DOSSIÊ SOCIALISMO DEMOCRÁTICO NOS EUA: Vencer é nosso dever: A Convenção Nacional do Democratic Socialists of America
A convenção do DSA: o maior encontro socialista em décadas nos EUA
Nos últimos dias 2 a 4 de agosto ocorreu a 2ª Convenção Nacional do Democratic Socialists of America (DSA), o maior grupo socialista dos Estados Unidos que conta atualmente com cerca de 55 mil membros. Reunindo mais de mil delegados e delegadas na cidade de Atlanta, a Convenção foi o mais representativo encontro de socialistas nos EUA em muitas décadas, o primeiro desta envergadura desde o período de dura repressão contra os socialistas durante o Maccartismo nos anos 1950.
As delegações bastante jovens de todas as regiões do país se reuniram representando diversas lutas, tanto nas grandes cidades como em pequenos distritos e comunidades rurais, para definir as diretrizes do DSA para os próximos dois anos. Em um cenário de ataques sistemáticos do governo Trump, de possibilidades abertas com a campanha de Bernie Sanders e de crise social em temas como a imigração, o acesso à saúde, a violência policial, entre outros, a Convenção do DSA foi um passo muito importante para armar os próximos dois anos de ação da organização.
Mas afinal, o que é o DSA?
O DSA é uma organização historicamente fruto da ruptura dos socialistas democráticos liderados por Michael Harrington para fora do Partido Socialista dos EUA no início dos anos 1970. Foi fundado oficialmente em 1982, após a fusão com o New American Movement, e já existia há décadas na política norte-americana atuando em bastante proximidade com o Partido Democrata. Entretanto, nos últimos anos o DSA passou por uma grande reformulação que aprofundou sua independência política e o levou a posições bem mais à esquerda, inclusive se retirarando da Internacional Socialista social-democrata em sua Convenção de 2017. A partir da última campanha eleitoral de Bernie Sanders pelas prévias do Partido Democrata o DSA viveu um grande crescimento de filiações e tornou-se o centro de convergência de grupos de socialistas e ativistas independentes do dinâmico socialismo democrático norte-americano. Neste processo de polarização e de necessidade de respostas contra Donald Trump, o DSA é o principal polo da esquerda socialista no país e teve papel central na inserção de debates que hoje são parte do cenário político nos EUA, dando destaque a temas como a necessidade de um sistema universal de saúde (Medicare for All), o cancelamento das abusivas dívidas estudantis, entre outros.
O DSA não é um partido, é uma organização-movimento independente que disputa as prévias do Partido Democrata principalmente devido à ultra-restritiva legislação eleitoral dos EUA. Apesar disso, boa parte de seus militantes têm consciência da necessidade da construção de um instrumento independente dos trabalhadores. O orgulho da identidade socialista, a independência política e o classismo presente entre a militância do DSA chamam atenção nos espaços desta organização, e a aprovação da resolução recente na qual nenhum outro candidato presidencial democrata será apoiado oficialmente pela organização demonstra seu caráter de independência perante o establishment partidário tradicional.
O sucesso eleitoral de figuras ligadas ao DSA, como as deputadas federais Alexandria Ocasio-Cortez e Rashida Tlaib, a senadora estadual de Nova York Julia Salazar, os seis vereadores e vereadoras socialistas eleitos em Chicago, entre outros exemplos, ajudou a colocar a organização como representante do polo socialista no cenário político norte-americano e como tal são tratados pela mídia, com a Convenção repercutindo em diversos veículos de imprensa. Em poucos anos, a ideia do socialismo retomou lugar na sociedade norte-americana e hoje as congressistas socialistas são um símbolo da luta contra Trump no parlamento.
O DSA também teve papel importante nas greves de professores que se espalharam pelo país recentemente, apoiando as lutas e algumas vezes tendo professores socialistas à frente do processo, além de realizar atividades de solidariedade prática e fortalecer as grandes marchas de apoio à educação. Hoje, há um movimento onde muitos companheiros e companheiras do DSA começam a trabalhar nas bases de categorias como professores e trabalhadores da saúde, aprofundando a chamada estratégia Rank-and-File, ou seja, a organização democrática dos trabalhadores pela base.
Para qualquer análise sobre o DSA é preciso ter em mente tanto os complexos desafios da construção de uma organização socialista nos EUA como o grande hiato na história do movimento socialista neste país, extremamente perseguido e estigmatizado por décadas de propaganda contra o “perigo vermelho” durante a Guerra Fria e depois. O espírito presente no conjunto da militância do DSA é de construção e reconstrução, bastante antiburocrático, com debates abertos sobre reflexões teóricas e alternativas práticas para enfrentar os desafios do contexto atual. É uma organização muito viva que também tem como característica a surpreendente juventude tanto de seus membros como de sua direção política.
A Convenção de 2019
A Convenção ocorre a cada dois anos e tem como tarefa central a votação de resoluções de ação e de princípios, além da escolha do NPC (National Political Committee, a direção nacional). É um sistema muito diferente do brasileiro porque não se apresentam teses gerais (somente resoluções), tornando permanente o debate sobre métodos e procedimentos. Além disso, a votação para a direção não se dá por chapas, mas nominalmente através uma lista de preferências, e ainda não existe um organismo nacional intermediário de direção, evidenciando a etapa de desenvolvimento da organização.
As tendências internas do DSA são chamadas “caucuses” (“caucus” no singular) e se organizam de maneira mais fluida, com alguns grupos inclusive recusando esta identidade. A principal polarização política se dá entre uma posição próxima do marxismo (como no caso dos caucuses Bread & Roses e Socialist Majority) e outra ligada aos ideais do anarquismo e do socialismo utópico (como Build e Libertarian Socialist), e estas diferenças na prática se expressaram na Convenção principalmente na polêmica entre o fortalecimento de uma organização nacional ou a sua descentralização total.
O caráter da organização é democrático e permeável. Através de um sistema de debate onde o plenário decide sempre a continuidade da discussão ou a ida à votação, as deliberações são debatidas de maneira exaustiva e permitem a expressão e condições de disputa para posições minoritárias. Ainda que pareça um tanto confuso e que as vezes se troque o debate político por questões de procedimento, é interessante notar que este sistema dá reconhecimento e legitimidade ao processo de tomada de decisões, algo muito importante durante este momento de consolidação do DSA.
Outro ponto importante da Convenção foi a agenda da delegação internacional, contando com representantes de mais de 10 países de todos os continentes debatendo as situações locais e alternativas de organização em escala global. A política internacionalista do DSA teve avanços importantes no encontro de Atlanta, que decidiu por fortalecer seu Comitê Internacional e aprofundar relações com os grupos em luta em todo o continente americano. É interessante notar a importância do critério democrático também nas análises internacionais, com a organização se colocando em defesa de processos populares de luta democrática em todo mundo e no geral rechaçando as posições políticas do chamado “campismo” . O DSA ainda pode avançar muito no debate internacionalista e o novo Comitê Internacional parece ter condições políticas para cumprir esta tarefa, estratégica para socialistas de todo mundo dada a diversidade de povos e a multiplicidade de representações políticas presentes nos EUA.
As votações da Convenção aprovaram importantes resoluções como o fortalecimento da estratégia Rank-and-File, a promoção de uma campanha eleitoral com uma perspectiva classista, o fortalecimento da campanha Medicare for All, um plano nacional de educação socialista, a defesa dos imigrantes e das fronteiras abertas, entre outro pontos. Da mesma forma, as resoluções aprovadas foram no sentido de fortalecer as instâncias organizativas nacionais do DSA, dando condições para uma organização que se construa e dê respostas em escala nacional, construindo campanhas e fortalecendo seus organizamos de deliberação e ação. Alguns dos momentos mais significativos da Convenção foram justamente durante a participação de lideranças trabalhadoras combativas, como a líder dos professores de Los Angeles Cecily Myart-Cruz (UTLA) ou a presidente da Associação dos Atendentes de Voo Sara Nelson (AFA-CWA).
Outra resolução importante aprovada foi uma orientação latina para a organização, com tradução de veículos de comunicação e outros materiais para o espanhol. É um passo importante no avanço do diálogo com a comunidade latina e se combina com a defesa da política de fronteiras abertas e de defesa dos imigrantes indocumentados, demonstrando a coerência política e à disposição do DSA em avançar luta das comunidades imigrantes. O papel dos indocumentados é central na economia norte-americana, sendo os trabalhadores mais explorados e ao mesmo tempo ameaçados e perseguidos pelas agências policiais e de imigração, e o DSA parece caminhar no sentido de construir cada vez mais a luta dos imigrantes como parte de sua identidade.
O que vem pela frente
Os desafios atuais do DSA são grandes. Os próximos meses serão essenciais para a definição eleitoral e a campanha de Sanders representa uma incrível oportunidade de aproximar pessoas, organiza-las e aumentar nossas fileiras perante um cenário de crescente polarização da política norte-americana. Do lado de Trump, a retórica da radicalização anti-imigração e da repressão aos movimentos sociais está cada vez mais forte, exigindo dos socialistas desse país cada vez mais organização e tenacidade.
Apesar desses grandes desafios, a impressão que fica é de que os socialistas democráticos estadounidenses estão preparados e são parte importante da resistência socialista internacional, enfrentando todas as contradições e possibilidades da luta política no centro do imperialismo. A classe trabalhadora norte-americana é vibrante e os camaradas do DSA tem a perspectiva de se construir por dentro dela, forjando uma ferramenta política com força na juventude e possivelmente também nas comunidades imigrantes, afirmando uma alternativa política socialista com grande audiência e espaço para crescer.
Após décadas desérticas, o movimento socialista renasce nos Estados Unidos de maneira forte e empolgante, abrindo um um processo político muito rico. E, mesmo com grandes desafios pela frente, o DSA é hoje com certeza uma organização muito importante para a luta anti-imperialista em todo mundo.