China nos anos 2020 pós-pandemia
FONTE: The Next Recession | 22/05/2020 | TRADUÇÃO: Charles Rosa
A Assembleia Nacional Popular (ANP) da China se reuniu hoje depois de um atraso devido à pandemia do coronavírus. A ANP é a versão chinesa de um parlamento e é utilizada pelos dirigentes do Partido Comunista para informar sobre o estado da economia e descrever seus planos para o futuro, tanto a nível nacional como global.
O primeiro-ministro Li Kegiang anunciou que, pela primeira vez em décadas, não haverá um objetivo de crescimento para o ano. Portanto, os dirigentes chineses abandonaram seu tão anunciado objetivo de duplicar o PIB do país segundo o plano em vigor para este ano. É aceitar o inevitável.
A pandemia e o lockdown levaram a economia chinesa a uma severa contração durante vários meses, do quais somente estão começando a se recuperar. A economia economia se contraiu em 6,8% no primeiro trimestre e a maioria das previsões anuais pressupõem menos da metade da taxa de crescimento de 6,1% do ano passado. Mas inclusive esse dado seria muito melhor que o de todas as economias do G7 em 2020.
A produção industrial e o investimento já estão se recuperando, mas o consumo segue deprimido.
Mas segundo Li, a razão principal de não fixar um objetivo de crescimento, se deve à incerteza sobre “a pandemia de Covid-19 e o entorno econômico e comercial mundial”. Em outras palavras, inclusive se a economia nacional começa a se recuperar, o resto do mundo está ainda numa recessão. Com a contratação do comércio mundial, há poucas as perspectivas para as exportações de manufaturas, das quais a China dependeu essencialmente para sua expansão.
A China vai à frente de outras economias importantes na saída da pandemia. Mas inclusive Li teve que admitir que muitos erros foram cometidos na gestão da pandemia e que “ainda haverá margem para melhorar o trabalho do governo”, incluindo o atraso na hora de alertar o público, o que permitiu a propagação do vírus. “As formalidades sem sentido e o burocratismo seguem sendo um problema grave. Um pequeno número de funcionários eludem seus deveres ou são incapazes de cumpri-los. A corrupção segue sendo um problema comum em alguns campos”, admitiu Li. Entretanto, em comparação com a gestão dos governos ocidentais, a administração chinesa foi muito melhor na contenção dos infectados e no número de mortes.
A curto prazo, Li ressaltou que o governo tem intenção de impulsionar a economia com certo estímulo fiscal e flexibilização monetária, como as economias do G7. A China prevê um déficit orçamentário para 2020 de 3,6% do PIB, o que representaria 2,8% acima do registrado no passado, e aumentou o financiamento creditício dos governos locais em dois terços. E, pela primeira vez, o governo central emitirá bônus para ajudar no gasto dos governos locais e às empresas em dificuldades. O desemprego oficial é de 5,5%, mas provavelmente se aproxime de 15-20%, pelo que o governo tem como objetivo criar mais empregos e reduzir a pobreza nas zonas rurais para frear a fuga dos migrantes rurais às cidades.
O que nos leva a discutir o futuro no longo prazo da economia chinesa depois da pandemia no contexto de intensificação da guerra comercial e tecnológica dos EUA e outras potências imperialistas.
Em minha opinião, há três formas de ver o desenvolvimento econômico da China (isto é algo que escrevi detalhadamente num artigo recente para o Austrian Journal of Development Studies). A visão econômica predominante é que a China deveria se converter numa economia de “mercado” plena como as do G7. Deveria acabar com sua dependência de mão de obra barata para vender produtos manufaturados ao Ocidente. O aumento dos custos laborais mostraria que o modelo econômico de direção estatal da China não pode conseguir desenvolver tecnologia moderna ou satisfazer a demanda de bens de consumo de sua população. Esta foi a orientação de política econômica do Banco Mundial e de outras instituições financeiras internacionais no passado e convenceu a um setor da economia chinesa, especialmente a conectada aos multimilionários privados privados da China. Mas até agora, esta opção, foi rechaçada pela maioria da direção atual.
A segunda visão é o que poderíamos chamar keynesiana é o que poderíamos chamar keynesiana. Reconhece o êxito da economia chinesa nos últimos 30 anos ao tirar quase 900 milhões de pessoas do nível oficial de pobreza do Banco Mundial. De fato, o Banco Mundial acaba de ajustar seus dados à baixa dos que estão por debaixo de seu nível de pobreza. A diminuição parece impressionante, até que se observa que 75% dos que saíram da pobreza a nível mundial nas últimas três décadas são chineses.
Esta visão keynesiana argumenta que o êxito da China se baseou num investimento massivo na indústria e na infraestrutura que permitiu que o país se converta na potência manufatureira mundial. Mas agora essa ênfase no investimento industrial deve se mudar porque o consumo dos lares é frágil e numa economia moderna o que importa é o consumo. A menos que haja uma mudança no consumo, a economia chinesa se desacelerá e o enorme nível de dívida corporativa e familiar aumentará o risco de crises financeiras.
Em realidade, o consumo pessoal na China aumentou muito mais rápido que o investimento fixo nos últimos anos, inclusive se parte de níveis muito baixos. O consumo aumentou em 9% no ano passado, muito mais rápido que o PIB. E o crescimento do consumo seria ainda mais rápido se o governo tomasse medidas para reduzir o alto nível de desigualdade de rendas.
A ideia de que a China se dirige a uma crise graças ao baixo consumo e ao investimento excessivo não é convincente. É certo que, segundo o Instituto de Finanças Internacionais, a dívida total da China alcançou 317% do Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro trimestre de 2020. Mas a maior parte da dívida interna é de uma das entidades estatais em outras; dos governos locais com os bancos estatais, dos bancos estatais com o governo central. Quando tudo isso se compensa, a dívida dos lares (54% do PIB) e das corporações privadas não é tão alta, enquanto que a dívida do governo central é baixa segundo os padrões mundiais. Além disso, a dívida externa em relação ao PIB em dólares muito baixa (15%) e, de fato, o restante deve à China muito mais, cerca de 6% da dívida global. A China é um grande credor mundial e tem enormes reservas em dólares e euros, algo como 50% a mais que sua dívida em dólares.
É certo que parte da expansão do investimento fixo pode ter sido desperdiçada. De fato, o modelo de desenvolvimento keynesiano da China baseado no aumento do investimento e a demanda de consumo privado é cada vez menos útil. Como disse o presidente Xi Jinping, “as casas são construídas para ser habitadas, não para especular”. Mas o governo permitiu a especulação capitalista na propriedade imobiliária, de modo que 15% de todos os apartamentos atualmente são propriedade de investidores e frequentemente nem sequer estão conectados com o fornecimento elétrico. Esta especulação imobiliária foi impulsionada pelo crédito financiado pelos bancos estatais, mas também por “bancos na sombra” não oficiais. Este tipo de especulação desperdiça recursos e não dirige o investimento a áreas como a redução das emissões de CO2 para cumprir com o objetivo declarado do governo de fazer da China uma ‘economia limpa’. Com a população da China alcançou seu teto nesta década e a população em idade de trabalhar diminuindo 20% para 2050, o objetivo do investimento deve ser a criação de emprego, a automatização e o crescimento da produtividade.
Isso me leva ao terceiro modelo de desenvolvimento, o marxista. A chave para a prosperidade não são as forças do mercado (corrente principal neoclássica) ou a demanda de investimento e consumo (keynesiana) mas o aumento da produtividade do trabalho de uma maneira planificada e harmoniosa (marxista)
Numa economia capitalista, as empresas concorrem entre si para aumentar a rentabilidade mediante a introdução de novas tecnologias. Mas existe uma contradição inerente na produção capitalista entre a queda da rentabilidade do capital e a crescente produtividade do trabalho. À medida que os capitalistas tentam aumentar a produtividade da mão de obra e reduzir a mão de obra substituindo-a por tecnologia, para reduzir os custos laborais e aumentar os lucros e a participação no mercado, a rentabilidade geral do investimento e a produção começa a cair. Logo, numa série de crise, o investimento se derruba e a produtividade se estanca.
Isto será claramente um problema na China numa fase mais madura de acumulação no século XXI, caso se aceite que a China é somente outra economia capitalista como as potências imperialistas ou as economias emergentes como o Brasil e a China. O argumento é que a China pode ser diferente do “capitalismo liberal” do Ocidente e desenvolver, em contrapartida, um “capitalismo político” autocrático, que é como Branko Milanovic descreve em seu livro, Capitalism, Alone, mas segue sendo capitalismo.
Caso se aceite esta visão, podemos avaliar a saúde e o futuro da economia da China medindo a rentabilidade de seu florescente setor capitalista. Num novo documento (“Catching Up China India Japan”), os economistas marxistas brasileiros, Adalmir Marquetti, Luiz Eduardo Ourique e Henrique Morrone comparam o desenvolvimento da China com o da Índia em relação às economias do G7. Mostram que a alta taxa de acumulação de capital na China provocou uma queda na rentabilidade inclusive maior que nos EUA, pelo que está em risco uma maior expansão. Em outro documento, argumentam que já está se gestando uma crise de super-acumulação e que um forte investimento adicional não funcionaria, especialmente dado o aumento das emissões de gás de efeito estufa que criaria.
Da mesma forma que Marquetti et al, medi a rentabilidade do setor capitalista na China (a partir da taxa interna de rendimento de Penn World Tables 9,1 sobre as séries de capital) e encontro uma queda similar. A grande expansão do investimento e a tecnologia, particularmente uma vez que os mercados mundiais se abriram à indústria chinesa depois de 2000 quando se uniu à Organização Mundial do Comércio, conduziu a taxas de crescimento de dois dígitos até a Grande Recessão de 2008. Mas a maior composição orgânica do capital impulsionou que a rentabilidade caísse antes da crise mundia de pandemia e, finalmente, o crescimento se desacelerou.
Isso significa que a China se dirige para uma grande crise com características capitalistas clássicas em algum momento desta década? Marquetti et al parecem sugerir que: “A maior taxa de lucro explica a forte mecanização nas primeiras etapas do processo. A rápida acumulação de capital diminuiu a produtividade do capital e a taxa de lucro. Portanto, alcançar os níveis ocidentais depende de elevar a taxa de poupança e investimento. Pode reduzir ainda mais a produtividade do capital e a taxa de lucro, pondo em risco o processo, o que parece ser o caso da China e da Índia”. E citam Minqi Li: “se a China seguisse essencialmente as mesmas leis econômicas que em outros países capitalistas (como EUA e Japão), a diminuição da taxa de lucro seria seguida por uma desaceleração da acumulação de capital, que culminaria numa grande crise econômica”.
Mas a pergunta para a mim é se o setor capitalista na economia da China é dominante. Segue a China a mesma lei de valor que outras economias capitalistas? A China parece ser uma versão autocrática, antidemocrática, “política” do capitalismo em comparação com a versão “liberal democrática” do Ocidente (como defende Milanovic). Sua economia não está dominada pelo mercado, por decisões de investimento baseadas na rentabilidade; ou por empresas capitalistas e seus diretores; ou por investidores estrangeiros. Sua economia ainda está dominada pelo controle estatal, o investimento público, os bancos estatais e por funcionários comunistas que controlam as grandes empresas e planificam a economia (frequentemente de maneira ineficiente, já não há prestação de contas ante os trabalhadores da China).
Recordo aos leitores o estudo que fiz há alguns anos sobre o alcance dos ativos estatais e o investimento na China em comparação com qualquer outro país. Ficou demonstrado que a China tem um estoque de ativos do setor público no valor de 150% do PIB anual; somente o Japão tem uma quantidade similar de 130%. Todas as demais economias capitalistas importantes têm menos de 50% em ativos públicos. A cada ano, o investimento público da China em relação ao PIB é ao redor de 16% em comparação com 3-4% nos Estados Unidos e na China. E aqui está o dado chave. Há quase três vezes mais ativos produtivos públicos que ativos do setor capitalista privado na China. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, os ativos públicos são menos de 50% dos ativos privados. Inclusive na “economia mista” da Índia ou do Japão, a proporção de ativos públicos e privados não supera 75%. Isso mostra que na China a propriedade pública dos meios de produção é dominante, à diferença de qualquer outra economia importante.
E agora o FMI publicou novos dados que confirmam esta análise. A China tem um estoque de capital público próximo de 160% do PIB, muito mais que em qualquer outro lugar. Mas tenha em conta que este estoque do setor público esteve caindo mais que inclusive as economias ocidentais neoliberais. O modo de produção capitalista pode não ser dominante na China, mas está crescendo rapidamente.
Para onde irá a China? Na década depois da pandemia, evoluirá para uma economia capitalista similar ao restante do mundo? Em outras palavras, adotará o modelo neoliberal dominante? Até agora, à luz do desastroso fracasso das economias de mercado “democráticas liberais” na gestão da pandemia, com taxas de mortalidade 100 vezes mais altas que na China e uma depressão como não se havia visto desde a década de 1930, esse modelo de mercado não parece atrativo para a ditadura comunista ou ao povo chinês. Em contrapartida, Xi e Li parecem querer continuar e expandir o modelo de desenvolvimento existente: uma economia controlada e dirigida pelo estado que freia o setor capitalista e resiste à intervenção imperialista.
De fato, a China busca expandir sua capacidade tecnológica e sua influência a nível mundial através da inciativa de investimento da “Rota Seda” e seus enormes programas de empréstimos a países da África e outros estados. E será capaz de fazer isso porque seu modelo econômico não repousa na queda da rentabilidade de seu importante setor capitalista. Segundo um informe de IFF, a China já é o maior credor mundial dos países de baixa renda.
Por isso a estratégia pós-pandemia do imperialismo em relação à China está girando bruscamente. E este é o problema geopolítico da próxima década. O enfoque imperialista mudou. Quando Deng assumiu a direção do Partido Comunista Chinês em 1978 e começou a abrir a economia ao desenvolvimento capitalista e ao investimento estrangeiro, a político do imperialismo era de “compromisso”. Depois da visita de Nixon e a mudança de política de Deng era que a China pudesse ser atraída ao nexo imperialista e o capital estrangeiro se ocuparia do restante, como o fez no Brasil, Índia e outros “mercados emergentes”. Com a “globalização” e a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, se intensificou sua relação com o Banco Mundial, que aconselhou a privatização da indústria estatal e a introdução dos preços de mercado, etc.
Mas o colapso financeiro global e a Grande Recessão mudaram tudo isso. Com seu modelo de controle estatal, a China sobreviveu e se expandiu enquanto o capitalismo ocidental entrou em crise. A China está se convertendo rapidamente numa economia manufatureira e exportadora de mão de obra barata, mas numa sociedade urbanizada de alta tecnologia que ambiciona estender sua influência política e econômica, inclusive além do oriente asiático. É inaceitável para algumas economias imperialistas cada vez mais frágeis. Os Estados Unidos e outras nações do G7 perderam terreno frente a China no setor manufatureiro, e sua dependência dos insumos chineses para sua própria indústria vem aumentando, enquanto da dependência da China dos insumos do G7 vem diminuindo.
Assim que a estratégia mudou: se a China não coopera com o imperialismo e se submete, a política se transforma em uma de “contenção”. O tristemente falecido Jude Woodward escreveu um excelente livro que descreve esta estratégia de contenção que começou inclusive antes de que Trump lançasse sua guerra de tarifas comerciais com a China ao assumir a presidência dos EUA em 2016. A política de Trump, ao princípio considerada imprudente por outros governos, está sendo adotada em todos os âmbitos, depois do fracasso dos países imperialistas para proteger vidas durante a pandemia. A culpa da crise do coronavírus é jogada para a China.
O objetivo é debilitar a economia da China e destruir sua influência e talvez conseguir a “mudança de regime”. Bloquear o comércio com tarifas; bloquear o acesso da China a novas tecnologias e suas exportações; aplicar sanções às empresas chinesas; e enfrentar os devedores com a China. Tudo isso deve ser custoso para as economias imperialistas. Mas o custo pode valer a pena, caso a China possa ser derrotada e caso seja assegurada a hegemonia dos EUA.
A China não é uma sociedade socialista. Seu governo comunista autocrático de partido único é frequentemente ineficiente e impôs medidas draconianas a seu povo durante a pandemia. O regime maoísta reprimiu os dissidentes sem piedade e a Revolução Cultural foi uma farsa trágica. O governo atual também reprime as minorias, como o grotesco confinamento dos muçulmanos uigures na província de Xinjiang, em campos de “reeducação”. E ninguém pode falar contra o regime sem sofrer as consequências. A direção do Partido Comunista Chinês acaba de apresentar na ANP uma nova Lei de Segurança Nacional para Hong Kong, que pode fechar seu parlamento e reprimir militarmente os protestos. E ainda quer que Taiwan, refúgio dos senhores da guerra ex-nacionalistas que fugiram para Formosa e a ocuparam no final da guerra civil em 1949, finalmente se incorpore ao continente.
A direção da China não é responsável ante seus trabalhadores. Não há órgãos de democracia operária. E está obcecada em reforçar seu poderio militar: a ANP foi informada que o orçamento militar aumentaria em 6,6% em 2020, sendo que a China já gasta 2%do PIB em armamentos. Mas é ainda muito menos que os Estados Unidos. O orçamento militar dos EUA em 2019 foi de 732 bilhões de dólares, o que representa 38% do gasto de defesa global, em comparação com os 261 bilhões de dólares da China.
Mas lembre-se de que todos os chamados “comportamentos agressivos” e crimes contra os direitos humanos da China foram superados pelos crimes do imperialismo no século passado: a ocupação e o massacre de milhões de chineses pelo imperialismo japonês em 1937; as contínuas e horríveis guerras posteriores a 1945 do imperialismo contra o povo vietnamita, na América Latina e as guerras indiretas na África e na Síria, assim como a invasão mais recente do Iraque e do Afeganistão, além do terrível pesadelo no Iêmen causada pelo repugnante regime saudita respaldado pelos EUA, etc. E não esqueça horrível pobreza e desigualdade que sofrem milhões de pessoas sob o modo de produção imperialista.
A reunião da ANP põe de manifesto que a China se encontra numa encruzilhada em seu desenvolvimento. Seu setor capitalista tem problemas cada vez mais profundos com a rentabilidade e a dívida. Mas sua direção atual se comprometeu a continuar seu modelo econômico de direção estatal e seu controle político autocrático. E parece decidida a resistir à nova política de “contenção” das “democracias liberais”. A “guerra fria” comercial, tecnológica e política vai “esquentar” toda esta década, como todo o planeta.
Michael Robersts é um economista marxista britânico.