão com a rede de objetos comuns, de eletrodomésticos a carros) e as “cidades inteligentes” se expandem. A economia está passando da manufaturação para a “infofaturação”: as capacidades da indústria manufatureira estão prestes a mudar radicalmente graças à robótica e a computadorização e o aumento do que as empresas alemãs chamam de “Indústria 4.0”, que faz referência às fábricas inteligentes cujo trabalho se baseia numa combinação de robôs, interconectividade, digitalização, impressão 3D, etc.
A tecnologia já não é mais uma maquinaria que só automatiza tarefas físicas; também está começando a automatizar tarefas mentais. O aumento da inteligência artificial vai gerar uma transformação ainda maior. As máquinas começam a compreender nosso discurso e a identificar padrões de dados complexos. Por exemplo, a divisão Google Deep Mind está desenvolvendo algoritmos capazes de aprender por si mesmos. Um exemplo de como a inteligência está mudando a sociedade é o acordo entre o Google Deep Mind e o Serviço Nacional de Saúde britânico, que deu acesso para o Google aos dados de 1,6 milhões de pacientes, incluindo históricos médicos e dados em tempo real para desenvolver previsões, que colocam um alerta à opinião pública sobre questões de privacidade dos cidadãos.
Os gigantes tecnológicos estão cada vez mais implantados no campo da saúde, da educação, do transporte e da moradia, e começam a prestar serviços previamente fornecidos pelo Estado. A expansão da indústria tecnológica não afeta só a manufatura e a “quarta revolução industrial”, tal como definiu o empresário alemão Klaus Schwab no Fórum Econômico Mundial: é muito provável que Google, Facebook e o resto dos gigantes digitais eventualmente dirijam as infraestruturas básicas sobre as quais funcionam as sociedades de hoje.
A economia robótica já está aqui. A Foxconn, maior fábrica do mundo (produtora do iPhone da Apple, entre outras coisas), que emprega mais de um milhão de trabalhadores na China, já está instalando robôs a uma taxa de 10 mil por ano, e estima-se que 30% de seus funcionários serão substituídos por robôs antes de 2020. A Amazon possui 15 mil robôs trabalhando nos seus centros de distribuição. Ao mesmo tempo, as empresas terceirizam cada vez mais o trabalho para seus próprios clientes: substituem os trabalhadores humanos por sistemas automáticos de autoatendimento quando compram num supermercado, compram um hambúrguer ou pagam um estacionamento. Na cadeia de supermercados Tesco, da Grã-Bretanha, por exemplo, 80% das transações já são de autoatendimento.
Nesse contexto, parece claro que a inteligência artificial irá substituir progressivamente todas as tarefas repetitivas, rotineiras e algorítmicas. Segundo o economista especializado em tecnologia Brian Arthur, esta “segunda economia”, em que os computadores só fazem negócios com outros computadores, irá substituir, até 2025, o trabalho de cerca de 100 milhões de pessoas em todo o mundo. Pesquisas recentes indicam que 35% dos trabalhos na Grã-Bretanha, e ainda mais nos Estados Unidos, correm o risco de serem automatizados. A combinação dos carros sem motorista e Uber destruirá cerca de 4 milhões de postos de trabalho nos Estados Unidos. De fato, o Uber já implementou seus novos carros sem motorista em Pittsburgh. A Amazon está substituindo trabalhadores dos setores de vendas e, se implementar a distribuição com drones, também poderá automatizar as áreas de depósito e transporte.
Em suma, estamos diante de um efeito de deslocamento massivo que implica mais destruição de trabalhos do que criação de novos empregos. Os gigantes tecnológicos ganham enormes lucros e cada vez mais pessoas são empurradas para o setor de serviços da economia, com baixos salários ou trabalhos temporários em vendas, restaurantes e transporte, hotelaria e cuidado de crianças e idosos.
Precarização e “uberização”
Essas tendências são reforçadas pelo aumento da “economia sob demanda” ou “gig”. As empresas de serviços tradicionais estão sendo substituídas por intermediários de informações (Amazon, Google, Airbnb etc.) que controlam as plataformas digitais, que são capazes de extrair grandes receitas de redes de externalidades e se convertem rapidamente em quase-monopólios: a chamada “uberização” dos serviços. Ao controlar a plataforma, essas empresas convertem tudo — desde a saúde até a moradia — num ativo, e cada transação econômica se converte num leilão. Como se sabe, nada minimiza mais os custos — em particular os custos trabalhistas — do que um leilão.
Mas além da capacidade de extrair lucros de todos os pontos de uma transação, do ponto de vista das relações de trabalho, as empresas da economia de câmbio operam num modelo pré-previdencial: a cobertura social dos trabalhadores é mínima e quase não há possibilidades de estabelecer acordos coletivos. O Uber está tentando transferir cada vez mais custos ligados à segurança e à educação diretamente para os seus motoristas, que agora estão lutando por um salário mínimo. O “capitalismo das plataformas” visa transformar trabalhadores em empresários precários, em microempresários que aceitem trabalhar sob demanda, vivendo por dia, de pagamento em pagamento. Essa nova forma de trabalho também implica um controle da mente. Aos trabalhadores do estágio taylorista se pedia que, uma vez finalizada a jornada, se desconectassem. Aos trabalhadores de hoje se exige que não se desconectem nunca, que estejam disponíveis 24 horas por dia.
Nesse contexto, para debater o futuro do trabalho no século XXI, é necessário considerar a dimensão de classe da desigualdade e o crescimento da chamada “classe precarizada” (“precariado”). Assistimos a uma crescente frustração e raiva na classe trabalhadora, na classe média e na juventude provocada pela instabilidade econômica, o desemprego e a precarização, tal como demonstram os vários protestos registrados na Europa, como a revolta geracional francesa contra a nova lei trabalhista, o movimento Nuit Debout, que ocupou praças e promoveu greves durante o ano passado. O desemprego juvenil na Europa alcançou picos de mais de 40% em Portugal, Espanha e Itália.
Após a recessão de 2008, frente à perspectiva de um desemprego de longa duração, muitos trabalhadores não tiveram escolha senão se tornarem autônomos ou procurar contratos temporários. Na Grã-Bretanha, o número de contratos de zero horas no setor de serviços aumentou. Nos Estados Unidos, o universo da economia por demanda, de trabalhadores independentes e freelances atinge 20% do total da força de trabalho. Menos de 7% dos trabalhadores estadounidenses se encontram sindicalizados. Cada vez mais, as pessoas não sabem o que ganharão no mês que vem. O mercado de trabalho se tornou num mercado-leilão que não dá nenhuma segurança aos trabalhadores. Como resultado, os jovens e os trabalhadores temporários não podem planejar seu futuro, pagar contas, obter empréstimos para ir à faculdade, formar uma família, comprar uma casa ou pagar uma hipoteca. Vivem presos nessa armadilha da precariedade, que se combina ainda com o crescente déficit das políticas de seguridade social.
A economia atual, em suma, contém um paradoxo: o aumento da produtividade como consequência da mudança tecnológica gera grandes lucros, enquanto os salários perdem cada vez mais peso relativo. As empresas de tecnologia criam e incorporam tecnologia para substituir o trabalho, mas a demanda agregada enfraquece. Quem irá comprar todos esses produtos no futuro? Apesar dos avanços da economia robótica da abundância e dos custos marginais nulos de acesso à informação digital, os mercados de hoje se caracterizam pela persistência de grandes monopólios, como as economias em rede de Google, Uber e Amazon. Como conciliar os custos marginais nulos dos bens de informação com a taxa a qual se criam novos bilionários da tecnologia? Como usar a abundância gerada por robôs e como distribuir os ganhos econômicos? Não se trata de uma questão simplesmente econômica, mas de uma discussão política e de poder.
Salário básico universal
As elites tecnológicas dos Estados Unidos defendem hoje o salário básico, que foi defendido de maneiras muito diferentes, tanto pela esquerda radical como pela direita neoliberal. Para muitos especialistas do Vale do Silício, o salário básico é uma ferramenta de proteção para as pessoas que perderão seus empregos por causa da globalização e das mudanças tecnológicas, e ao mesmo tempo é uma forma de tornar o Estado mais eficiente e austero, eliminando a burocracia das pensões. A ideia é simplesmente dar dinheiro às pessoas: um salário básico universal como última rede de assistência social. Outros experimentos públicos em grande escala ocorrem no Canadá, na Finlândia e na Holanda. Também a Suíça realizou um referendo nacional sobre o salário básico universo. Google.org é um dos fundadores de um experimento na Quênia (um teste aleatório que proverá a 6 mil quenianos uma renda básica durante uma década), enquanto que Y Combinator, uma das empresas aceleradoras de startups mais influentes do Vale do Silício, está desenvolvendo um projeto de pesquisa sobre salário básico com um primeiro teste piloto em Oakland.
Argumento que precisamos de uma perspectiva sobre o salário básico que não seja neoliberal. A pergunta central é quem pagará pelo salário básico, dado que os Estados estão endividados e muitas vezes tem pouco espaço fiscal para implementar medidas dessa natureza. Bill Gates propõe um “imposto aos robôs” para lidar com o desemprego tecnológico causado pela automação. No entanto, taxar os robôs ainda não resolve o problema principal. A razão pela qual a indústria tecnológica tem tanto dinheiro é que os governos já não o têm. Em seu lugar, esse dinheiro descansa nas contas offshore das empresas do Vale do Silício e de Wall Street. Vejamos a Apple, que recentemente anunciou que tem 230 bilhões de dólares em dinheiro potencialmente tributável — mas fora dos Estados Unidos2 — ou o Google, que se converteu na sociedade anônima mais valiosa do mundo depois de anunciar que seus lucros globais aumentaram 13% chegando a 75 bilhões de dólares no ano passado, fazendo da Alphabet, sua controladora, a empresa mais valiosa do mundo. Também a valoração de Uber, Airbnb e Lyft parecem imunes à deflação do mercado. Há uma diferença enorme entre a renda e a valoração dessas empresas. Por exemplo, o Airbnb coletou 3,1 bilhões em capitais de risco e hoje tem uma valoração de 30 bilhões, o que valeria quase dez vezes mais do que a renda inicial, um valor muito superior ao dos hotéis Hyatt. Atualmente, o Uber está aumentando seus recursos e seu valor é estimado em 50 bilhões, cifra quinze vezes maior do que sua renda.
Na realidade, os bilionários tecnológicos do Vale do Silício que promovem o salário básico são o principal obstáculo para a sua implementação. É claro que não serão eles que vão pagar por isso, pois preferem colocar seu dinheiro em contas offshore, como revelaram os Panamá Papers. O Fórum Econômico Mundial declarou que o valor — para a sociedade e a indústria — da transformação digital poderia ser mais de 100 bilhões de dólares em 2025. O discurso habitual para analisar a economia robótica diz que ela gerará enormes riquezas para os donos das plataformas, que logo ajudarão à sociedade a pagar os custos adicionais, servindo espontaneamente ao bem comum. No entanto, isso não acontece, e os lucros que não são tributados não podem ser reinvestidos em planos de assistência social, emprego e salários básicos.
Mas tudo também indica que haverá mudanças no futuro. O bem-estar social do Vale do Silício e sua economia de bens gratuitos, que hoje são subsidiados por publicidade e vigilância, não durará para sempre. De fato, a perspectiva mais provável é que os cidadãos, trancados dentro de suas infraestruturas digitais, tenham que começar a pagar a essas corporações para poder ter acesso, tornando assim os serviços sociais básicos um privilégio.
Como reivindicaram os economistas marxistas italianos durante os últimos 20 anos, temos que introduzir um salário básico garantido como renda primária, como resposta às desigualdades que acompanham o “capitalismo cognitivo” de hoje, no qual o trabalho social não reconhecido e não remunerado, o trabalho informal, as tarefas de cuidado, o trabalho afetivo e relacional — todos fundamentais para a economia e a sociedade atuais –, tem um papel cada vez mais central. O salário básico será importante para estabilizar as sociedades num sistema de produção e de criação de riqueza que é cada vez mais coletivo e social, enquanto que os lucros são cada vez mais privados. O salário básico permitirá que o trabalho criativo substitua as tarefas rotineiras e algorítmicas que, de toda forma, já estão sendo substituídas pela inteligência artificial. O que precisamos é de um salário básico como dividendo da produtividade aumentada pelos robôs que retorne à sociedade responsável por produzir coletivamente essa riqueza. Um “dividendo básico universal”, como propôs o ex-ministro de economia grego, Yanis Varoufakis.
A pergunta é: quem está ficando com os lucros dos dividendos digitais? Como podemos garantir que esse lucro não descanse em contas offshore mas que se invista em infraestrutura social para criar valor a longo prazo para a sociedade e promover um crescimento inteligente, inclusivo e sustentável? O salário básico não é a solução para a crise global atual, mas uma base. O desafio, do meu ponto de vista, não tem a ver com a desaparição dos trabalhos, mas com a distribuição de renda e com a definição de um caminho a longo prazo para essa mudança. O desafio é desenvolver uma economia social e um sistema previdenciário que não estejam exclusivamente orientados para o mundo do trabalho. Precisamos de uma revolução em muitos dos nossos hábitos e ordens sociais e econômicos. Temos que inventar novas instituições (como o salário básico) que aproveitem essa transformação de base tecnológica para o benefício coletivo.
Original: Le Monde Diplomatique
1 Segundo Tyler Cowen, autor de El gran estancamiento (2011), a economia estadounidense viveu uma expansão tecnológica produto da pós Revolução Industrial que nos últimos 40 anos gerou menos riqueza do que se acredita, mas os governantes seguem dando respostas como se o crescimento fora o mesmo. Isso gera um mal estar — e conflitos — na política e na economia.
2 Segundo Luca Maestri, CFO da empresa, numa conferência em fevereiro de 2017 (“Apple has $246 billion in cash, nearly all overseas”, CNN Money, 1–2–17).