DOSSIÊ CORONAVÍRUS: Coronavírus, agronegócio e estado de exceção

FONTE: La Jornada – 29/02 – Tradução: Charles Rosa

Muito se diz sobre o coronavirus Covid-19, e no entanto muito pouco. Há aspectos fundamentais que permanecem à sombra. Quero nominar alguns destes, distintos porém complementares.

O primeiro se refere ao perverso mecanismo do capitalismo de ocultar aa verdadeiras causas dos problemas para não fazer nada sobre elas, porque afeta seus interesses, mas sim fazer negócios com a aparente cura dos sintomas. Entretanto, os estados gastam enormes recursos públicos em medidas de prevenção, contenção e tratamento, que tampouco atuam sobre as causas, pelo que esta esta forma de enfrentar os problemas se transforma em negócio cativo para as transnacionais, por exemplo, com vacinas e medicamentos.

A referência dominante a vírus e bactérias é como se estes fossem exclusivamente organismos nocivos que devem ser eliminados. Prima um enfoque de guerra, como em tantos outros aspectos da relação do capitalismo com a natureza. Contudo, por sua capacidade de saltar entre espécies, vírus e bactérias são parte fundamental da coevolução e adaptação dos seres vivos, assim como de seus equilíbrios com o meio ambiente e a saúde, incluindo aos humanos.

O Covid-19, que agora ocupa as manchetes mundiais, é uma estirpe da família dos coronavírus, que provocam enfermidades respiratórias geralmente leves mas podem ser graves para uma reduzida porcentagem dos afetados graças à sua vulnerabilidade. Outras estirpes de coronavírus causaram a síndrome respiratória aguda severa (SARS, por suas siglas em inglês), considerado epidemia na Ásia em 2003 mas desaparecido desde 2004, e al síndrome respiratória aguda do Oriente Médio (MERS), praticamente desaparecido. Igual ao Covid-19, são vírus que podem estar presentes em animais e humanos, e como sucede com todos os coronavírus, os organismos afetados tendem a desenvolver resistência, o qual gera, por sua vez, uma nova mutação do vírus.

Há consenso científico em que a origem deste novo vírus – igual a todos os que se declararam ou ameaçado ser declarados como pandemia em anos recentes, incluindo a gripe aviária e a gripe suína que originou no México – é zoótica. Ou seja, provém de animais e depois sofre mutação, afetando humanos. No caso do Covid-19 e o SARS se presume que proveio dos morcegos. Ainda que se culpe o consumo destes em mercados asiáticos, na realidade o consumo de animais silvestres em forma tradicional e local não é o problema. O fator fundamental é a destruição dos hábitats das espécies silvestres e a invasão destes por assentamentos urbanos e/ou expansão da agropecuária industrial, com o qual se criam situações próprias para a mutação acelerada dos vírus.

A verdadeira fábrica sistemática de novos vírus e bactérias que se transmitem a humanos é a cria industrial de animais,  principalmente aves, porcos e vacas. Mais de 70 por cento de antibióticos a escala global se usam para a engorda ou prevenção de infecções em animais não enfermos, o que tem produzido um gravíssimo problema de resistência aos antibióticos, também para os humanos. A OMS clamou desde 2017 às indústrias agropecuária, psicultora e alimentar para que deixem de utilizar sistematicamente antibióticos com o objetivo de estimular o crescimento de animais sadios. A este caldo as grandes corporações agropecuárias agregam doses regulares de antivirais e pesticidas dentro das mesmas instalações.

Não obstante, é mais fácil e conveniente culpar alguns morcegos ou civetas – os quais seguramente tiveram seus hábitats naturais – que questionar estas fábricas de enfermidades humanas e animais.

A ameaça de pandemia é também seletiva. Todas as enfermidades consideradas epidemias nas duas décadas recentes, inclusive o Covid-19, produziram muito menos mortes que enfermidades comuns, como a gripe – da qual, segundo a OMS, morrem até 650 mil pessoas por ano globalmente.  Não obstante, estas novas epidemias motivam medidas extremas de vigilância e controle.

Tal como observa o filósofo italiano Giorgio Agamben, se afirma assim a tendência crescente a utilizar o estado de exceção  como paradigma normal de governo.

Referindo-se ao caso do Covid-19 na Itália, Agamben pontua que “o decreto-lei aprovado imediatamente pelo governo, por razões sanitárias e de segurança pública, dá lugar a uma verdadeira militarização dos municípios e zonas em que se desconhece a fonte de transmissão, fórmula tão vaga que permite estender o estado de exceção a todas as regiões. A isso, agrega Agamben, se soma o estado de medo que se estendeu nos últimos anos nas consciências dos indivíduos e que se traduz numa necessidade de estados de pânico coletivo, aos quais a epidemia volta a oferecer um o pretexto ideal.

Assim, num círculo vicioso perverso, a limitação da liberdade imposta pelos governos é aceita em nome de um desejo de segurança que tem sido induzido pelos mesmos governos que agora intervêm para satisfazê-la.  (https://tinyurl.com/s5pua93).