Assange, a imprensa em perigo

FONTE: PÁGINA12 – 26/02 – Tradução: Charles Rosa

A liberdade de
expressão, a liberdade de imprensa e o direito de acesso à
informação, todos juntos, direitos essenciais para a democracia,
travam nestes dias uma batalha determinante. Uma batalha na qual as
sociedades civilizadas jogam em grande medida a essência mesma da
democracia, ou seja, a prestação de contas dos governantes ante
seus cidadãos. Me refiro ao juízo de extradição que começa em
Londres contra o jornalista Julian Assange, a pedido dos Estados
Unidos.

Se o fundador da
agência de notícias WikiLeaks fosse entregue a este país, teria se
sacrificado a transparência de nossos governos ante o punhal da
segurança nacional. A imprensa mundial ficaria numa situação
alarmante, podendo ser processada pela justiça estadunidense, sem
defesa factível, a sua inteira vontade, sempre que considere que uma
concreta publicação tenha afetado suas poderosas instituições.
Nesse momento, o exercício do poder executivo, por demais omnímodo
na atual administração, avançaria por uma senda totalitária
perigosíssima, sem uma imprensa combativa que fiscalize sua atuação
e assegure que os soberanos cidadãos disponham de informação
suficiente sobre seus governantes para controlar sua atuação.

O senhor Assange é
acusado pelas autoridades norte-americanas de cometer 18 delitos, 17
dos quais registrados sob a Lei de Espionagem de 1917, uma anacrônica
norma para perseguir espiões no marco da Primeira Guerra Mundial; e
um relacionado com a suposta ajuda à militar Chelsea Manning para
manejar os computadores desde onde, dizem, saiu a informação. A
petição de pena é de nada menos que 175 anos de cárcere, o que
implica de fato uma cadeia perpétua, em condições de isolamento
quase absoluto, por aplicação das denominadas “Medidas
Administrativas Especiais’ (SAMS, em inglês) não lhe será
permitido nenhum contato com a família, somente com seus advogados
que não poderão transmitir mensagem algum sem enfrentar acusações
criminais. Seu crime, a publicação dos diários de guerra do Iraque
e Afeganistão em 2010, os telegramas do Departamento de Estado e os
arquivos de Guantánamo sobre os ali encarcerados. Algumas
publicações que evidenciaram a realização de crimes de guerra,
torturas sistemáticas e demais crimes internacionais.

É necessário recordar que o Wikileaks é uma agência de notícias
cujo valor agregado foi criar um sistema de firewall nas Ips para
garantir que qualquer pessoa, qualquer ‘whisteblower’ do mundo,
pudesse enviar informação sobre corrupção ou autoria de delitos
para a plataforma, para que se pudessem conhecer assegurando o
anonimato da fonte. Por isso, ninguém, nem sequer o próprio Julian
Assange, pode conhecer a origem da informação publicada na
plataforma. Paradoxalmente, a Diretiva europeia sobre os alertadores
contra a corrupção, vai nesse sentido.

Sobre a base dessa inovadora ideia que submetia os poderosos a que
suas misérias pudessem ser conhecidas, a agência de notícias
publicou informação de diversa índole, como o derramamento de
resíduos tóxicos na Costa do Marfim pela multinacional Trafigura,
os manuais de instrução da base militar de Guantánamo, evidências
de corrupção e execuções extrajudiciais no Quênia ou a censura
de Internet na China, entre outros. A inovação introduzida no mundo
da imprensa por WikiLeaks através de seu fundador, Julian Assange,
foi premiada por múltiplos prêmios internacionais como o The
Economist New Media Award em 2008, o Prêmio de Novas Mídias da
Anistia em 2009, a Medalha de Ouro da Fundação da Paz de Sidney em
2011, o Prêmio Global Exchange Humam Rights People’s Choice em
2013, o Prêmio à Defesa dos Direitos Civis Yoko Ono Lennon em 2013,
além das indicações para o Prêmio Mandela das Nações Unidas em
2015 ou as indicações durante vários anos para o Prêmio Nobel da
Paz.

Entretanto, os Estados Unidos jamais perdoaram que o Wikileaks
submetesse sua política exterior ao escrutínio da opinião pública
mundial. Nunca aceitou que o Wikileaks evidenciasse o cometimento de
crimes internacionais por parte de seu Exército. De fato, o maior
paradoxo norte-americano é que a pessoa que revelou esses crimes
encontra-se submetida a um processo ante um Grand Jury em Virgínia,
enquanto que os militares que cometeram esses crimes estão
absolutamente impunes na mesma jurisdição norte-americana. Todos
recordamos aquele vídeo no qual um helicóptero Apache que
sobrevoava um bairro de Bagdá disparava indiscriminadamente contra
civis, inclusive contra um veículo com uma família e crianças que
iam à escola. Esses militares que vivem tranquilamente nos Estados
Unidos, enquanto Julian Assange enfrenta 175 anos de cárcere.

Tampouco perdoaram os Estados Unidos a quem, segundo a justiça desse
país, teria sido a fonte do WikiLeaks, Chelsea Manning. Em fevereiro
de 2012, o Relator da ONU contra a Tortura informou que Manning teria
sido submetida a tratamento cruel, inumano ou degradante.
Posteriormente condenada e sua pena comutada pela Administração
Obama ao terminar seu mandato, na atualidade encontra-se na prisão
por se negar a declarar contra Assange.

O calvário de Assange desde a publicação dos diários de guerra do
Iraque e Afeganistão não pode ser denominado mais do que tortura,
como foi confirmado também pelo Relator da ONU contra a Tortura,
Nils Melzer. Em 2012, teve que se refugiar na minúscula Embaixada do
Equador em Londres para evitar sua entrega a Suécia, onde eram
negadas garantias de não-extradição aos Estados Unidos, por um
caótico processo sem sentido algum que jamais formulou acusações e
que se encerrou três vezes sem qualquer evidência. Durante quase
sete anos, Julian Assange viveu sem acesso à luz solar nem à ar
fresco, com um padecimento físico e psicológico indescritível.
Atualmente, já detido depois de que as pressões econômicas dos
Estados Unidos ao atual Governo do Equador frutificaram, sua situação
é insustentável. Numa cárcere de segurança máxima, conhecida
como a “Guantánamo Britânica”, com um limitado acesso a
advogados e numa situação praticamente de isolamento.

A extradição que começa em 24 de fevereiro e que culminará em 5
de junho deve inapelavelmente concluir com o indeferimento da entrega
do jornalista. O perigoso precedente que esta extradição pode supor
foi advertido por praticamente a totalidade dos organismos
internacionais do mundo. Já no começo de 2016, o Grupo de Trabalho
de Detenções Arbitrárias do Conselho de Direitos Humanos da ONU
indicou que a situação de Assange era de detenção arbitrária,
requerendo ao Reino Unido e à Suécia sua imediata libertação e
inclusive uma indenização pelos danos causados. A Corte
Interamericana de Direitos Humanos em 30 de maio de 2018 emitiu uma
opinião consultiva vinculada a seu processo onde indicava a
obrigação de garantir o asilo. Múltiplos relatores da ONU de
mandatos como a tortura, a privacidade, as execuções
extrajudiciais, e demais organismos do Conselho de Direitos Humanos
da ONU, igualmente se pronunciaram contra esta arbitrariedade
perpetrada pelos Estados Unidos. Além disso, desde a sociedade
civil, praticamente a totalidade das organizações de direitos
humanos cerraram fileiras indicando que a imprensa livre do mundo
estão em perigo com este caso. De fato, também os meios de
comunicação do mundo apontaram que seus jornalistas
encontrar-se-iam em perigo com a entrega de Assange aos Estados
Unidos.

A justiça britânica deve indeferir esta perigosa entrega e pôr fim
à perseguição política. Em primeiro lugar, porque Julian Assange,
como jornalista, está protegido pela Primeira Emenda da Constituição
dos Estados Unidos, onde se inclui o direito à liberdade de imprensa
e à publicação da informação veraz obtida de fontes anônimas.
Em segundo lugar, pela desproporção que implica a aplicação da
Lei de Espionagem e uma pena de 175 anos de cárcere contra um
jornalista em exercício. Mas sobretudo, em terceiro lugar, por
gravíssimos feitos que afetam outros países, como o fato de que a
Audiência Nacional está investigando a empresa de segurança
espanhola que prestava serviços na embaixada por, supostamente,
haver instalado microfones ocultos, haver extraído informação dos
telefones, fotocopiado documentos pessoais, e instalado câmaras de
vídeos ocultando microfones nas mesmas, com a suposta finalidade de
entregar essa informação aos Estados Unidos.

Um abusivo e totalitário esquema de espionagem contra Assange e seus
advogados que evidenciaria uma absoluta falta de garantias do
jornalista ante a jurisdição norte-americana.