Feiticeiros no setor bancário
No ano 180 da era atual, a retórica Luciano de Samosata escreveu uma história que cativou seus seguidores. Sua história conta como Eucrates pôde secretamente apropriar-se da fórmula mágica usada por um mágico egípcio famoso. O feitiço lhe permitiu dar vida a objetos inanimados e colocá-los ao seu serviço.
Com a fórmula mágica ele fez uma vassoura ir buscar água, mas quando essa tarefa acabou a vassoura continuou a trazer mais água. Não conseguindo pará-la, Eucrates, desesperado, partiu-a com um machado, só para descobrir que as duas metades ganhavam vida e continuavam o seu trabalho até a casa do mágico ficar inundada. Só o regresso do feiticeiro irritado poderia deter a marcha inexorável das vassouras.
O poder da fábula chamou a atenção de Goethe, que em 1798 a desenvolveu em seu poema Die Zauberlehrling, o aprendiz de feiticeiro. A mensagem é de cautela: não desencadear forças que não podem ser controladas. A história revela que a mensagem raramente foi ouvida. Encontramos um exemplo no mundo financeiro.
O dogma neoliberal afirma a necessidade de eliminar regulamentações e desencadear o potencial inovador no setor financeiro para gerar inovações, melhores produtos e melhores serviços. Há cerca de quatro décadas esta fórmula começou a ser aplicada, e hoje os resultados são visíveis.
A desregulamentação no setor financeiro da economia mundial tem guiado governos e organismos internacionais por mais de quatro décadas. As instituições que impulsionaram esta tendência vão desde o Fundo Monetário Internacional até ao Banco de Pagamentos Internacionais (BIS) em Basileia, na Suíça. Da academia, os economistas neoliberais também transmitiram a mensagem de que a desregulamentação melhoraria a eficiência e promoveria o crescimento.
A fim de alcançar o objectivo de estabilidade do sistema bancário, foi fomentada uma cultura de desregulamentação para promover a inovação. E assim como as vassouras de Eucrates, as inovações logo se multiplicaram. A engenharia financeira, as técnicas de securitização, os derivativos e outros produtos exóticos proliferaram de modo que, em teoria, os riscos tornaram-se cada vez mais gerenciáveis, enquanto a estrutura do sistema bancário se tornou cada vez mais frágil.
A política de estabilidade do sistema bancário repousa nos acordos do Comité de Basileia de Supervisão Bancária (CBSB) do BIS. Em 1988, o primeiro destes acordos, denominado Basileia I, entrou em vigor com requisitos de capitalização para garantir que os bancos privados pudessem absorver perdas sem comprometer o sistema bancário. Esse acordo introduziu o método dos ativos ponderados pelo risco de avaliação do capital para fornecer uma medida mais rigorosa do poder ou fraqueza de um banco. A regra era que o capital mínimo de um banco deveria ser de 8 por cento do total dos ativos ponderados pelo risco, e nos anos seguintes essa percentagem aumentou para 12 por cento nos bancos da OCDE. Mas esse aumento foi mais devido à remoção de muitos ativos de risco dos balanços dos bancos através de operações de securitização: o capital necessário para atender à exigência de Basileia I diminuiu, mas os riscos não foram reduzidos. A inovação financeira veio em socorro dos bancos e permitiu-lhes continuar a apostar no casino de alto risco.
Basileia II procurou corrigir alguns defeitos de Basileia I. O novo acordo começava a ser aplicado quando eclodiu a crise de 2007-2008. A ironia é que Basileia II reafirma a autonomia dos bancos na avaliação de seus riscos e reafirma a confiança no uso de fórmulas autorregulatórias baseadas em uma abordagem microprudencial. Hoje, Basileia III procura disciplinar a autorregulação e incorpora novos requisitos em matéria de alavancagem. Mas este último acordo continua a afirmar o princípio fundamental de permitir métodos baseados em modelos internos (bancários) de avaliação do risco.
A desregulamentação do setor permitiu a gestação de inovações, como a engenharia na securitização de todos os tipos de instrumentos e a criação de derivativos exóticos para explorar novos mercados em busca de maior rentabilidade. Estas inovações no setor financeiro bancário levaram a crer que o risco era mais controlável, mas enfraqueceram as condições de estabilidade sistémica. Cada banco desenvolveu seu modelo interno para reduzir suas exigências de capital, mostrando que o risco estava sendo reduzido: a microeficiência levou a um macroproblema.
Em uma transição histórica, o crescimento exorbitante do setor financeiro e bancário global transformou as estruturas capitalistas em plataformas de especulação. Acreditando promover a eficiência, a desregulamentação fomentou a instabilidade. Algum dia o feiticeiro voltará para casa para disciplinar os aprendizes com uma megacrise que acabará com o pesadelo da desregulamentação financeira.
Original: La Jornada