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FONTE: Viento Sur | 04/07 | Tradução: Charles Rosa

Este 1 de Julho começa a presidência de turno alemã do Conselho da UE. O desafio da pandemia do Coronavírus, assim como as medidas de choque ante a crise econômica são os principais desafios aos que previsivelmente se enfrentará nestes próximos seis meses. Ainda que também venha à tona neste cenário a difícil negociação do esperado Pacto Europeu sobre Migração e Asilo, cuja proposta, por parte da Comissão Europeia, esteve rodeada de obscurantismo e secretismo até a data. Pode que a gestão migratória seja uma das questões que mais tensionou a UE nos últimos anos, ao menos desde 2015, com a mal chamada crise dos refugiados. Neste período, a extrema-direita conseguiu condicionar e marcar a agenda das políticas migratórias da UE dando um impulso para a construção da Europa Fortaleza.

Que tenhamos esperado com falta de transparência a ter uma primeira proposta sobre um suposto pacto europeu migratório; que a reforma de Dublin leve anos estagnada no Conselho; e que os países de Visegrado (Hungria, Polônia, República Tcheca e Eslováquia) tenham conseguido bloquear tentativa por estabelecer um sistema obrigatório e solidário de cotas, são somente alguns elementos que mostram claramente o clima de abandono e de falta de compromisso com a situação humanitária que sofrem as pessoas migrantes e refugiadas por parte da UE e os Estados membros. Junto a este clima adverso, é fundamental não perder de vista que na legislação migratória europeia convergem políticas sobre muitos aspectos que vão além da gestão dos fluxos de pessoas, e daí sua importância, e mais ainda quando a extrema-direita converteu a anti-imigração em seu principal cavalo de batalha e contraforte eleitoral.

Assim, desde este suposto Pacto sobre Migração e Asilo, se condiciona a política da UE em temas tão diversos como a ajuda ao desenvolvimento, a defesa e militarização, os interesses geoestratégicos, a política comercial e/os direitos humanos, e ilustra as dinâmicas internas na UE, suas prioridades, quem leva a voz cantante e que tem potestade na hora de decidir os que entram e os que não entram em território europeu. A legislação migratória europeia manda também uma mensagem contundente sobre até que ponto as instituições da UE criam, alimentam e reproduzem a xenofobia institucional. Tudo isso situa a política migratória europeia num lugar chave para compreender o projeto europeu em geral, e a que interesses estão sendo servidas com as políticas de gestão fronteiriça, em particular.

O que a UE praticou até a data em matéria de migração tem sido uma política utilitarista de racismo, exclusão e vulnerabilização de direitos, condensada na luta contra as pessoas migrantes e refugiadas, que desde os liberais até a extrema-direita compartilharam e praticaram de forma crescente, em razão do assegurado retorno eleitoral que garante a mobilização política da caça ao migrante. Num contexto de imposição de austeridade, de escassez e de não haver alternativa, é necessário seguir identificando bodes expiatórios que favoreçam as políticas de expulsão contra a lógica da partilha e da justiça social. E as pessoas migrantes, invisibilizadas para qualquer coisa que não seja alimentar a falácia do transbordamento, resultam por este motivo nos alvos perfeitos. Está claro quem sai perdendo mas também quem sai ganhando, porque o número de pessoas acolhidas com dignidade na Europa é inversamente proporcional aos enormes lucros que o negócio da xenofobia aporta para essa pequena minoria que se enriquece através da gestão dos centros de detenção, de manter acordos com as companhias de voo, de levantar muros cada vez mais altos, e/ou de colocar-se a serviço dos interesses da indústria militar, de segurança, e biométrica.

Pelo momento, ainda que não tenhamos um texto oficial com o conteúdo do Pacto sobre Migração e Asilo, tudo indica, segundo os últimos vazamentos, que a proposta será sintomática, e alimentará por sua vez, da situação que atravessa a UE quanto a converter os direitos mais básicos em mero documento inofensivo. Espera-se que se afunde na institucionalização das políticas excepcionais, que já estão sendo aplicadas por parte de muitos Estados membros, o que geraria um perigosíssimo precedente ao se premiar os governo que fizeram a vulnerabilização dos direitos humanos sua prática habitual. Assim, os países de Visegrado que foram condenados pelo Tribunal Europeu pelo descumprimento das cotas de refugiados, verão como as cotas desaparecem; o governo grego, que suspendeu o direito internacional humanitário ao se negar durante um mês a cumprir com suas obrigações de asilo, será recompensado institucionalizando a suspensão temporal do direito ao asilo; e o governo Maltés verá como seu memorando com a Líbia de externalização de fronteiras e centros de internamento será não somente tolerado, mas sufragado com dinheiro europeu.

Uma proposta que desembocará na detenção, externalização e descumprimento das obrigações internacionais, numa tentativa de buscar atalhos e justificação política para ir reduzindo as poucas garantias existentes em matéria de concessão de asilo, relocalização, e acolhida, no mínimo. Os poucos elementos mais significativos que saíram à luz do pacto poderiam ser resumidos nestes pontos:

1- Detenção, deportação e externalização de fronteiras

Se a detenção e a expulsão eram já eixos principais da política migratória europeia, espera-se que os mecanismos rápidos na fronteira afundem mais no número de pessoas que são retidas em centros e em hot spots de zonas fronteiriças, e que por outro lado se amplie a lista de países qualificados como seguros para poder assegurar o maior número de deportações possível. Para isso, é necessário também aumentar a externalização, ou seja, impedir as chegadas antes de que as pessoas migrantes cheguem a solo europeu. Daí a inclusão, por exemplo, a condicionalidade das detenções na dotação de fundos de desenvolvimento para terceiros países, ou a assinatura de acordos com os mesmos onde se intercambia contenção de pessoas por prebendas políticas e econômicas. A maioria destas medidas são levadas na prática desde 2015, mas o perigoso deste pacto é que as consagra como parte da política migratória comunitária lhes outorgando estatura de norma.

2. Centros de internamento extraterritoriais. O modelo australiano

Há anos, a aspiração da extrema-direita tem sido emular o modelo australiano de gestão de fronteiras, também chamada de solução do Pacífico, e assim o propuseram desde governos como o italiano, quando a Liga fazia parte do executivo, ou desde o austríaco, quando o Partido da Liberdade da Áustria (FPO) participava no conselho de ministros. Este modelo consiste na tramitação extraterritorial das solicitações de proteção internacional, com um sistema internacional, com um sistema deliberadamente severo na ilha oceânica de Nauru e na ilha de Manus (Papua Nova-Guiné) em troca de importantes somas de dinheiro por parte de Camberra. As pessoas refugiadas e solicitantes de asilo que chegam à Austrália por mar são levadas pela força a lugares remotos, onde sofrem condições de vida cruéis e degradantes, que se prolongam durante anos. Nas palavras de Lucy Graham, pesquisadora da Anistia Internacional: “O governo australiano criou em Nauru uma ilha de desespero para as pessoas refugiadas e solicitantes de asilo que, entretanto, é uma ilha de lucro para empresas que ganham milhões de dólares com um sistema tão intrinsecamente cruel e abusivo que constitui tortura”. Uma destas empresas era Ferrovial.

No Conselho Europeu de junho de 2019, Salvini travou uma importante batalha para conseguir centros extraterritoriais de internamento de estrangeiros na Tunísia e/ou na Líbia, mas ao final foi descartado. Teve que ser o governo de Malta, aproveitando o clima de excepcionalidade da pandemia do Coronavírus, o que assinou um memorando de entendimento com uma das facções que disputam o controle de Trípoli. O memorando prevê o estabelecimento de centros de internamento na Líbia, pagos com dinheiro europeu, onde se detenha as pessoas que sejam resgatadas ou interceptadas em alto mar. O acordo migratório em questão parece que não somente não condena este memorando com a Líbia, mas também abre a porta para que se possam generalizar com outros países. r

3. Institucionalizar a excepcionalidade e a ilegalidade

Países como a Grécia, Bulgária e Malta pressionaram a Comissão para que sejam incluídas cláusulas de flexibilidades, ou seja, cláusulas através das quais poderiam se suspender potencialmente os direitos que estão consagrados em regulações existentes. Isso já foi colocado em prática pelo governo grego ao se suspender o direito de asilo em fevereiro/março deste ano, ante o incremento da chegada de demandantes de refúgio a partir da fronteira turca. Nesse momento, o governo grego não somente suspendeu o direito internacional e rechaçou cumprir seus compromissos internacionais, mas que o fez acompanhado de um gravíssimo emprego de violência, utilizando fogo real nas fronteiras ou acossando as precárias embarcações no meio do mar. Mas o mais surpreendente foi que esta atitude por parte do executivo helênico foi respaldada dentro das instituições europeias, ao chegar a afirmar a presidenta da Comissão, Úrsula Von Der Leyen, que “a Grécia era o escudo da Europa”, legitimando as práticas ilegais da Grécia e replicando o discurso belicista contra os imigrantes. Com o novo pacto migratório, a suspensão excepcional do direito ao asilo poderia ficar consagrada com uma regulação própria. Ou seja, usando o argumento do transbordamento que sofrem os países europeus das fronteiras da UE, se institucionalizariam e normalizariam as ações que vulnerabilizam direitos e se lhes dotaria de legalidade.

4. Adeus às cotas

O que talvez mostre de forma mais lapidar a fragilidade política da UE nos últimos tempos tem sido a incapacidade de fazer cumprir os acordos sobre as cotas de refugiados. Alguns países como a Hungria, Polônia ou Eslováquia fizeram do descumprimento de cotas uma bandeira política, sendo inclusive condenados pelo Tribunal de Justiça da UE por isso. Mas ainda que estes países tenham se oposto abertamente às cotas e tenham feito propaganda de sua rejeição, no restante dos países da UE se seguiu a mesma lamentável tônica. A média de cumprimento, em relação ao contingente obrigatório, está em torno de 50 e 60%, destacando por exemplo os 13,7% da Espanha, que durante o governo do PP realizou um boicote soterrado para evitar a acolhida de pessoas. Com o novo pacto, o mais provável é que as costas de repartição obrigatórias desapareçam finalmente do texto e do debate europeu, confirmando a vitória dos governos de extrema-direita da Polônia e da Hungria.

5. Reforma de Dublin e salvamento marítimo

Apesar de o critério de “terceiro país” ser um critério falido [1], tal como se vem repetindo há anos, e de que a reunificação familiar e a relocalização solidária (ou de justiça social, deveríamos dizer) entre países membros são elementos que necessitam uma gestão urgente, não está claro que estas tenham sido preocupações que nortearam as negociações sobre o que vai substituir o sistema Dublin. O que, sim, parece claro é que haverá um sistema de repartição de cotas flexível e voluntário que contente a todos os Estados membro, incluindo aqueles com uma política abertamente xenofóbica que se mostraram contrários às cotas, e que inclua a dotação de material como alternativa à acolhida de pessoas, uma medida que ilustra à perfeição o clima antipessoa na UE. Com relação ao sistema de salvação marítimo, espera-se que haja algum tipo de acordo onde, para contrarrestar o retrocesso em todos os demais aspectos do pacto, seria incluído algum tipode avanço na descriminalização das ONG de resgate no mediterrâneo. Mas além de que por ora isso segue em negociação, daí a que se decida sobre a urgente e necessária implementação de um sistema público europeu de salvamento, há um mundo e, como somos desgraçadamente testemunhas dia após dia, uma gravíssima falta de vontade política para criá-lo.

Mas igualmente importante explicar o que se prevê incluído na proposta, devemos falar também de tudo aquilo que avaliza implicitamente e que na prática supõe este pacto migratório: que o argumento do suposto transbordamento não se sustenta nos dados em mão; que gestionar as petições de silo na fronteira diminui as probabilidades de ter um exame justo e portanto fracassa ao não dar proteção internacional às pessoas que o necessitam e merecem; que definir como objetivo a detenção e expulsão alimenta e legitima a sistematização das devoluções em quente como ferramenta migratória em si mesma; que impor a condicionalidade da detenção nas políticas de desenvolvimento desvirtua os objetivos dessas mesmas políticas; que alimentar a retórica belicista anti-imigração aumenta a xenofobia; que devolver pessoas para a Líbia lhes põe em risco de sofrer tortura; que os orçamentos não se destinam para assegurar condições de vida dignas nos centros e campos de refugiados. Caso se confirmem os rumores sobre a proposta, e tudo indica que assim será, significaria que todos estes elementos foram esquecidos nas negociações sobre o novo Pacto de maneira consciente, irresponsável e, como já sabemos, mortal para muitas pessoas que tentam chegar à Europa, tanto por terra quanto pelo mar.

Nestas semanas escutamos muito a pressão exercida desde os governos de extrema-direita ou de direita radical para condicionar o Pacto Migratório. Mas talvez o mais preocupante não seja a posição pública da extrema-direita, mas que não escutamos a nenhum outro governo europeu criticando os pontos mais lesivos deste acordo, como se existisse um consenso generalizado, uma aprovação tácita sobre a conveniência de seguir construindo esta Europa Fortaleza que destila xenofobia institucional e que se converteu numa maquinaria de vulnerabilização de direitos humanos. Não poderia governos como o português ou o espanhol apresentar-se e vetar este acordo no Conselho Europeu, obrigando a renegociá-lo, contrapesando a posição da extrema-direita e demonstrando que é possível uma política migratória que respeite os direitos humanos? Seguramente não o farão, e assumirão os consensos de um extremo centro neoliberal que leva anos aplicando a agenda da extrema-direita em questões migratórias. Mas talvez se consigamos levantar e manter um processo de mobilizações como as que vivemos no início deste século reclamando papéis para todos/as, e se este se combina com o emergente movimento antirracista, então talvez tenhamos uma oportunidade de tirar este Pacto da Vergonha para a lata de lixo de algum escritório da Comissão.

Porque, enquanto se segue debatendo sobre o que incluirá ou não este novo pacto, seguimos recebendo alertas sobre barcos à deriva que desaparecem ante a passividade dos governos de turno; sobre trabalhadores sazonais dormindo em tendas de campanha sem acesso à água corrente; sobre pessoas internadas em cárceres por cometer faltas administrativas; sobre trabalhadoras domésticas à mercê de seus empregadores/as; sobre pessoas marcadas com spray e obrigadas a desnudar-se para depois serem expulsas ilegalmente; sobre mulheres que dormem com fraldas nos campos de refugiados para não ter que ir ao banheiro durante a noite por medo de sofrer violência sexual; sobre o abandono institucional de meninos e meninas e a passividade ante o número exorbitante de desaparecimentos; sobre a formação de grupos de ultradireita que amedrontam migrantes e ONG…

Porque não nos enganemos, a Europa necessita migrantes, e como testemunhamos recentemente em meio às piores semanas da pandemia, sua força de trabalho supõe um elemento central em nossas economias. Mas para seguir mantendo o crônico e crescente marco de desigualdade estrutural na Europa, esta os necessita sem direitos. Aí temos o recente e reincidente exemplo das pessoas que trabalham num setor tão fundamental como a agricultura, cobrando uma miséria, malvivendo amontoadas em albergues, e sem nenhum tipo de possibilidade de proteção contra o COVID. Neste sentido, o novo Pacto Migratório representa um novo filão de oportunidades para seguir impondo a política de escassez e miséria para alguns, e de enriquecimento para outros. E se o desprezo por certas vidas é consubstancial ao projeto europeu, a única alternativa é seguir denunciando isso e exigindo uma alternativa de gestão do movimento de pessoas com um enfoque de direitos, de justiça social e antirracista.

4/07/2020

Miguel Urbán é eurodeputado e membro do Conselho Assessor do Viento Sur.

Notas:

1/ Atualmente, o regulamento de Dublin III estabelece que o processo de asilo deve tramitar-se no primeiro país da União Europeia onde chegam os solicitantes, o que penaliza especialmente aos países da fronteira sul europeia, gerando um modelo que não funciona equitativamente. Além disso, vulnerabiliza os direitos dos próprios demandantes de asilo, como denuncia o informe do European Council on Refugees and Exiles (ECRE, 2013), já que o exame justo e eficiente das solicitações de asilo não está assegurado em todos os Estados membros. Junto a isso, os critérios de assignação de responsabilidade se aplicam de forma muito díspar, não somente pelo uso deste critério de primeiro país como principal critério, mas porque não se tem em conta o reagrupamento familiar e se aplicam a cláusula humanitária de forma muito restritiva; A falta de eficiência do critério de primeiro país se demonstra além disso, como ocorreu de forma clara em 2015, com o fato de que a maioria das pessoas que solicitam asilo o fazerem num país distinto quando qual chegaram em primeiro lugar.


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