Nesta entrevista, Max Ajl fala de seu trabalho sobre a questão agrária – especialmente na Tunísia – e também aborda os desafios contemporâneos em torno deste tema. Com base em seu trabalho, ele nos fornece alguns esclarecimentos sobre os processos de descolonização, o lugar da agricultura e dos camponeses dentro dela, a soberania alimentar, a fome no Iêmen e até mesmo sobre o lugar que o campesinato ocupa na teoria marxista.
Max Ajl defendeu recentemente sua tese no Departamento de Sociologia do Desenvolvimento na Cornell University, nos EUA. Seu trabalho aborda a justiça climática, as mudanças agrárias, o planejamento e o pensamento social árabe/norte-africano heterodoxo. Colaborador regular da revista Jacobin, publicou em Viewpoint, na Review of African Political Economy e na Middle East Report. É parte do conselho editorial da Jadaliyya e é responsável pelas páginas dedicadas à economia política e à Palestina.
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Selim Nadi: Seu trabalho trata principalmente da economia política da agricultura, e seu doutorado trata das políticas de desenvolvimento da agricultura no Estado tunisiano após 1980. Vejamos a independência da Tunísia: em que medida a agricultura foi um desafio central nos debates do movimento nacional tunisiano em meados dos anos 50? E em que medida as abordagens de Bourguiba e Ben Youssef sobre a questão da terra eram diferentes?
Max Ajl: Entre as décadas de 1930 e 1950, a agricultura teve um lugar central no discurso do movimento nacional. As publicações, comunicados, discursos e outros documentos estavam repletos de referências sobre como o colonialismo drenou a riqueza da terra e, em particular, como o colonialismo, como um conjunto específico de mecanismos institucionais, empurrou pequenos proprietários rurais para o endividamento e acelerou sua transformação em proletários ou semiproletários rurais. Durante os anos 50, o partido Neo-Destour sabia que a independência quebraria esse horizonte e começou a falar, cada vez mais, sobre como o Neo-Destour incluía todas as classes da nação tunisiana. Sua principal prioridade era manter a integridade de uma frente nacional interclassista. Esta frente incluía grandes agricultores, que financiaram discretamente o Neo-Destour ou estavam em sua direção, pequenos agricultores, os sem-terra, moradores dos bairros pobres, assim como a importante UGTT, o sindicato nacionalista pró-ocidental. De muitas maneiras, nos anos 50, a UGTT articulou as questões sociais mais do que o Neo-Destour, que se concentrava na contradição colonial-nacional.
A idéia de que o colonialismo era uma máquina social que prejudicava todas as classes da sociedade tunisiana era amplamente compartilhada, mas ficou a cargo da UGTT a formulação de demandas mais específicas e soluções programáticas. A UGTT traçou o perfil de seu nacionalismo com contornos mais definidos e radicais em torno da redistribuição, sugerindo que a reforma agrária era necessária, embora tenha suavizado essas reivindicações, evitando a menção explícita da abolição das grandes fortunas da Tunísia. Em parte, isto se deveu à sua incorporação subordinada na frente nacionalista. Seu líder, Ahmed Ben Salah, estava pensando em uma fusão entre o sindicato e o partido, que após a independência permitiu à UGTT avançar uma linha econômica mais radical de redistribuição; no final de 1956 essa abordagem colidiu com a decisão de Burguiba de submeter abruptamente a UGTT, de afastar Ben Salah da liderança e de assegurar que a partir de então as aspirações econômicas fossem feitas nas condições definidas pelo Neo-Destour.
A questão da terra é ainda mais clara quando vista através do prisma da nacionalização e descolonização, e essa foi a principal linha de demarcação entre Bourguiba e Ben Youssef. Mas antes de entrar nessa questão, pode ser útil abrir um breve parêntese para lembrar que os movimentos dos camponeses, criadores de gado e do semiproletariado, que deram impulso à descolonização, nem sempre foram diretamente inspirados por Ben Youssef ou por burgueses, e que o movimento nacionalista era uma entidade bastante dividida, pois a liderança estava presa ou dispersa em vários continentes, e a luta era conduzida sob condições de intensa repressão colonial.
Dito isto, a principal diferença entre Ben Youssef e Bourguiba era que um exigia uma descolonização completa e o outro não. Embora o apelo de Ben Youssef à descolonização completa não tenha nada a ver com as exigências como as de Cabral [o líder independentista da Guiné-Bissau e de Cabo Verde], que exigia a liberação das terras e a colocação das forças produtivas sob o controle do povo camponês. Sua diferença era mais matizada: desde os acordos de autonomia de junho de 1955 (que permitiram aos franceses manter o controle das tarifas, manter a integração econômica tunisiano-francesa e preservar seus quase 800 mil hectares, que incluíam os solos mais férteis da Tunísia, bem como inúmeras minas e ferrovias), a oposição de Ben Youssef a esse programa e sua exigência de independência total foi um apelo, mais por omissão do que explicitamente, ao controle soberano dos recursos econômicos do país. Ben Youssef foi muito mais claro sobre as políticas de preços e como estas impediriam o controle soberano da trajetória de desenvolvimento do país. Quando fazemos um balanço de Ben Youssef, devemos lembrar que em sua carreira política ele se juntou à força gravitacional da radical Conferência de Bandung (1955) bastante tarde e deixou relativamente pouca escrita política. Muito menos do que Bourguiba.
S. N.: Pelo que você explica, embora o campesinato tenha feito a revolução na Tunísia, essa revolução foi roubada deles. Você poderia nos explicar isso?
M. R.: Trabalhando nas cronologias da historiografia dominante da descolonização tunisiana, encontrei nela estranhos impulsos e freios que não faziam sentido para mim, assim como fatores que pareciam ser relativamente subestimados. Há uma tendência para contrastar a descolonização pacífica da Tunísia com as descolonizações violentas que ocorreram à oeste da Tunísia , como na Argélia. Parece-me que esta comparação é um pouco precipitada. Além disso, quando cheguei à Tunísia, alguns colegas me disseram que a questão dos youssefitas – apoiantes ou adeptos de Ben Youssef – estava reemergindo como objeto de controvérsia política e historiográfica na Tunísia pós-revolucionária, tanto na cultura política como através do órgão Verdade e Dignidade, a comissão da verdade tunisiana.
A primeira metade da minha tese de doutorado é uma tentativa de preencher estas lacunas. Descobri pela primeira vez que a insurreição armada dos fellagas em sua primeira fase, de 1952 até o final de 1954, empurrou os franceses para a mesa de negociações. Os fellagas eram grupos armados, criados de comum acordo entre o Neo-Destour e a UGTT, compostos principalmente, pelo menos no início, por camponeses-pecuaristas do sul. Mais tarde se espalharam por outros setores: proprietários de plantações de tâmaras nos oásis do sul, pessoas que mantinham terras para colheita de água da chuva, ou que quase não tinham terras devido à sua expropriação pelo regime capitalista dos colonos, bem como a redução de lotes por sucessão, e pessoas completamente excluídas da produção rural. Em parte, os fellagas foram desmobilizados em novembro-dezembro de 1954, após o sucesso do Neo-Destour, que os usou como alavanca para impor autonomia, e por medo de perder o controle sobre eles, numa época em que a Revolução Argelina começava a causar estragos no Ocidente e o Nasserismo se tornava cada vez mais convincente.
Um dos fellagas, Lazhar Chraiti [1920-1963], recusou-se a depor suas armas e participou de uma tentativa de insurreição armada em todo o Magreb. Ele conseguiu se equipar no Egito, novamente independente sob o regime dos oficiais livres, e até, como alguns dizem, na China maoísta.No início de 1955, ele estava fazendo planos para um novo exército. O conflito eclodiu logo após a divisão entre Ben Youssef e Bourguiba: com baixa intensidade entre novembro de 1955 e janeiro de 1956, e com batalhas realmente ferozes depois. Este exército lutou pela independência total, às vezes se referindo à questão da terra e às vezes não, mas tentando expulsar os franceses das terras tunisianas. Foi muito influenciada, através das ondas aéreas da Rádio Cairo, pela visão nacionalista árabe de unidade, anti-imperialismo e soberania. Na verdade, essa insurreição armada era 50% mais importante que a primeira, com uma clara linha de demarcação: lutavam pela descolonização total e contra os acordos de autonomia interna de junho de 1955.
Mais uma vez, o povo que vivia no Sul – que então era, e ainda é, a região mais pobre do país – constituíram o essencial das forças de combate: eram criadores de gado, pequenos agricultores e outras pessoas que viviam pobremente da agricultura. Obrigaram os franceses a conceder o que falsamente foi chamado de independência total em 20 de março de 1956, perante o exército protonacional de Bourguiba e, mais ainda, as forças coloniais francesas infligiram-lhes várias derrotas militares severas, que em alguns casos foram simplesmente massacres de guerrilheiros tunisianos feridos ou presos na época da rendição. Mas também é verdade que, devido à pressão que exerceram, o governo destinou 15 milhões dos antigos francos para o desenvolvimento do centro e do sul da Tunísia: uma quantia enorme, que poderia ter envolvido uma redistribuição revolucionária da renda, se realmente tivesse sido dada.
Obviamente, isso não aconteceu e, nesse sentido, a revolução dos pobres do centro e do sul foi-lhes roubada três vezes: a primeira vez quando, após ter imposto o que havia de independência em 1956, foi a ala burguesa do Neo-Destour que colheu os frutos da vitória militar obtida pelos youssefistas ao preço das armas e do martírio. A segunda, quando o Estado se tornou um estado neocolonial quase imediatamente, roubou-lhes a vitória em termos materiais, ao mesmo tempo em que o projeto de desenvolvimento os levou à pobreza. E a terceira, quando suas vidas, e até mesmo suas mortes, foram apagadas dos livros de história e do ensino escolar, reduzindo a historiografia do movimento nacionalista a uma hagiografia do grande homem Bourguiba; isso os privou de sua reivindicação ao Estado como bem comum do povo e justificou o projeto desenvolvimentista e anti-campesino de Bourguiba.
S. N.: Tem sido escrito em círculos acadêmicos e de pesquisa que o aspecto central no processo de descolonização foi a transferência de poder de uma elite para outra e que a libertação nacional não fez muito para deter o domínio ocidental da ordem econômica global. Em que sentido esse domínio ocidental da ordem econômica se expressou e evoluiu em relação ao campesinato e à agricultura nos anos que se seguiram à independência da Tunísia?
M. R.: A primeira coisa que eu diria é que é uma concepção muito reducionista. A colonização durou um longo período; por exemplo, na Argélia, desde 1830, e na Índia, iniciada muito antes, independentemente das origens do capitalismo, do desenvolvimento capitalista e da grande divergência. É claro que a riqueza que a França e a Grã-Bretanha saquearam de seus bens coloniais não foi o resultado de seu domínio da economia global, mas ajudou a construir esse domínio, e isso não foi feito ao estalar de um dedo, levou tempo. Como a construção da dominação ocidental levou tempo, destruí-la também levará tempo, e embora essas afirmações [no campo da pesquisa] sejam corretas em termos, elas estão erradas no contexto. É muito cedo para dizer que a libertação nacional pouco fez para quebrar a supremacia ocidental da ordem mundial. Além disso, também tornou a libertação nacional parte do processo formal e legal de descolonização. Mas não é a mesma coisa. Recordemos novamente a posição de Cabral, que entendia a libertação nacional como a quebra total do controle ocidental sobre as forças produtivas locais, mesmo que esse controle fosse exercido através de um estado neocolonial e dos setores do poder social que o acompanham. A libertação nacional foi um horizonte ambicioso. Isso implicou no desenvolvimento autogerido das forças produtivas. A descolonização política, como no caso da Tunísia, tem sido muitas vezes um mecanismo para provocar um curto-circuito rumo a uma libertação nacional mais geral.
Além disso, o que aconteceu na China é contrário a esta declaração formal. Mesmo com a contra-revolução anti-maoísta, a China tem um peso econômico significativo no sistema mundial e representa uma ameaça considerável ao domínio ocidental da ordem econômica mundial. Isto está bem claro nos documentos de planejamento do Pentágono, por exemplo. Não está claro o que as pessoas esperam diante das ameaças e horizontes da libertação nacional; o colonialismo roubou centenas de anos de trabalho e lentamente transformou esse trabalho expropriado em dominação ocidental da ordem econômica mundial. Como se pode exigir que tudo mude imediatamente, ou mesmo em uma, duas ou três décadas? Tudo isso leva a uma relativização das verdadeiras contribuições da libertação nacional, que tem desempenhado um papel importante para pôr fim aos genocídios coloniais e ondas de fome em muitos lugares da África e da Ásia, e para parar a contínua drenagem dos países colonizados, como Utsa Patnaik tem demonstrado em relação à Índia. Esses processos só foram bloqueados – e insisto em dizer bloqueados – por uma contra-revolução maciça militarizada contra todas as experiências de desenvolvimento nacional. Assim, quando se diz que o processo de descolonização não equacionou (ainda) as hierarquias econômicas mundiais, deve-se dizer também que as perspectivas de fazê-lo foram demolidas por essas mesmas hierarquias. E o futuro está sempre aberto.
Em relação à Tunísia, volto ao que disse anteriormente sobre o neocolonialismo. O governo pós-colonial de Habib Bourguiba foi a principal jóia da arquitetura política americana no mundo árabe ocidental; o Ocidente via a Tunísia como um possível modelo para um desenvolvimentismo nominalmente não-alinhado, mas na realidade totalmente alinhado com o Ocidente. Tornou-se um dos países com maior percentual de ajuda externa per capita, para proteger o governo neo-destouriano. O governo, as elites e os planejadores dirigentes ficaram petrificados com a própria ideia de que na Tunísia se fizesse uma reforma agrária demagógica – são suas palavras – como na Argélia, no Egito ou na China; um espantalho recorrente. O marco do planejamento foi a implementação de uma revolução agrícola para evitar uma revolução agrária, apoiando-se na teoria da modernização e desenvolvimento através da difusão tecnológica da agricultura camponesa e tentando modernizá-la. Isso foi feito através de uma experiência cooperativa, primeiro nas terras que o Estado havia nacionalizado lentamente no final dos anos 50 e início dos anos 60, e depois em outras grandes parcelas de terras coloniais nacionalizadas pelo Estado em 1964, com muitos minifúndios (fazendas muito pequenas) sem importância em torno dessas grandes parcelas.
O essencial era fazer a modernização dentro de dois parâmetros, que refletem a percepção bourguibista e os imperativos ocidentais: por um lado, a injeção maciça de capital na agricultura e, com ela, as tentativas verticais de retocar e assumir o controle do Estado sobre a vida camponesa e, por outro lado, até o final dos anos 60, o respeito às grandes propriedades privadas em mãos tunisianas. A substituição da tração animal por tratores importados e outras formas de mecanização, assim como gasolina, agrotóxicos e fertilizantes importados para compensar os ciclos de quebra do nitrogênio, foi muito cara. Isso também significou que a rota tecnológica adotada por essas cooperativas levou a uma subutilização maciça da força de trabalho, com dificuldades em se sustentar economicamente, alienando e rejeitando o conhecimento camponês e diluindo os camponeses como sujeitos políticos e sociais, reduzindo-os a objetos de planejamento. Paralelamente a este projeto, o Estado colocou a força de trabalho livre em grupos de trabalho, apoiados de fato pela ajuda dos EUA. Elas foram criadas para absorver a pressão social, confiando no Estado neocolonial e permitindo ao Estado evitar a reforma agrária.
No final da década de 1960, dois caminhos divergiram. Por um lado, o primeiro rugido de uma revolução verde apoiada pelos Estados Unidos, que ia continuar a esvaziar o campo tunisino, aumentando o fosso rural e diminuindo a qualidade nutricional, já que a farinha de trigo duro e cevada de alta qualidade, a preferida pela população, deu parcialmente lugar a um híbrido de trigo mole e farinha de trigo duro, proveniente da revolução verde. Por outro lado, uma medida tomada por Ben Salah, então Ministro do Planejamento, que era em parte um desafio à ordem econômica ocidental, que consistia em estender as cooperativas por todo o país por meio do uso social da legitimidade da terra. Isso se acelerou de 1967 a 1969, enquanto Bourguiba estava doente, mas em 1969, quando grandes fazendeiros transferiram suas preocupações para Bourguiba e após a pressão do Banco Mundial, o programa cooperativo foi encerrado e uma ordem rural capitalista estatal foi estabelecida. Isso foi possível graças aos programas de produção de grãos apoiados pelos EUA e às injeções maciças de subsídios para ajudar os grandes produtores – os únicos capazes de lidar com essas importações de capital intensivo – mesmo que os efeitos ecológicos a longo prazo dessas descargas venenosas no solo e nos lençóis freáticos tenham de ser colocados em espera. Portanto, não é justo dizer que a libertação nacional não fez muito para rejeitar a dominação ocidental, seria melhor dizer que a libertação nacional foi freada, quando não quebrada, para garantir que não perturbasse, mas de fato reforçasse a dominação ocidental.
S. N.: Qual era a posição do que você chama de escola tunisina sobre a questão da soberania alimentar? Como entendia a autogestão? Em que medida houve influência latino-americana entre economistas e agrônomos tunisianos sobre a questão da soberania alimentar?
M. R.: A escola tunisiana era um grupo informal de economistas, agrônomos e pesquisadores em tecnologias alternativas e teoria da dependência, que se desenvolveu de meados dos anos 70 a meados dos anos 80, como reação ao enorme custo social e ecológico da modernização capitalista da Tunísia, e que em 1983 publicou um livrinho intitulado “Tunísia: Que Tecnologias? Que Desenvolvimento?” Eu diria que eles foram os primeiros defensores da soberania alimentar. O termo dominante na Tunísia era segurança alimentar, mas com tanta conversa do mesmo tipo sob a ditadura desenvolvimentista burguesa, respeitando ao pé da letra o quadro dominante, foi possível romper com seu espírito. Assim, utilizaram o debate sobre a segurança alimentar para pedir um retorno ao campesinato diante das tecnologias agrícolas. Isto significava utilizar variedades de sementes locais ou regionais, utilizando espécies animais locais na agricultura.
Significou também uma defesa maciça das técnicas tradicionais de captação de água, baseadas na terra e na pedra, em vez do consideravelmente caro sistema de barragens, que quebra os ciclos das bacias hidrográficas uma após a outra e traz pouco para as terras irrigadas por cada dólar investido. Essas barragens, por sua vez, exigiram grandes empréstimos e especialistas estrangeiros para construí-las, outro mecanismo do neocolonialismo. Eles queriam fazer isso enquanto reduziam as importações agrícolas, utilizando hidrocarbonetos na agricultura, eliminando ao máximo as importações desnecessárias de alimentos e implementando programas nativos para obter camelos, tâmaras e cevada, culturas de terras áridas ignoradas pelas técnicas neocoloniais.
Nenhum desses trabalhos utilizou as palavras agroecologia ou soberania alimentar, mas o projeto como um todo se assemelhava, tecnicamente falando, ao que se costuma chamar de soberania alimentar dentro da Via Campesina.
Em essência, isto foi mais em paralelo do que por influência direta da América Latina; o retorno ao campesinato estava então em andamento na maior parte do Terceiro Mundo, como reação ao doloroso deslocamento causado pela modernização da agricultura. Atualmente estou trabalhando com minha colega Divya Sharma em um estudo comparativo entre Índia e Tunísia, e muitos países da América Latina têm suas próprias genealogias de agroecologia desenvolvidas a partir de um trabalho de compreensão da ecologia dos sistemas camponeses e agrícolas tradicionais.
O projeto da escola tunisiana foi baseado numa reavaliação das capacidades técnicas dos artesãos, construtores e agricultores tunisianos. Suas preocupações iam além dos aspectos da alimentação e da agricultura; baseavam-se em correntes críticas mais amplas: desde a crítica francesa e americana à tecnologia, até o movimento de tecnologia apropriada que então florescia no Primeiro Mundo e no Terceiro Mundo, e foram também fortemente influenciadas pela agronomia radical francesa e especialmente por René Dumont, que havia estudado em detalhes e feito muitas viagens à Tunísia. Nesse sentido, eles não pediram diretamente reformas para uma democracia cooperativa ou econômica, e apenas algumas vezes e cautelosamente pediram reformas agrárias. Lembremos que muitos deles não podiam expressar suas opiniões livremente porque trabalhavam para um Estado que estava em estreita colaboração com os grandes latifundiários.
Mas o Estado deveria ser o bem comum do povo e eles poderiam exigir um redirecionamento dos orçamentos do Estado e das prioridades de pesquisa para os camponeses, e até mesmo descentralizar seu próprio planejamento para seguir, ao invés de liderar, os camponeses. É claro que havia um desejo de autogestão para que camponeses e pequenos proprietários tivessem controle total e autônomo sobre seu próprio ciclo produtivo, e que houvesse um processo semelhante em nível nacional. Mas, por exemplo, eles não apelaram para a co-gestão de grandes fazendas ou grandes fábricas; acho que tal apelo teria sido muito perigoso politicamente, mesmo sob o regime relativamente mais permissivo da Bourguiba. Sem dúvida, sob Ben Ali a pesquisa sociológica foi asfixiada.
S. N.: Quem era Slaheddine el-Amami e o que tinha de inovador seu pensamento sobre a agricultura na Tunísia? Como evoluiu a relação entre os avanços tecnológicos agrícolas e os agricultores tunisianos?
M. R.: El-Amami, antes de passar pelas instituições de pesquisa do governo tunisiano, era um agrônomo tunisiano que veio do movimento estudantil radical de esquerda dos anos 50. Em meados da década de 1970, foi o primeiro a aplicar a metodologia da teoria da dependência ao setor agrícola, uma teoria que buscava entender o ajuste e os danos infligidos às economias periféricas e semiperiféricas pelo fato de terem sido remodeladas por forças de classe internas e externas para atender às necessidades do centro. Acrescentou a esta abordagem conhecimentos avançados em ecologia e agronomia. Ele representou a vanguarda e, até onde pude ver, foi pioneiro no retorno ao campesinato no contexto tunisiano. De seu pedestal no CRGR, realizou dezenas de estudos de campo sobre sistemas de redes hidráulicas indígenas para avaliar o grau de salinidade que as variedades indígenas tradicionais poderiam tolerar, e outras pesquisas como o uso do quebra-vento, essencial para lidar com o siroco [vento quente] do deserto. A principal novidade foi que ele estava interessado nos méritos da modernização no setor agrícola e achava que não havia necessidade de um tradicionalismo antediluviano, mas sim de uma modernidade alternativa, baseada nos pontos fortes e know-how existentes dos camponeses. Era revolucionário.
Tecnologicamente falando, ele tentou fazer várias coisas. Primeiro, ele tentou colocar instituições nacionais de pesquisa a serviço direto dos camponeses e suas variedades e tecnologias. Ao invés de pregar em favor de novas tecnologias, ele tentou co-desenvolver tecnologias existentes – recuperação de água, sementes, etc., dentro da ideia de que, como Braudel mostrou, a agricultura é uma tecnologia – em formas mais sofisticadas, para torná-las mais eficientes, sem causar danos humanos ou tecnológicos. Em segundo lugar, ele buscou maneiras de trazer as perspectivas de tecnologias apropriadas para o campo tunisiano. Por exemplo, ele defendeu a energia solar e em uma de suas experiências tentou combinar bombas solares com irrigação suplementar para que, quando o sol brilhasse mais intensamente, a água fosse derramada para as plantas subitamente secas. Mas esta foi uma abordagem à tecnologia que rejeitou completamente o modelo dominante de transferência de tecnologia que, como Amami bem sabia, tornava a Tunísia e o Terceiro Mundo dependentes. Ele se recusou a separar tecnologia das relações sociais, ecologia da dependência das importações, e sabia que uma boa agricultura, ou seja, uma boa técnica agrícola, baseada na revalorização das habilidades camponesas, poderia, de fato, servir melhor à Tunísia e fornecer o quadro para um modelo de desenvolvimento soberano.
S. N.: Existe atualmente uma onda de fome no Iêmen. Até que ponto a crise alimentar no Iêmen é devida a fatores externos? Está ligada à guerra?
M. R.: Em 1970, o Iêmen era basicamente independente do ponto de vista alimentar. Em 2015, quando a guerra dos EUA eclodiu sob os auspícios da Arábia Saudita e dos Emirados [Árabes Unidos], o Iêmen dependia em grande parte das importações de alimentos para sobreviver no dia-a-dia. A mudança de um país que pode se alimentar para um país que não pode esta na raiz da crise atual. Grande parte da produção de bens que antes eram produzidos [no país] se deslocou para uma cultura que precisa de muita água e é menos nutritiva, especialmente frutas e vegetais, que precisam de muita irrigação, com base em bombas bastante caras. Há também uma parte da terra que voltou ao cultivo do khat [erva alcalóide estimulante], o que alivia a fome e é também uma cultura de base. Essas mudanças são inseparáveis da monetarização do setor rural iemenita, quando os salários aumentaram desde 1973, pois os sauditas dependem de seus vizinhos para alimentar o proletariado do reino.
A ajuda alimentar dos EUA e a Revolução Verde reduziram a produção local de grãos, tornando-a relativamente menos cara e substituindo o trabalho pelo capital. Ao mesmo tempo, como o custo salarial aumentou para chegar ao nível dos que vivem na Arábia Saudita, as pessoas se voltaram para culturas rurais mais rentáveis ou deixaram o campo. Isso tem tido várias conseqüências. A primeira é que o cultivo em terraços entrou em colapso por falta de pessoas para cuidar dele. A segunda é que o próprio desenvolvimento nacional se tornou impossível porque a força de trabalho qualificada, literalmente elevada para os valores habituais do Iêmen, foi para a Arábia Saudita.
Tanto o campo quanto a cidade se tornaram extremamente dependentes de transferências de fundos e dos mercados para alimentos. Quando os sauditas expulsaram esses trabalhadores, devido a decisão do Iêmen de não seguir a linha saudita dos EUA sobre o Iraque e a presença dos EUA na região, as transferências de fundos para o Iêmen foram cortadas e de repente houve um excesso de mão-de-obra rural disponível. Em vez de se concentrar no setor rural, o governo iemenita aproveitou um pequeno boom petrolífero e utilizou esses fundos para subsidiar o consumo de grãos importados; uma decisão em parte iemenita, mas também norte-americana/européia, já que o excedente de grãos no mercado mundial não se deve à produtividade, esse fantasma do capitalismo fóssil, mas ao fato de muitos produtores de grãos terem recebido subsídios e exportado os custos ecológicos da produção de monoculturas de cereais para o resto da humanidade e para o futuro.
Até o início das revoltas em 2011, esse processo continuou e até se acelerou, pois a terra e a água eram dedicadas à produção de frutas e vegetais para o mercado interno protegido, embora cada vez menos terra fosse dedicada à produção de cereais. A diferença foi coberta pelas importações. Isto criou duas vulnerabilidades sobrepostas. Primeiro, ao invés de pessoas pobres dependerem de sua própria produção para sobreviver, elas dependem do mercado. E em vez de ser um mercado doméstico, ele está ligado aos preços internacionais das commodities. Assim, quando a guerra eclodiu em 2015, numa tentativa de destruir o movimento anti-sionista Houthi e reinstalar o clientelismo americano-saudita, várias dinâmicas se entrelaçaram para engendrar a fome. Uma dessas dinâmicas foi a abordagem global da agricultura, como meticulosamente documentado por Martha Mundy [1].
Depois veio a abordagem global da economia, agravando a pobreza e reduzindo a capacidade das famílias de garantir bens no mercado, do lado da demanda. No final, bloqueios e destruição da capacidade de importação foram sinônimo de preços mais altos para os compradores. Aqui é importante ressaltar que a fome, mesmo neste caso extremo de dependência alimentar causada pelo imperialismo, não se deve à falta de alimentos para alimentar o povo no Iêmen geográfico, mas a décadas de desenvolvimento capitalista e imperialista que aumentou a dependência e mergulhou o povo na miséria a ponto de não poder mais ter acesso aos alimentos do próprio país. No que diz respeito à responsabilidade, a dos Estados Unidos é imensa.
S. N.: Segundo Roland Lew, um belga especializado em China, o campesinato é uma “classe demais” para os marxistas, uma classe que eles preferem esquecer, mas que não podem ignorar. Como o senhor caracterizaria o estado atual das pesquisas marxistas sobre a campesinato e as questões agrárias?
M. R.: Eu vou redirecionar um pouco a pergunta. Em periódicos como o Journal of Peasant Studies, Agrarian South, Economic and Political Weekly ou uma revista um pouco mais popular, mas muito mais rigorosa, como a Monthly Review, a pesquisa sobre questões camponesas e agrícolas não está apenas viva e bem: está florescendo e, após um período de latência, está desfrutando de um deslumbrante renascimento. A qualidade da literatura nestas publicações sobre questões camponesas e agrícolas é muito alta, indo desde uma revitalização dos estudos sobre semi-proletarização, soberania alimentar, agro-ecologia e políticas dos movimentos camponeses até as muitas questões agrárias do nosso tempo: alimentação, finanças e imperialismo, através do trabalho na intersecção entre comércio agrícola e imperialismo, questões de sementes e desafios camponeses na América Latina, no Sul da Ásia e, num nível ligeiramente mais fraco, na África, bem como, num nível ainda mais restrito, na região do Oriente Médio e do Norte da África.
Nem toda essa literatura está situada num quadro de análise marxista – boa parte, por exemplo no JPS, está incluída numa categorização bem mais católica de estudos agrários críticos ou ecologia política – mas aplica um método materialista ao estudo da realidade contemporânea do campo em todo o mundo. Estou menos preocupado com o estado desta literatura (embora gostasse de ver mais diálogo entre este campo e as abordagens marxistas ao desenvolvimento econômico, bem como mais abertura à questão nacional e ao anti-imperialismo em alguns lugares) do que com o fato de que esta literatura ainda é bastante desconhecida para muitos marxistas de outras tradições onde, como você disse, eles preferem esquecer os camponeses. Seria gratuito citar nomes, mas o problema é geral, dadas as reservas que mencionei.
Por que isso acontece? Por um lado, a maioria das pessoas que vivem no Norte global não são agricultores nem camponeses, e essas preocupações podem parecer muito distantes de suas vidas. É verdade que poucos universitários tiveram experiência de trabalhar em fábricas, ou passaram pela prisão, mas pelo menos esses problemas parecem mais próximos a eles. Além disso, poucos departamentos universitários estudam o campesinato, ainda que o setor rural seja absolutamente central para as questões de desenvolvimento dentro do marxismo, o que tem gerado uma rejeição às questões relacionadas ao desenvolvimento rural. Também acho que há um envolvimento mais ou menos residual de alguns marxistas nos mitos da modernidade: a idéia de que, de alguma forma, o capitalismo é progressivo e que a questão agrária é um vestígio antediluviano. Opiniões como estas germinam em muitos círculos marxistas, zombando abertamente do papel dos camponeses ou pequenos produtores dentro de uma modernidade duradoura.
E, mesmo que não seja explícito, há uma rejeição bastante confortável a este tipo de produção que é central para a vida de grande parte das pessoas do planeta, mesmo que entre as inúmeras determinações que produzem nosso sistema-mundo contemporâneo, esta seja a mais concreta. Na verdade, é surpreendentemente desconhecido que os pequenos agricultores produzem pelo menos metade dos alimentos do planeta. Do ponto de vista energético – ou seja, o retorno energético da energia investida – os sistemas agrícolas dos pequenos produtores são muito mais eficientes do que a agricultura industrial que, embora barata em dólares, é cara em entropia, subjacente à urbanização contemporânea e à suburbanização. A produção em pequena escala é, de qualquer forma, invisível, pois essa força de trabalho é explorada para produzir a reserva de força de trabalho semi-proletarializada em que se baseia o capitalismo. Parece-me que é dado muito mais interesse aos trabalhadores das plataformas do que aos grandes movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que lutam por sua sobrevivência e seu futuro no Brasil, e a outros movimentos camponeses revolucionários que são criminalizados pelo Estado norte-americano. Isso também tem a ver, em parte, com o preconceito anti-camponês da ideologia ocidental, da qual o marxismo às vezes é herdeiro.
Há, porém, sinais de mudança: acredito que o marxismo está começando a abordar questões ecológicas, como o perigo que o aquecimento global representa para a civilização, e da ecologia há um possível, embora não inevitável, desvio para a agricultura e a agroecologia. Espero também que com as recentes mudanças na agricultura urbana e nas formas de produção agroecológica na Europa e nos Estados Unidos – em paralelo com o que me parece ser um fato inegável: que a questão agrícola é a questão para tirar o Sul global da pobreza neste século – a situação atual possa mudar, e que possamos ver um comprometimento renovado com estas questões nas revistas marxistas.
*Selim Nadi é membro do comitê editorial da revista Contretemps
Via Viento Sur
Notas
[1] The Strategies of the Coalition in the Yemen War: Aerial bombardment and food war, disponible en: https://sites.tufts.edu/wpf/files/2018/10/Strategies-of-Coalition-in-Yemen-War-Final-20181005-1.pdf