A cultura das armas de fogo foi sempre a essência do supremacismo branco
Publicado originalmente em New Republic – 05/08 – Traduzido por Charles Rosa
A cultura das armas de fogo foi sempre a essência da supremacia
branca
07/08/2019 | Ryu
Spaeth
A matança massiva em El Paso revela as obscuras correntes que
subjazem ao debate sobre o controle das armas de fogo. A morte do
Juiz John Paul Stevens (Juiz do Tribunal Supremo de 1975 a 2010,
considerado um dos mais progressistas), ocorrida em 16 de julho deste
ano, permitiu voltar para o que ele mesmo considerava sua derrota
mais cruel durante os 35 anos em que atuou na Corte Suprema: a
sentença “District of Columbia versus Heller”, ditada em 2008,
que afirmava, pela primeira vez na história da Corte, o direito de
portar uma arma. 1/.
Mais ainda: a sentença supunha, como assinalou Stevens em seu
desacordo, que os redatores da Constituição queriam limitar para
sempre a capacidade dos funcionários eleitos para regular o uso
civil de armas mortais – com capacidade de mutilar e de assassinar,
o que seria totalmente inadmissível para os redatores da
Constituição.
Os testemunhos mais recentes do poder devastador desse tipo de
armas nos vêm de El Paso, no Texas, onde um homem armado matou 22
pessoas num supermercado Walmart naquilo que parece ser um massacre
racista, e também de Dayron, no estado de Ohio, onde um homem armado
e equipado com colete à prova de balas matou nove pessoas e feriu
várias dezenas com um fuzil de assalto.
Depois do caso Heller, a paisagem está cheia de corpos crivados
por balas. Desde o massacre de Sandy Hook em 2012, foram produzidos
mais de 2000 tiroteios massivos nos EUA e a violência armada só
aumenta. É totalmente absurdo pensar que os juízes, com toda sua
sabedoria, queriam privar o governo de um meio para pôr fim a esta
devastação generalizada. Este fenômeno obsceno, que afeta vítimas
de todas as idades, de todas as cores e em todos os lugares, talvez
se entenda melhor como uma autodestruição. A sociedade segue
sangrando, enquanto nossa fé na democracia se debilita ou,
inclusive, é rejeitada por completo.
Tampouco é procedente remontar ao século XVII, a common law
inglesa – como fez
o juiz Antonin Scalia (juiz
de 1986 a 2016 que defendia que a Constituição devia ser
interpretada segundo o sentido dado no momento de sua adoção), uma
opinião majoritária triunfante – para justificar o
desmantelamento da República
que está se produzindo neste mesmo momento. E por último, também
seria absurdo, a propósito do caso Heller, pensar que este tipo de
jurisprudência conservadora foi
levada a sério; entretanto,
deve ser considerada como a
culminação de décadas de esforços da NRA (Associação Nacional
do Rifle, por suas siglas em inglês) e de outras instituições de
direita, para transformar o poder judiciário num baluarte
antidemocrático que sirva somente aos interesses dos ricos e dos
poderosos.
O presidente Donald Trump, como sempre, esclareceu as verdadeiras
motivações dos “Estados Unidos conservadores”, que já não
pretendem se preocupar pelas sutilezas das opiniões dos autores da
Declaração de Direitos inglesa (Bill of Rights, 1689. NdT).
A razão pela qual há milhões de armas de fogo neste país, a razão
pela qual milhares de pessoas são sacrificadas cada ano no altar das
armas de fogo, é porque uma minoria de brancos descontentes, de
regiões rurais (empobrecidos), pouco instruídos, fez das armas o
totem tribal mais poderoso do país. O fato de ver o presidente
expressar todos seus horríveis sentimentos não pode senão
reconfortá-los. A sobreposição entre a política racista e a
cultura das armas de fogo se ilustra bastante com o tiroteio massivo
de El Paso, que parece ter sido inspirado pelo medo e a repugnância
do agressor ante uma “invasão hispânica do Texas”, segundo um
manifesto online que, como se pôde confirmar, é de sua autoria e
que apresenta indícios claros da retórica de Trump.
A razão que emerge é que os partidários do supremacismo branco,
assim apoiados e fortalecidos, utilizaram, finalmente, nossa cultura
niilista das armas de fogo para provocar uma onda de massacres
racistas: em Charleston (disparos contra a Igreja episcopal metodista
africana, em junho de 2015), em Poway (abril de 2019, disparos contra
uma sinagoga de San Diego) passando por El Paso. Como escreveu David
Atkins no Washington Monthly:
“Temos um problema com as armas de fogo. Temos um problema com o
supremacismo
branco.
Cada vez mais estão
entrelaçados”. De fato,
são, e sempre foram, a mesma
coisa.
Os massacres massivos foram, evidentemente, cometidos por todo
tipo de pessoas, misóginos violentos, jihadistas, doentes mentais.
Mas não são estes os que se mantêm firmes, com as armas prontas,
para impedir que o Congresso e os Estados aprovem uma reforma do
controle das armas de fogo; os que levam a cabo uma campanha política
formidável e financiada abundantemente através da NRA, os que
castigam os parlamentares que se atrevem sair da linha
pré-estabelecida; os que têm um controle mortal sobre a alma já
condenada do Partido Republicano. Não, a cultura das armas de fogo
prospera graças aos conservadores brancos que investiram a maior
parte de sua identidade política e cultural no direito a portar
armas letais. São os brancos conservadores que o governador (desde
2015) do Texas, Greg Abbott (republicano) tentava provocar (humor)
quando tuitou, há alguns anos, que estava “envergonhado” porque
seu Estado se situava atrás da Califórnia em relação à compra de
novas armas. São os brancos conservadores que o senador do Texas,
John Cornyn, apazigua dizendo-lhes que “simplesmente não temos
todas as respostas” quando se trata de resolver problemas
absolutamente evitáveis, como as matanças massivas. Foram os
brancos conservadores que tomaram o poder sobre um dos grandes
partidos do país e o submeteram a seus caprichos retrógrados.
Para eles, as armas de fogo não são uma questão de caça ou de
autodefesa, nem de espírito de fronteira nem de outras bandeiras que
se tornam visíveis cada vez que seu verdadeiro programa começa a se
manifestar. Trata-se de afirmar o primado da identidade de um grupo,
de protegê-lo das ameaças ao mesmo tempo reais (mudança
demográfica inexorável) e imaginárias (invasões de “violadores
e assassinos hispânicos”). Sabemos disso porque a NRA transmite de
maneira incessante esses temores seus próprios membros e acólitos.
Em 2017, aproximadamente seis meses depois do início da presidência
de Trump, a NRA publicou um anúncio no qual Dana Loesch (jornalista,
apresentadora de programas hiper-conservadores), porta-voz da NRA
naquele momento, enumera todos os crimes que “eles” – anônimos –
haviam cometido contra “nosso” estilo de vida: comparar Trump
com Hitler, fazer pública “sua” narrativa através das elites de
Hollywood, recrutar o “seu” ex-presidente (Obama) para lançar o
hashtag ¨#resistência. “A única maneira de terminar com isso, a
única maneira de salvar nosso país e nossa liberdade, diz Loesch, é
combater esta violência da mentira com o punho cerrado da verdade”.
O “nós ante os demais” (alterização), a paranoia, o chamado
pouco sutil às armas, são os sinais da propaganda supremacista
branca.
A NRA já se movia nos meios racistas muito antes da era Trump e
alcançou uma espécie de pico delirante sob a presidência de Barack
Obama (“seu” ex-presidente). Num anúncio de 2015, o chefe da
NRA, Wayne Lapierre, condenou Obama por não ter reprimido a
criminalidade em sua cidade natal de Chicago, onde “gansteres” e
“delinquentes” provocavam uma “carnificina própria do terceiro
mundo” com seus atos violentos. O que implica que o presidente
negro retirava com gosto as armas os camponeses brancos cada vez que
ocorriam massacres em massa, porém guardava silêncio sobre o
verdadeiro problema das armas utilizadas por criminosos negros.
“Espera que haja um crime que corresponda a suas intenções”,
dizia por então Lapierre, “e culpa o NRA”. Lapierre agregava:
“Os bons e honestos estadunidenses que vivem em zonas rurais, em
Nebraska ou em Oklahoma, ou que têm dois trabalhos no centro de
Chicago ou de Baltimore… veem isso tudo bem claro”. (O povo do
centro da cidade que somente tem um trabalho, são provavelmente tão
maus como os membros de gangue fazem parte essas bandas).
É certo que os massacres massivos somente representam uma pequena
fração das 33 000 mortes (por ano) causadas por armas de fogo nesse
país. Um terço de todas as mortes por armas de fogo podem ser
atribuídas a homicídios; a metade das vítimas são homens jovens e
dois terços desse segmento são afro-americanos. Contudo, uma vez
mais, não são os militantes afro-americanos os que protestam contra
o controle das armas de fogo com o pretexto de ter razões legais
para se armar até os dentes e levantando faixas com o slogan “noli
me tangere” (“não me toque”). São os conservadores brancos
que fazem isso, com o fito de consolidar sua dominação decadente.
Os atiradores de El Paso e de Poway representam uma tendência tão
nova quanto horrorosa, pois seus atos abomináveis selam um vínculo
inequívoco com os cantos de Charlottesville 1/ – “eles não vão
nos substituir” – e com um presidente que incita de maneira
recorrente o ódio racial e a violência. Porém esses massacres não
teriam sido possíveis sem um fenômeno pregresso, anterior inclusive
à fundação desse país. O grande presente que Donald Trump nos deu
é deixar de lado todas as falsas aparências que encobriram durante
muito tempo o debate sobre o controle das armas de fogo, em
particular, e sobre o “choque cultural” (uma espécie de
Kulturkampf à estadunidense), de maneira mais geral.
O argumento da origem da Constituição apela à longa e gloriosa
tradição revolucionária da cultura das armas, o “forte
individualismo” do ethos conservador,
ao qual mesmo Obama e outros liberais prestaram homenagem, fazem
parte de uma super-estrutura que foi concebida sob um princípio que
serve para perpetuar o poder de uma raça às custas de outras.
Tratar de resolver nosso problema das armas de fogo, assim
como tantos outros, da atenção da saúde à desigualdade é,
portanto, tratar de se opor a este problema mais amplo e mais antigo
do supremacismo branco que, se algo nos ensinou a presidência de
Trump, segue sendo o fato essencial da vida estadunidense.
Notas
1/
“O denunciante, Dick Anthony Heller, de 66 anos, guarda de
segurança, armado em seu trabalho, reivindicava o direito de manter
a arma em sua casa, pronta para ser utilizada em legítima defesa.
Desde 1976, a lei do distrito de Columbia, sede da Capital Federal,
proíbe de fato a posse de armas de fogo ao impedir seu registro: os
fuzis de caça devem ser desmontados tanto em casa como nos meios de
transporte, e as armas de mão compradas antes de 1976 devem ser
neutralizadas mediante um gatilho de segurança”.(Le Figaro,
26-6-2008)
2/ Um supremacista branco matou uma mulher ao lançar seu carro contra manifestantes que enfrentavam neonazis e supremacistas brancos em Charlottesville, Virginia, em 12 de agosto de 2017. Trump disse que havia “gente muito boa em ambos os lados” e que “os erros eram compartilhados”.