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Adriana-Salvatierra
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FONTE: Página/12 | 30/07/2020 | Tradução: Charles Rosa

Na terça-feira, o povo boliviano saiu às ruas para rejeitar o terceiro adiamento das eleições presidenciais. A data prevista para a votação era 6 de setembro. Entretanto, na quinta-feira passada, o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) da Bolívia passou o pleito para 18 de outubro. Nas duas oportunidades anteriores havia consensuado a data com as diferentes forças políticas. Mas desta vez não. A ex-presidenta do Senado e atual membro da Câmara Alta pelo Movimiento al Socialismo (MAS), Adriana Salvatierra, qualificou a decisão como arbitrária e ilegal. “O governo de fato pressiona o TSE porque sabe que sua única oportunidade manter-se no poder é que não haja eleições”, sustentou a senadora em diálogo com Página/12.

A perseguição judicial que existe contra o MAS já conseguiu a inabilitação do ex-presidente Evo Morales para participar nas eleições. Em paralelo, avançam processos judiciais contra dezenas dos ex-membros do governo. Quando o atual candidato à presidência pelo MAS, Luis Arce, voltou a Bolívia depois de ser nominado na Argentina se encontrou com uma surpresa: oficiais da polícia esperavam isso para entregar-lhe uma situação judicial. Também está sendo revisada a matrícula do partido por uma suposta falta eleitoral, sob risco de retirar sua pessoa jurídica. É um processo quase idêntico ao que vive no Equador Rafael Correa e sua força política.

Como a senhora avalia a decisão tomada pelo TSE de prorrogar outra vez as eleições?

Há vários problemas graves. O primeiro é que o Tribunal não consultou sua decisão com os partidos políticos. As duas modificações anteriores foram feitas buscando o consenso. Por que na terceira oportunidade, que seria a definitiva, isso não foi feito? Em segundo lugar, as autoridades eleitorais sustentam que não é necessária uma lei da Assembleia para aprovar a nova data. Num processo eleitoral normal, assim seria. Mas desde novembro passado, ante a excepcionalidade que estamos vivendo depois do golpe, todo o processo foi estabelecido mediante leis. Agora o Tribunal pretende modificar a lei a data eleitoral mediante uma resolução, sem passar pela Assembleia. Ou seja, o desconhecimento de sua convocatória se baseia nesse regime de excepcionalidade. Por tudo isso, estamos dizendo que é uma decisão arbitrária, não consensual e, além disso, ilegal.

O que há por trás disso, então?

Existe uma forte pressão política por parte do governo. Cada vez que se fixa a data das eleições aparece um ascenso na curva de contágios. Mas o problema é que o governo não tem a capacidade para um cálculo efetivo de quando vai ser o pico. A Bolívia é um dos países que menos realiza testes para detectar o vírus. Além disso, os laboratórios departamentais que estão fazendo os diagnósticos têm um atraso de mais de 28 dias no anúncio das provas. Isto é, os resultados de hoje são na realidade de quase quatro semanas atrás. Isso faz com que não possamos ter uma estatística aproximada de quantos contágios reais há.

Quais medidas vocês pensam tomar ante esta situação?

Primeiramente é preciso destacar que o povo disse “basta”. Na terça-feira houve mobilizações no país expressando seu incômodo com esta decisão. Esperemos que o TSE recapacite e não rompa o esquema legal a partir do qual se apresenta um processo eleitoral. E ademais que não gere tensões desnecessárias entre as forças políticas.

Como a senhora vê as tentativas de formar uma aliança pela direita?

O que sucede é que, embora representem a similares interesses de classe, há um conflito regional não saldado. A direita extrema se encontra territorializada no departamento de Santa Cruz. Sua principal figura é Luis Fernando Camacho. Por outro lado está a tentativa de posicionar politicamente o Movimento Democrata Social, o partido de Áñez. Camacho em 2019 apoiou o ex-presidente Carlos Mesa, candidato por Comunidad Ciudadana, que partiu em segundo lugar nessas eleições. Mas agora diz que se envergonha de tê-lo feito e pressiona para haja eleições que lhe permitam reorganizar suas lealdades em Santa Cruz. Isto é, há muitas fissuras no interior deste espaço. Áñez está em terceiro lugar nas pesquisas e sabe que seu governo terminará quando for realizada a votação. Mesa neste momento é o segundo lugar com maior intenção de voto, mas não tem um forte enraizamento em Santa Cruz. Tampouco tem uma estrutura política sólida. O único que quer é que se efetive o processo eleitoral o mais cedo possível.

Luis Arce disse que o governo de facto representa uma volta ao neoliberalismo. Em quais políticas se vê isso?

O governo representa interesses de classe que estão vinculados a uma maior presença das transnacionais no país. Também a estruturas da agroindústria no oriente boliviano. Estes interesses se veem expressados nas políticas públicas que Áñez apresenta para conter a crise econômica e sanitária. Por exemplo, falou de um plano de reativação econômica de 2,6 bilhões de dólares. Mas para a reativação do emprego e das microempresas, os dois itens que mais trabalho gerariam, destinou somente 1,2% desse total. Disseram que haviam separado 5,8 bilhões de dólares para a luta contra o coronavírus, quando somente foram utilizados 11,6% desse montante em transferência direta para a cidadania. Não beneficiam aos trabalhadores, não indicam qual sua fonte de financiamento, habilitaram o uso dos transgênicos. Obedecem aos interesses de classes que não são os das classes populares.

O que você me dizer de Arce? Está ocorrendo um processo de renovação no MAS?

Arce é sinônimo de presença estatal para democratizar a riqueza. Junto a David Choquehuanca, seu candidato a vice, simbolizam nosso dever de voltar para ser melhores e não cometer os mesmos erros. Arce é o símbolo de que não é a vingança o motor de nossa luta, mas a recuperação da paz social e a estabilidade econômica. Por isso ele está sendo perseguido. Quanto à renovação, o MAS fez todo um processo que foi invisibilizado e não se expressa somente em quem é o candidato a presidente. Na Assembleia Legislativa nós temos uma taxa de reeleição de apenas 3%. Para estas eleições, nas quais também se elegem assembleístas, somente dois candidatos vão pela reeleição. Eu não vou me apresentar. Antes para ser senador, era necessário ter 30 anos. Depois das reformas feitas pelo MAS para o período 2015-2020 ingressamos na Assembleia 13% de jovens menores de 30 anos. Eu mesma jamais poderia ter podido sonhar em ser presidenta do Senado aos 29 anos.

É provável que a oposição ao MAS para ganhar a eleição busque apoiar o candidato que mais se aproxime de você nas pesquisas. O famoso útil. Você acredita que vão conseguir isso?

Isso costuma ocorrer em sociedades altamente polarizadas. Mas olhe o caso da Argentina. Vocês conheceram o que é neoliberalismo, e a Bolívia já conhece o que é a oposição no poder: ausência total de governo. Eu creio que se a esquerda efetivamente retorna em países como a Argentina, e hoje disputa o voto na Bolívia, é porque o povo tem memória. Sabe o que é pobreza. E também sabe o que é estabilidade econômica, a possibilidade de aspirar a ter uma moradia própria, de assegurar que seus filhos estudem, que possam comer três vezes ao dia minimamente. Somente Arce e Choquehuanca representam esses valores.

Juan Manuel Boccacci é jornalista do Página/12.

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