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Em junho de 1999, um estudante universitário chamado Shawn Fanning montou uma plataforma de compartilhamento de músicas. A inovação permitiu aos utilizadores acessarem à música armazenada nos seus computadores numa base recíproca. Fanning batizou a plataforma de Napster, um apelido que ele usava para ridicularizar os hackers.

A Napster não era uma rede centralizada e permitia aos participantes ter acesso a uma vasta discoteca a um custo marginal: no seu auge, tinha mais de 70 milhões de usuários. E depois as coisas ficaram feias.

Fanning foi processado por empresas fonográficas e em 2001 perdeu seu processo por promover o download ilegal de material protegido por leis de direitos autorais que protegem as empresas fonográficas. Assim foram impostos regimes centralizados e de remuneração. Os nostálgicos dos anos em que se pensava que o capitalismo desapareceria porque as redes sociais tornaram obsoletos os velhos esquemas de concentração de poder devem reconsiderar sua análise.

A ida de Mark Zuckerberg ao Congresso dos EUA há alguns dias foi uma farsa e mais um episódio da campanha de desculpas do criador do Facebook. Mostrou também que a maioria dos legisladores nada sabia sobre o funcionamento da plataforma. Cada legislador tinha cinco minutos para fazer perguntas, então o questionamento era superficial e só servia como uma operação de relações públicas para o chefe do Facebook. Ele também revelou que Zuckerberg não sabe nada de história, economia ou ética.

Não é a primeira vez que um escândalo marca as operações do Facebook. Em 2010, o Wall Street Journal descobriu que o aplicativo estava vendendo informações privadas sem o consentimento dos usuários para empresas de rastreamento da Internet e agências de publicidade. Pior ainda, em 2014, o Facebook realizou experiências com 689.000 usuários (sem o seu conhecimento) e mostrou que era possível fazê-los sentir-se mais otimistas ou pessimistas ao manipular a informação que supostamente lhes era enviada pelos seus amigos num processo chamado contágio emocional. A experiência mostrou que a formação de opiniões poderia ser condicionada pelo consumo dirigido de notícias e que isso poderia ter sérias repercussões sobre as preferências eleitorais.

Sabemos que, entre 2015 e 2016, o Facebook vendeu mais de US$ 100 mil em espaço publicitário para “fazendas de trolls” na Rússia e que 126 milhões de contas de usuários dos EUA foram expostas a notícias enviadas por esses falsos perfis de supostos cidadãos preocupados. Não estou insinuando que a eleição de Trump foi decidida desta forma, que nunca saberemos (as corruptelas e a rendição do Partido Democrata foram mais importantes). O que quero enfatizar é que (hoje que se destapa o esgoto das relações com a Cambridge Analytica) se abrem novas perspectivas sobre as relações entre a reunião de dados individuais e o modus operandi do capitalismo contemporâneo.

As palavras big data denotam uma gigantesca coleção de informações personalizadas que somente um poderoso algoritmo pode processar para criar um perfil preciso de cada usuário para fins comerciais. O que é importante não é apenas o uso comercial dessas bases de dados, mas também o fato de que gigantes como a Amazon, Google ou Facebook agora podem se envolver em manipulação política e até mesmo em funções próprias de um governo. O modelo de capitalismo financeiro que agora domina a economia mundial tolera e parece promover essas novas incursões no mundo do big data.

E é que a acumulação e processamento de dados pessoais permite aprofundar a apropriação de novos espaços de rentabilidade para um capitalismo que sofre uma queda crónica da taxa média de lucro durante quatro décadas. O neoliberalismo tem sido baseado na supressão dos salários e na destruição do poder social e político da classe trabalhadora. Mesmo assim, não foi capaz de neutralizar sua crise de rentabilidade ou evitar a concentração de riqueza, nem conseguiu evitar a semiestagnação em que se encontra a economia mundial. Neste contexto, adicionar e recolher dados é uma oportunidade que o capitalismo não quer desperdiçar. E para tirar proveito disso, a mercantilização das relações sociais foi trazida a um novo padrão. O gigantismo e a concentração de poder intensificaram-se para transformar a esfera da vida privada numa mercadoria.

A propósito, no México, o presidente do Instituto Nacional Eleitoral (INE) anunciou recentemente que um acordo foi assinado com o Facebook para evitar que notícias falsas desorientem os eleitores e afetem o processo das próximas eleições. O timing de um tal acordo não poderia ter sido mais infeliz. No meio do pior escândalo da história do Facebook, o INE quase não deixou de elevá-lo à categoria de autoridade eleitoral. Quem vai decidir o que são notícias falsas? O INE? O atraso e a incompetência dos funcionários do instituto eleitoral são exemplares.

Original: La Jornada

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