Retirada dos 10% das AFP: Um triunfo que nos obriga a estar alertas

Fonte: Crónica Digital | 11/07/2020 | Tradução: Charles Rosa

A vitória dos que votaram a favor da retirada dos 10% dos fundos dos chilenos presos no sistema previdenciário imposto pela ditadura de Pinochet e mantido até o presente, foi sem dúvida uma rotunda derrota do modelo neoliberal mantido depois da recuperação da democracia e defendido como lei divina pelo governo do presidente Sebastián Piñera e os grupos econômicos dos fundos dos aposentados chilenos.

É mais que uma vitória dos votos e argumento expressados na aprovação da ideia de legislar por uma maioria contundente da Câmara de Deputados a que concorreram, a oposição – num evento crucial de grande significação de responsabilidade política – 13 membros da governista Alianza por Chile.

Porém, é necessário dizer, que se trata de uma primeira vitória dos interesses da majoritária massa de trabalhadores, de chilenos que viram como seus fundos de pensão enriquecem, alimentam os grupos econômicos que administram o que acumularam depois de longos anos de esforço e sacrifício e que lhes foi expropriado pelos poderes econômicos financeiros que sustentam seus servidores na arena política.

Como destacado pelo deputado Matías Walker, o problema de fundo é “que o lobby das AFP não vença a democracia. E não somente o lobby das AFP, mas também dos fundos de investimento estrangeiro que são donos das AFP”.

O processo legislativo contempla a passagem da iniciativa à Comissão de Constituição, depois volta à Sala onde se deve votar em particular para depois ser despachada ao Senado para seu Segundo Trâmite.

Isto significa que os cidadão, junto à oposição política, as organizações sociais que hoje podem celebrar a resolução legislativa desta terça-feira, 8 de julho, os cidadãos em geral, devem estar alertas frente às novas batalhas políticas e sociais até tornar realidade a demanda.

Se trata de um triunfo que obriga estar alertas, e sobretudo mobilizados, porque os interesses da direita financeira, econômica e política não vão ficar tranquilos, e vão manobrar, ameaçar, chantagear para impedir, inclusive com a força, a vontade democrática expressada na votação de terça-feira, uma data que haverá que ter em mente, mas concebendo-a como um ponto de partida para uma ação político-democrática da oposição e da cidadania.

Desde já as administradoras de fundos de pensões anunciaram uma baixa do dólar, um aumento nas taxas de juros e efeitos na rentabilidade de fundos.

O presidente da Sofofa (Sociedade de Fomento Fabril), Bernardo Larraín, declarou que “A Câmara de Deputados outra vez opta pelo facilismo e renuncia a seu dever de processar as legítimas demandas sociais para transformá-las em soluções sustentáveis e de longo prazo”.

Realmente “enternece” a repentina sensibilidade social de este senhor, que surge quando vê ameaçada sua carteira e seus lucros.

O líder empresarial aponta como inimigo à Câmara de Deputados, numa coerente concordância com os que no governo apontam nada menos que eliminar seu papel, e talvez sua própria existência como parte do sistema institucional democrático do país, deixando a direção política, econômica e administrativa do país aos empresários e aos que representem num nível governamental subordinado.

Também El Mercurio, desta quinta-feira 9 de julho, volta às suas pegadas antidemocráticas quando publica em sua seção Cartas, uma missiva de um senhor Andrés Montero J. (uma espécie de Coronel NN, da conspiração sediciosa dos anos 70 contra o presidente Salvador Allende).

O senhor Montero J. as empreende contra os deputados, assinando que “depois da votação de ontem não entendem o que votam”, e que “se faz mais urgente do que nunca elevar o nível de exigências para ser deputado”.

Cabe também refletir sobre o quadro político no qual se debate o governo e o presidente Sebastián Piñera.

A votação contra a posição do La Moneda de 13 deputados oficialistas, e a abstenção de outros 31, é revelador de uma crise política interna de proporções, de uma rebelião cujo conteúdo político é de rechaço às políticas do governo, com evidentes consequências para o futuro.

A aprovação da retirada de 10% dos fundos depositados nas AFP, propriedade dos aposentados que foram obrigados manu militari a depositá-los ali, constata não somente sua incapacidade de alinhar sua base de apoio, a Alianza por Chile, mas da soberba de pretender “ordenar” a conduta dos legisladores oficialistas.

Claramente, La Moneda, o Presidente, seus principais ministros “políticos”, seus assessores não souberam ler nem o cenário político real, nem o estado de ânimo dos cidadãos, e pelo mesmo, não oferecem nenhum signo de análise autocrítica por suas políticas.

A reforma constitucional que permite a retirada de fundos empoçados nas AFP foi aprovada por 95 deputados (82 da oposição, mais 13 oficialistas – 9 da Renovação Nacional e 4 da União Democrática Independente), rechaçada por 25 votos, enquanto as 31 abstenções (de deputados oficialistas, RN, UDI e Evopoli) arremataram a derrota oficial.

A patética e inútil tentativa de última hora de La Moneda de “alinhar” suas hostes na votação não fez mais que agregar uma vergonha a mais a sua falta de perícia e de capacidade de gestão política, apesar do séquito de ministros, e altos funcionários, deslocados para o Congresso na operação de salvação.

Os gritos destemperados do presidente Piñera em La Moneda durante a tarde e a noite da quarta-feira e da manhã de quinta-feira em seu Gabinete de Emergência não bastam para explicar o tropeço, da torpeza, da arrogância e soberba que caracterizam sua conduta, e da já inocultável fratura interna.

Entretanto, o que fica claro também: não se trata somente desta batalha pela retirada dos 10%. Também está a ameaça de veto presidencial da lei que proíbe o corte de serviços básicos, do endividamento que oferece à classe média como condição para entregar empréstimos para sobreviver à situação econômica presente derivada do coronavírus e da indolência pertinaz em relação à miséria, a fome, a aglomeração, e do desemprego que á “pandemia” pós-Covid 19.

A oposição deve dar respostas ao desafio político de apresentar e não somente assinalar, mas orientar, encabeçar a defesa da justiça, o bem-estar e o futuro democrático do país.

O dever da unidade de propostas e de ação política é inevitável. A lição política e social é que quando assumidas as demandas que representam os interesses e necessidades das grandes maiorias que estão maduras na consciência coletiva, é possível avançar na luta social, na unidade e na coincidência de vastos setores.

Por outro lado, é necessário levar em conta este triunfo, que legitimamente celebra a cidadania, é também um passo a mais de um processo de tomada de consciência político e social, expressada numa luta constante iniciada pela derrota da ditadura, com a luta por maior verdade e justiça, pela defesa dos direitos humanos, pelo julgamento do neoliberalismo imperante, pela defesa do meio ambiente, pelas reivindicações dos trabalhadores, das mulheres, dos estudantes, das minorias sexuais, dos mapuches, da solidariedades com os migrantes, pelo movimento que conduziu à batalha social de outubro de 2019, dos que puseram na agenda social o “No más AFP”.

Trata-se de um processo profundo, amplo, patriótico, democrático, transparente, de protagonismos das massas, que conduz a um futuro de novas lutas e mais vitórias.

Marcel Garcés Muñoz é jornalista e diretor do site Crónica Digital.