Coronavírus no Marrocos: a crise que está por vir

FONTE: NPA | 19/05 | TRADUÇÃO: Charles Rosa

Marrocos – Coronavírus: As crises por vir

Um informe da OMS (2018) apontava, falando do sistema de saúde marroquina, que “o setor público compreende 2689 centros de atenção primária e 144 hospitais em diferentes níveis: local, provincial, regional e terciário. O número total de camas hospitalares é de 22 146. O setor privado está composto por 6763 consultórios privados e 439 clínicas, concentradas em zonas urbanas e no norte da costa atlântica […] . A densidade é de 0,68 médicos e 0,84 enfermeiras e parteiras para cada mil habitantes. Além disso […] o investimento no setor da saúde segue sendo baixa (menos de 6% do PIB) e o gasto direto dos lares é alto (ao redor de 54%)”.

Estamos longe do padrão estabelecido pela OMS, que estipula que se necessita um médico por cada 650 habitantes e uma participação de 10 a 12% no orçamento estatal1. O sistema hospitalar passou por um processo de desinvestimento, diminuição de equipes, instalações em mal estado e más condições higiênicas, fechamento de serviços, tudo isso em benefício de clínicas privadas. O acesso à atenção “é preciso ser pago”, as e os pacientes frequentemente têm que comprar o equipamento básico eles mesmos ou “pagar” para não permanecer na lista de espera indefinidamente… O sistema atual não é, em qualquer caso, capaz de fazer frente a uma propagação inclusive moderada de infecções. O porta-voz do governo havia apresentado primeiro a estatística de 250 camas de cuidados intensivos (para uma população de 35 milhões de habitantes) antes de corrigi-la para acima (1640 das quais um terço está no setor privado) 2. Neste contexto no qual apareceu a epidemia no Marrocos. Dez dias depois da aparição, em 4 de março, do primeiro caso de Covid-19, se fecharam as fronteiras [3] e as escolas, e se declarou o confinamento em 20 de março, ao mesmo tempo que o estado de emergência sanitária. Até hoje (17 de maio), o informe oficial registra 6.798 casos de infecção, 3.645 curas e 192 falecimentos 4. A reação das autoridades continha por um lado aspectos financeiros e sociais e, por outro lado, sanitários e repressivos.

Aspectos financeiros e sociais

Isso se traduziu principalmente na criação de um “Fundo especial dedicado à gestão da pandemia do Coronavírus (Covid-19)” cujo objetivo seria assegurar “o financiamento de medidas para combater o coronavírus, atualizar o dispositivo médico e apoiar a economia através de medidas propostas pelo Comitê de Vigilância Econômica (CVE) criado para este propósito”. Além do orçamento geral do estado, o fundo também se beneficiará da contribuição de vários organismos e instituições [5]. Este CVE está composto por oito membros do governo, o Bank Al Maghrib (BAM), o Grupo Profissional de Bancos no Marrocos (GPBM), o CGEM (sindicato patronal) e a Federação de Câmaras de Comércio, Indústria e Serviços e o das câmaras artesanais. Estão aí algumas das grandes fortunas do país e altos funcionários responsáveis de decidir o destino de milhões de lares “vulneráveis”. Entre as principais medidas que foram sendo tomadas: a suspensão do pagamento de “encargos sociais” (cotização CNSS), o estabelecimento de uma moratória sobre o reembolso dos empréstimos bancários às empresas, o alargamento dos prazos fiscais. Assim mesmo, as contribuições de diferentes companhias foram qualificadas como doações com “natureza de cargos contáveis dedutíveis do resultado fiscal”.

Outras medidas concernem à população: o pagamento de uma importância de 2000 dirhams (180 euros) para as pessoas forçadas a um desemprego técnico, sempre que estejam dadas de alta na CNSS (Caixa Nacional dea Segurança Social), sabendo que o número de empregados declarados é extremamente baixo [6]. Para as outras categorias, a ajuda proporciona, em particular para os que estavam registrados em RAMED [7] no fim de dezembro de 2019, “800 dirhams (72 euros) para lares de duas pessoas ou menos, 1000 dirhams (90 euros) para lares de três a quatro pessoas, 1200 dirhams (108 euros) para lares de mais de quatro”. Quanto aos que estão imersos na invisibilidade total, sem se beneficiar nem do CNSS nem de RAMED, (quase em 46% da população ativa não se beneficia de nenhuma cobertura médica), “as mesmas quantidades seriam outorgadas gradualmente através de uma plataforma eletrônica dedicada à apresentação de declarações”.

O que isso mostra explicitamente se pode resumir em alguns pontos:

a) a gestão do fundo não corresponde ao governo, completamente marginalizado neste tema, o que reflete a natureza absoluta de um poder que em tempos de crises nem sequer se molesta com sua fachada democrática.

b) a prioridade dada a manter os interesses das grandes empresas. Além do uso das somas arrecadadas no Fundo, o governo de El Othmani aprovou a superação do limite máximo de empréstimos externos para 2020. Uma decisão seguida imediatamente por uma solicitação dirigida ao Fundo Monetário Internacional (FMI), solicitando a ativação da “Linha de precaução e liquidez”. Isso equivale a quase três bilhões de dólares, aprovada pelo conselho de administração do FMI em 17 de dezembro de 2018. Não está destinado à crise sanitária.

c) a ausência de transparência nas arbitragens e a distribuição do orçamento específico. Quanto se destinará ao setor da saúde? Com base em que critérios?

d) a natureza conjuntura da ajuda financeira ignorando orçamentárias a mais longo prazo, uma “lei de planejamento orçamentário” para reconstruir um sistema de saúde eficiente.

e) a continuação das políticas de austeridade em nome da prioridade nacional de luta contra a epidemia: congelamento de carreiras profissionais, promoções e contratações, dos “orçamentos não-estratégicos” (?), mas também, uma drenagem direta que afeta os salários das e dos funcionários públicos (correspondente a três dias hábeis), inclusive as e os aposentados. Esta drenagem ignora uma tributação específica de grandes fortunas e exime de fato à patronal. Trata-se de fazer financiar, às categorias sociais mais modestas, os fracassos das políticas públicas em matéria de saúde e de ajudar às empresas a superar a passagem da crise. Para alguns, caridade pública, demissões massivas, cortes salariais, sangrias obrigatórias, para outros, todas as ajudas para compensar a queda dos lucros. Trata-se no fundo da aplicação da viagem princípio de “socialização das perdas”.

A “política social” se reduz a uma lógica de caridade pública. O que representa a soma de 1200 dirhams para lares de quatro pessoas ou mais? Sem mencionar os atrasos na verificação das solicitações por parte das autoridades locais, com um risco real de arbitrariedade. Segundo os dados existentes, o número de empregadas e empregados declarados no CNSS e com licença por enfermidade seria de 578 208, mas esta estatística deveria aumentar significativamente. No caso das e dos Ramedistas (Regime de Assistência Médica – RAMED), se nos baseamos na documentação da lei de finanças de 2020, as pessoas afetadas representariam 5,49 milhões de lares ou 14,4 milhões de beneficiários e beneficiárias. Por outro lado, não sabemos o número extato de pessoas que têm cartões RAMED válidas em 31 de dezembro de 2019, uma das condições para se beneficiar da ajuda.

Para as e os “sem RAMED”, a tarefa de sua identificação é ainda mais difícil. Se nos baseamos em dados da Alta Comissão de Planificação, esta categoria de pessoas trabalhadoras informais e empregadas não declaradas (muitas e muitos artesãos, jornaleiros, vendedores ambulantes, entregadores, cuidadores, ajudantes do lar, trabalhadores da construção ou na indústria da construção ou na agricultura…) poderia incluir até cinco milhões de pessoas. É preciso ter em conta que mais de um mês depois do confinamento, quando a trama da segunda entrega deveria haver começado já em 7 de maio, há muita gente que não recebeu a “primeira” entrega, ou nem sequer “cestas de alimentos” irrisórias. Beneficiários de RAMED ou não, constituem o coração da economia informal de sobrevivência e mais de 91% deles se encontram numa situação de pobreza absoluta.

Sobre o confinamento

Este componente financeiro e “social” se combina com medidas destinadas a confinar à população, mas que resultam contraditórias e problemáticas por várias razões:

– Os setores populares vivem de uma “economia móvel” e do trabalho jornaleiro. Importante mobilidade geográfica das pessoas para mercados de todo tipo, movimento de mercadorias segundo oportunidades, conexões informais desde diferentes lugares e pessoas. Esta economia do apanhar-se em diferentes modos de circulação está incrustada em práticas sociais nas quais a vida social e os mercados de subsistência estão bem estabelecidos. Esta forma de economia foi brutalmente detida pelo confinamento que paralisou todas as formas de deslocamento.

– Do mesmo modo, as condições de proximidade espacial ou de moradias super-habitadas nos bairros de classe trabalhadora constituem um limite para a efetividade de uma política de confinamento. O vírus se transmitiu numa primeira etapa em vizinhanças específicas e dentro das células familiares.

– Se rechaça a questão de deter a produção em todos os setores não essenciais. Assim, os centros de atenção telefônica, as fábricas, as obras da construção, o complexo minerador, as grandes explorações agrícolas [8], ou setores administrativos que se concentram, sem nenhum meio de proteção, ou tardiamente ou de maneira ineficaz e suficiente, centenas ou milhares de empregadas e empregados são mantidos [9]. Assim, há algumas semanas, uma centena de trabalhadoras se infectaram numa fábrica francesa deslocalizada que produz equipes paramédicos na região de Casablanca, mas ocorre o mesmo em fábricas têxteis, centros de atenção telefônica, supermercados (Fez, Tanger, Marrakesh, Tetuan …), fábricas de conservas (Larache, Safi, Kenitra), de fios (Kenitra …). Cada semana se anuncia um novo caso. À medida que o tempo passa, mais parece que os focos principais por vir se cristalizarão em fábricas e lugares de trabalho. Apesar da existência de uma comissão de controle governamental destinada a verificar o cumprimento dos requisitos de saúde das empresas, estes últimos rara vez se observam, a organização despótica do trabalho e as formas de super-exploração impostas coexistem mal com o princípio de segurança das e os trabalhadores. Esta situação gera resistências específicas das e dos trabalhadores: a da solicitação de testes antes de retomar o trabalho, a das medidas de saúde adaptadas às condições de trabalho. Existe uma contradição entre o requisito de confinamento que se supõe lhes concerne e a obrigação, sob pena de demissão ou de não pagamento, de continuar trabalhando.

Políticas sanitárias realizadas sob el estado de emergência

As autoridades contam com o fato de ter impulsionado uma política de contenção precoce. O discurso oficial se pretende tranquilizador, sugerindo que a epidemia está sob controle, que quase se alcançou o pico, que se faz o que se necessita, mas quanto mais tempo passa, mais parece que não há controle sobre a dinâmica de contágio que tem sua cota de desconhecido, dada a debilidade dos testes. A desaceleração da epidemia não significa a desaparição do vírus. Durante todo este período, a ordem principal era ficar em casa, argumentando questões de segurança e a logística própria do Ministério do Interior. O confinamento se limita a uma ordem que se executará unicamente porque assim ordena o Estado. Se em outros países se aplaude às e aos sanitários, no Marrocos se pede aplaudir, sem êxito, à política e cantar o hino nacional. Não se trata somente de convencer e fazer um trabalho educativo, mas também de responder às questões sociais específicas que uma política de confinamento pode gerar com o tempo e em particular a perda de recursos para setores importantes da população e as condições de vida nas moradias populares. O fato, além disso, de que o chamado ao confinamento vai acompanhado de um enfoque punitivo [10] ou com o objetivo de destruir carros de venda itinerante ou azoques informais estabelecidos revela a permanência da guerra contra as e os pobres, muito mais que a luta contra o vírus. Sistematizam-se a evacuação dos mercados informais e a proibição da ocupação do espaço público, inscrita desde há vários anos na agenda estatal.

Na gama de meios utilizados, o Estado optou por desenvolver o uso obrigatório de máscaras. O Ministro da Indústria disse que o Marrocos agora produz mais de oito milhões por dia. A necessidade real é muito maior graças às necessidades de deslocamento [11] e sabendo que as máscaras em questão têm um uso limitado no tempo (3-4 horas). Além da controvérsia sobre o nível de proteção oferecido ou seu cumprimento das normas internacionais [12], muitas pessoas denunciaram a dificuldade de obtê-las. Os lotes de dez pacotes contêm protótipos defeituosos. Apesar disso, caem as sanções pela obrigação de usar máscaras quando estas às vezes não se encontram e se distribuem de maneira desigual. Há também que ter em conta que esta situação favoreceu um comércio criminoso privado: milhares de máscaradas consideradas confiáveis (ffp2) se venderam a vários centros hospitalares e resultaram ser inadequadas, com risco para a saúde do pessoal de enfermaria; igualmente circulavam máscaras que não haviam recebido nenhuma validação. Pode-se especular sobre os preços básicos dos alimentos, e fazer da penúria de máscaras um mercado lucrativo. O que se revela aqui, em primeiro lugar, é a ausência de um controle público estabelecido há muito tempo sobre os processos de produção e distribuição de equipamentos médicos básicos, a ausência de existências que satisfaçam as necessidades, a lógica predatória prevalecente. Esta situação de escassez, real ou construída, estimula a, quando se viaja, usar a mesma máscara para evitar sanções, com o risco de promover novas cadeias de contágios.

As autoridades também anunciaram a compra de 100 000 testes de “detenção rápida” para ampliar a detenção precoce (atualmente ao redor de 2000 por dia). Sua aquisição real fica por verificar devido às dificuldades de fomento. Em qualquer caso, isso tem mais que ver com uma extensão das possibilidade de detenção, principalmente nas grandes cidades, dos contatos de pessoas que contraíram o vírus, mas por debaixo de uma política que permitiria um diagnóstico mais amplo. Além disso, o governo planeja rastrear a Covid-19 mediante uma aplicação específica como se experimentou em outros lugares. O risco é que este software se use para outros usos, para rastrear cidadãos em lugar de vírus, especialmente porque o Ministério do Interior será seu proprietário, sendo o Ministério de Saúde somente o usuário temporal do sistema.

A primeira impressão que se desprende é o predomínio de um discurso de comunicação dirigido a sugerir que as respostas à situação de emergência sanitária são em si mesmas suficientes, adaptadas e que garantem o controle da situação. A crise não existe. Não é social, nem política, nem de saúde. Tudo está gestionado. Esta visão idílica que valoriza o estado de segurança não encaixa bem com a realidade, porque em realidade a epidemia é um inimigo heterodoxo: se alimenta, sem lutar, das falhas do sistema: o tipo de moradia e urbanização, a falta de um sistema de saúde baseado nas necessidades, dependência do mercado mundial de medicamentos [13], os equipamentos, a realidade massiva das lógicas de sobrevivência que fazem da rua o único espaço de solução à precariedade, o despotismo no el lugar de trabalho. Aí está o limite das ações estatais levadas a cabo por uma lógica de segurança. A um somente lhe pode surpreender a severidade das sações em caso de descumprimento do confinamento em vizinhanças de classe trabalhadora e o descuido com o que se tratam as empresas, as cárceres [14] e as grandes superfícies comerciais, que não empregam nenhuma regra sanitária. Não se combate contra um vírus da mesma maneira que contra a oposição social e política. Ainda menos mediante uma aparência de política voluntarista na qual o que se anuncia é mais importante que o que se realiza. Além disso, sem ter a possibilidade de verificar independentemente a veracidade das estatísticas, a todos os níveis. E, sobretudo, inclusive em caso de controle, isso não dá uma certeza absoluta sobre as possíveis evoluções, já que os fatores de propagação do vírus são múltiplos e complexos, em particular num contexto inevitável de desconfinamento, independentemente dos cenários contemplados.

Identificar o problema político da conjuntura

Não podemos aceitar que o confinamento seja sinônimo de uma atomização dos laços sociais, abandono de facto e aumento do empobrecimento de uma grande parte da população; nem o marco pelo qual o Estado pretende fortalecer as políticas de austeridade e reforçar sua controle sobre a sociedade. Não podemos ignorar o fato de que o tema da crise sanitária está plagado de problemas políticos. E se combina… com outras crises. Para o Estado, trata-se de gestionar a tensão entre a perseguição da acumulação de políticas de austeridade e, por outro lado, o controle da sociedade e o risco de que sua legitimidade salte em pedaços em caso de expansão da epidemia. Esta tensão se acentua por vários fatos muito importantes:

a) já não se pode eludir a deteriorada realidade da “saúde pública”. Pouco a pouco, ante os olhos da opinião pública, aparece a brecha entre os anúncios realizados e a experiência, as diferenças sociais frente a epidemia. Nem todos somos iguais frente ao vírus. E o “êxito” promovido da produção local de máscaras não pode ignorar a escassez em todo o demais. Não existe um cenário de desconfinamento que conduza a um risco zero e as condições mencionadas ao longo deste artigo sugerem que a possibilidade de uma catástrofe sanitária a meio prazo não pode se excluir, além das fanfarronadas de hoje. Sem mencionar as vítimas comuns de enfermidades não tratadas durante todo este período, quando pudemos ver “dormitórios” convertidos em verdadeiras salas de morte, e às e os pacientes quase abandonados…

b) a certeza de uma recessão com consequências mais profundas que em 2008. A redução dos mercados da Zona do Euro, principal sócio comercial, a queda dos investimentos locais e estrangeiros, das rendas por turismo e das remessas das e dos cidadãos marroquinos no estrangeiro, são indicadores precursores, cujas consequências se desenvolverão num tecido social desgarrado por décadas de múltiplas políticas de austeridade e desigualdades sociais e territoriais. O empobrecimento que acompanha a crise sanitária corre o risco de combinar-se no curto e mediano prazo com as consequências da crise global e uma explosão do desemprego massivo. Assim, em 57% das empresas estão em fechamento temporário, 6300 cessaram suas atividades e uma proporção igualmente considerável viu um marcado descenso na atividade. No final de abril, mais de 900 000 empregadas e empregados estão registrados em situação de paralisação temporal. Somente no setor turístico, o impacto no emprego poderia afetar potencialmente a 500 000 pessoas, mas em realidade nenhum setor se salva.

c) graças à política de confinamento nas grandes cidades, uma desorganização dos canais de distribuição de alimentos já tem um impacto direto no campo e no “Marrocos inútil”. Além disso, este ano de seca, segundo as previsões, seria traduzido numa queda de 50% na produção de trigo, o que implicaria um aumento significativo das importações, enquanto o país já é dependente em grande medida em matéria de alimentos básicos. Não podemos excluir uma queda das exportações a nível internacional, um maior risco de escassez, um novo aumento dos preços no mercado mundial que terá um forte impacto nas reservas de divisas, a balança de pagamentos e o poder aquisitivo da população.

A estratégia do poder é reforçar o discurso da unidade nacional promovendo a centralidade da monarquia, enquanto se implementa uma estratégia dirigida a opor-se às e aos trabalhadores, setores da classe média, as categorias populares da economia informal, as e os que se beneficiam de um sistema de segurança social, as e os que estão excluídos ou estão registrados num regime específico. Esta divisão em si mesma se baseia e fomenta uma lógica de sobrevivência que tem como objetivo que cada qual expresse suas demandas de maneira atomizada. Embora pareça que as principais vítimas são presos e presas, desempregados e desempregadas, trabalhadoras e trabalhadores em fábricas e campos, as e os pobres que somente conhecem a pobreza, trabalhadoras e trabalhadores diaristas, migrantes, mães solteiras, em resumo, as classes populares que deverão pagar gastos “excepcionais” e “estruturais” para o regate do capitalismo local. A crise sanitária está despolitizada pelos termos da gestão tecnocática e securitária, dia a dia, de modo que a enfermidade, a morte e a desordem seguem sendo questões sem interesse político, sem possibilidade que surja uma palavra da sociedade sobre o que lhe ataca, em seu próprio corpo. No entanto, as autoridades não podem ocultar a expansão das fontes de contágio nas fábricas, nem impor o confinamento a longo prazo sobre a base da caridade pública. O risco é que a onda, inclusive estabilizada, se estenda com o tempo, com o componente desconhecido que impliaria a liberação do confinamento. O poder deve fazer malabarismos entre a manutenção de sua legitimidade e a lógica da patronal e da casta predatória que tentam a curto prazo a recuperação da “atividade econômica”.

Entretanto, se vão experimentando os procedimentos de toque de queda, de estancamento dos espaços, a reabilitação dos velhos hábitos de despotismo onde o Ministério do Interior governa abertamente o tecido da vida social diária, a trivialização da repressão, da impunidade policial, a implementação de novas tecnologias de vigilância, a tutelagem dos débeis margens democráticos, a criminalização das resistências e da liberdade de expressão [15]. Como se o poder fosse tomada a revanche destes últimos anos nos quais os movimentos sociais mais diversos haviam começado a se saltar as “linhas vermelhas”. A saída de veículos blindados nas grandes cidades é uma advertência à sociedade, ante riscos sociais e políticos bastante previsíveis, no caso de uma verdadeira onda epidêmica, ou quando, de forma mais provável, a realidade social da crise econômica e o empobrecimento já não possa ser “confinada”.

Crise social, crise sanitária e crise política se entrelaçarão explosivamente no próximo período. Depende dos movimentos sociais, das forças radicais, defender os eixos sociais e democráticos de uma luta pela conquista dos direitos e liberdades fundamentais, aqui e agora, desde uma perspectiva emancipadora. O pós-coronavírus está tomando forma hoje. O desafio é preparar nosso campo social para a negativa a voltar à normalidade e para as convulsões sociais e políticas por vir.

19/05/2020

https://npa2009.org/actualite/international/le-maroc-face-au-coronavirus-les-crises-venir

1/  A última lei de orçamento consagrou 110 bilhões de dirhams à defesa e somente 18 bilhões à saúde. Estados Unidos acabam de aprovar, em meio de uma crise de saúde, a venda de dez mísseis Harpoon Block II ao Marrocos por 62 bilhões de dólares.

2/ Segundo as declarações oficiais, desde a criação de camas adicionais, o número total chegou a 3000. Tenha em conta também que somente há 175 sanitárias e sanitários especializados em serviços de reanimação.

3/ O estado marroquino é quase um dos poucos que rechaçou o regresso de seus próprios cidadãos do estrangeiro no momento da decisão de fechar as fronteiras, deixando a quase 2200 pessoas tiradas, sem quase nenhuma ajuda.

4/ A relativa debilidade no número de mortes não é específica de Marrocos, mas que afeta a muitos países da região. A explicação desta situação fica por resolver, onde todos esperavam um desastre de saúde. Deveríamos ver os efeitos da estrutura demográfica (população jovem), a ausência de residências de anciãos e anciãs? Os efeitos de uma política de contenção pontual? Outros fatores específicos?

5/ Uma tabela de contas e dotações se publicou pela primeira vez no boletim geral de tesouraria do reino, antes de ser eliminada no final de março. Via-se que muitas doações anunciadas por grandes companhias (como Al Mada com seus dois bilhões) não foram pagas. De fato, a realidade final das e dos contribuintes não aparece, nem as verbas planificadas e realizadas. As últimas estimativas assinalaram um fundo equivalente a três bilhões de euros.

6/ De fato, muitos empregados são despedidos diretamente, sem perspectivas de readmissão e descobrem que seus chefes não os haviam dado de alta no CNSS.

7/ RAMED: esquema de assistência médica que representa uma rede de seguridade social mínima.

8/ Assim, a grande maioria das e dos trabalhadores são transportados coletivamente às granjas sem a menor precaução ou possível distância de segurança.

9/ Algumas delas pertencem ao capital estrangeiro ou misto. Renault, por sua vez, que emprega 11 000 pessoas, decidiu reativar suas atividades em Casablanca e Tanger no final de abril… Além do lugar de trabalho, há centros de comunicação, relativamente grandes, em certas regiões.

10/ O descumprimento da reclusão e o uso de uma máscara constitui um delito que pode dar lugar a três meses de prisão, uma multa de 1300 dirhams (115 euros). Os agentes da lei detiveram mais de 85 000 pessoas infratoras entre 15 de março e em 30 de abril, e milhares levados ante a justiça. Desde então, o Ministério do Interior já não comunica as estatísticas. Este uso repressivo foi condenado a nível internacional, inclusive na ONU.

11/ Algumas estimativas apresentam a estatística de 15 milhões de máscaras para satisfazer as necessidades reais.

12/ Por seu lado, Abderrahim Taibi, diretor de IMANOR (Instituto Marroquino de Normalização) especifica que se desenvolveram padrões específicos para que não tenha risco de contágio e “estes padrões… podem avaliar e todo o mundo está convidado a contribuir a isso”. Quanto ao Ministro da Indústria, numa fórmula divertida, aponta que “se alguma vez temos a intenção de vender no estrangeiro, será com máscaras de melhor qualidade…”. Alguém pode se perguntar por que estas máscaras de melhor qualidade não se produzem para a população local. De fato, parte do setor têxtil se posicionou no mercado internacional, para a exportação de máscaras, antes de satisfazer as necessidades internas.

13/ Significativamente, acaba-se de assinar um acordo, em meio de uma crise sanitária, com uma empresa estadunidense, conhecida por seus preços excessivos, que reclama o monopólio da venda do medicamento no Marrocos até 2031, o que significa que não haveria possibilidade de adquirir uma vacina efetiva ou um tratamento contra Covid a outra empresa no caso de que apareceram, e tampouco a de considerar a produção nacional de medicamentos de maneira autônoma.

14// Assim, na prisão de Ouarzazate se detectaram mais de 200 casos. Esta situação recorda a necessidade da libertação imediata e incondicional de presos de consciência e movimentos sociais. Como lembrança, há 86.000 presos com uma taxa de superlotação de mais de 200%.

15// Um projeto de lei preparado a escondidas causou um grande alvoroço. Seu objetivo era estabelecer “uma pena de seis meses a três anos de prisão” e uma multa de 5000 a 50 000 dirhams contra qualquer um que “chame a boicotar certos produtos, bens ou serviços ou incite a isso publicamente através das redes sociais ou redes de difusão abertas”. Esta tentativa de controlar o uso das redes sociais se entrelaça com o temor ao desenvolvimento de protestos sociais no próximo período. O boicote a vários produtos em 2018 havia desestabilizado os registros tradicionais de gestão de segurança e ressaltou a confluência entre as grandes empresas e o “poder político”.

Chawqui Lotfi é um militante da esquerda radical de Marrocos.