Moedas sem nação
Fonte: The Bafler– Tradução: Charles Rosa – 24/07
A imagem que Facebook tem de si mesmo como uma ágora de conexão humana há tempo que não concorda que não concorda com sua discutida reputação pública. Nos últimos dois anos as contradições não fizeram mais que crescer à medida que o Facebook se viu golpeado pelos escândalos de Cambridge Analytica, a desinformação, a gestão dos dados pessoais e muito mais. Apesar da aquisição com êxito de Instagram e WhatsApp, o gigante azul das redes sociais parece um produto em declive, um lugar cuja base de usuários, cada vez mais envelhecida, desaparecerá com o tempo num miasma de fake news, memes conservadores e fotos de netos de baixa resolução. Tanto importa quanto possa ressoar esta história, Facebook segue contando com a bênção dos efeitos da alta conectividade que lhe proporcionam bilhões de usuários em seus produtos, incluindo sua rede social de cabeceira. Está aqui para ficar uma boa temporada. Para o Facebook, não há outra maneira de escapar desta onda de críticas daqui para frente, e por esse motivo continuou introduzindo novos serviços – uma tela de videoconferência chamada Portal, uma mudança em toda a companhia rumo a uma maior privacidade, serviços de mensagens criptografados – inclusive quando teve que enfrentar o desdém públicos e as crescentes investigações governamentais.
Na semana passada, o Facebook introduziu Libra, uma criptomoeda digital/ modo de pagamento/ plataforma financeira com a qual espera conquistar o mundo com a mesma folga que o fez sua rede social original. Construída com as tecnologias mais de ponta – se as palavras “open-source block chain descentralizado” te excitam, ficarás contente – promete ser uma sorte de PayPal mundial (como se PayPal já não existisse), efetuando envios e transações ao longo e por todo o planeta com cargos minúsculos e poucos problemas. À diferença do Bitcoin, o valor da Libra estará acoplado ao um cesto de ativos no mundo real, reduzindo sua volatilidade. Seguramente não será o colossal sumidouro de energia que é Bitcoin. Ou isso é o que promete este conto de fadas envernizado de relações públicas: a Libra não entrará em vigor até 2020, o que significa que há muitas coisas que ainda não sabemos. A companhia, não obstante, já começou a desenvolver uma esplêndida campanha midiática e publicou uma montanha de documentos para ilustrar a estrutura de governança de Libra (um grupo de empresas multinacionais que pagam 10 milhões de dólares por cabeça por ter esse privilégio), suas especificações técnicas (complicadas) e seus fundamentos ideológicos (decididamente neoliberais).
Esta última questão merece uma atenção especial. O livro branco de Libra, que apresenta a inspiração, o objetivo e a gestão do projeto, é um guisado de todas as ideias de microfinanças e desenvolvimento internacional desacreditadas na última década. Introduzindo-se como um benevolente obséquio para a humanidade, o documento se dedica sobretudo ao objetivo da “inclusão financeira”, conectando os despossuídos bancários deste mundo ao tecnocapital ocidental.
Evidentemente, tudo isso é apresentado como algo mais caritativo. “É o momento de tentar algo novo para o 1,7 bilhão de pessoas que seguem sem possuir uma conta bancária trinta anos depois da invenção da web”, tweetou o co-criador de Libra, David Marcus. “Nossa esperança é facilitar o acesso a melhores serviços financeiros, mais baratos e mais abertos, sem importar quem você é, ou quanto dinheiro você tem”.
O Facebook, em poucas palavras, veio aqui para ajudar. A tamanha arrogância que significa o ponto de partida deste projeto é, obviamente, que aqueles que não têm acesso a um banco necessitam o acesso a serviços financeiros, e mais ainda aos que proporcionam Facebook e seus sócios, como Mastercard e Uber. Como ocorre com as microfinanças, que afundaram uma infinidade de pessoas em todo o mundo numa dívida impossível de pagar, as iniciativas de inclusão financeira fracassaram na hora de reduzir a pobreza. Como escreveu um grupo de críticos, isso ocorre porque a inclusão financeira “se baseia na ideia ingênua de que o desenvolvimento financeiro contribuirá positivamente, sempre e em todo o lugar, ao crescimento”. A pobreza e a falta de desenvolvimento são questões complexas e que se devem a múltiplos fatores que “nem estão causadas em primeiro lugar pela falta de acesso a serviços financeiras nem são fundamentalmente problemas a nível micro, locais”.
O que falta, portanto, nas narrativas de inclusão financeira e no livro branco de Libra são as narrativas sobre o papel que desempenha o Estado. Os governos tradicionais não são encontrados em nenhuma parte nesta bibliografia, e neles tampouco se depositam muitas esperanças de que possam ser responsáveis de proporcionar serviços sociais e a assistência monetária. Em vez disso, o pressuposto é que todos os governos são corruptos e incapazes, e espera-se que as ONGs e instituições como o Banco Mundial preencham as lacunas com seus conhecimentos e perfeitamente afinados programas de luta contra a pobreza. (Um dos poucos documentos que o livro branco de Libra cita é o Global Findex 2017 do Banco Mundial, um informe sobre “a inclusão financeira e a revolução fintech [financeiro-tecnológica]”, da qual o Banco Mundial fez um dos principais promotores).
Logo se vê que o livro branco de Libra não oferece nenhuma avaliação do fracasso dos serviços financeiros na hora de facilitar o desenvolvimento. Críticas cruciais – como que os microcréditos financeiros são com frequência utilizados pelos pobres mais para o consumo que para atividades empreendedoras – nem sequer são levadas em conta. No lugar disso, o sonho de aliviar a pobreza se atualiza de maneira simplória com um novo jargão e com novas tecnologias. Não faz muito tempo que os smartphones prometiam encabeçar a revolução digital contra a pobreza. Agora são os smartphones e o blockchain.
Os políticos já tomaram nota de Libra, inclusive que a Libra não os leva em conta. Um bom número de legisladores democratas e republicanos expressaram sua oposição ao projeto. Na União Europeia (UE) se sucedem as críticas das autoridades eleitas. Apesar de a equipe de governança da Libra tenha sua sede na neutra Suíça, um país com os braços abertos para qualquer capital, Facebook seguramente será objeto de pressões de governos de todo o mundo.
Isso já aconteceu antes. Há alguns anos a companhia apresentou seu plano Free Basic, que proporcionava aos usuários uma experiência primitiva e com um consumo de dados inferior ao da navegação pela web canalizando todo o tráfico através do Facebook e alguns poucos aplicativos aprovados pela empresa, eliminando na prática os limites entre Facebook e internet. O projeto foi ridicularizado como uma nova forma de colonialismo que conduzia os usuários às raízes trituradores de dados de Facebook com a promessa altruísta de oferecer serviços gratuitos. Entre outras formas de oposição, os reguladores indianos bloquearam Free Basic como uma violação da neutralidade na rede. O Facebook respondeu às críticas com seu habitual “Quem, eu?”, fingindo inocência sob o manto do humanitarismo digital. Como assegurou a empresa num comunicado daquela época, “nosso objetivo com Free Basic é conectar as pessoas com uma plataforma gratuita que seja livre, aberta e não excludente. Ainda que decepcionados com seus resultados, continuaremos nossos esforços por eliminar barreiras e proporcionar aos que seguem carecendo de possibilidades uma via simples para se conectar à internet e acessar às oportunidades que proporciona”.
A linguagem é praticamente a mesma que no livro branco da Libra. Conectividade digital, abertura, beneficência digital, tudo proporcionado, curiosamente, por um monopólio estadunidense que jura e perjura que vem em missão de paz. Para o Facebook, a circulação de dados vem a ser o mesmo nestes dias que a circulação de capital, como se dissesse que tudo o que tem que fazer é inserir uma pazinha na corrente e sorver. Ainda que a empresa prometa manter separados a Libra e os dados de Facebook (com algumas exceções por motivos de segurança, evidentemente), sem dúvida vai se beneficiar enormemente de ter acesso a um novo fluxo de informação das finanças globais.
Se no ano que vem mais ou menos por esta altura do ano comprar, vender e enviar Libras for tão fácil como clicar num atalho de Whatsapp ou Messenger, então Facebook terá feito desde logo algo de enorme valor. Mas para quem? O sentimento de messianismo expresso por David Marcus e outros membros da cúpula do Facebook pode ser genuíno, mas há poucas dúvidas de que fortunas financeiras vão se beneficiar de uma criptomoeda sem Estado como Libra: as do Facebook e seus bem remunerados sócios.