Ameaças e manobras eleitorais ampliam deficit de democracia em todo o mundo

Como bem sabemos os marxistas, a universalização do sufrágio é resultado de sangrentas batalhas travadas pela classe trabalhadora e pelos oprimidos para ter mais influência no interior do Estado, ainda que a natureza deste permaneça burguesa, racista e patriarcal em sociedades capitalistas. Entretanto, o esvaziamento das democracias representativas – constatável pelo assustador índice de abstenção onde o voto não é obrigatório, como em toda a Europa ou nos EUA – vem ganhando contornos a cada dia mais nítidos com a manipulação das datas eleitorais, sob o pretexto da pandemia, e com a perseguição judicial contra forças opositoras.

No país ocidental de tradição republicana mais consolidada, nesta semana Donald Trump chegou a cogitar no Twitter o adiamento das eleições, algo sem precedentes na história política dos EUA. Dada a imensa repercussão negativa, a bravata não durou 24 horas, mas serviu para expressar a aflição que ronda a campanha de Trump a 100 dias do pleito contra Biden. Desde que eclodiram os protestos antirracistas em maio, o desempenho de Trump nas pesquisas, principalmente nos estados mais decisivos do Colégio Eleitoral, vem declinando, tanto por causa da inépcia de seu governo em lidar com a crise sanitária e econômica quanto por causa da intransigência em ouvir as demandas do movimento “Black Lives Matter”. O risco de perder uma reeleição que parecia provável há alguns meses certamente levará a Trump a procurar algum tipo de manobra ilegítima, como por exemplo não reconhecer a eventual vitória de seu adversário ou contestar os votos pelo correio, inflamando ainda mais sua base de extrema-direita. Será preciso que os setores democráticos, progressistas e socialistas do EUA se mobilizem para derrotar Trump em diversas instâncias.

Aqui na América do Sul, na última terça-feira, a terceira postergação das eleições, agora de setembro para outubro, despertou a ira de movimentos e da principal entidade operária do país (a histórica Central Obrera Boliviana) que saíram às ruas de La Paz e Cochabamba para exigir de uma vez por todas que o povo possa decidir qual força política tem autoridade suficiente para gerir um país destroçado tanto pela pandemia quanto pelo governo ilegítimo de Jeanine Áñez. Conforme Adriana Salvatierra (uma principais referências políticas do MAS) declarou em entrevista para o jornal Página/12, “Ánez está em terceiro lugar nas pesquisas e sabe que seu governo terminará quando forem realizadas as eleições”. Portanto, depois de inabilitar Evo Morales, o establishment golpista busca protelar o quanto for possível a realização das eleições, com o objetivo de conseguir uma virada conjuntural que permita diminuir as chances de vitória do MAS, cujo candidato Luis Arce lidera as pesquisas mais recentes.

O lawfare eleitoral contra opositores é outro tipo de manobra utilizada por regimes impopulares. Isso é bem evidente na Bielorrússia, onde o ditador Lukashenko – no poder há 26 anos – conseguiu que três de seus concorrentes nas eleições do próximo 9 de agosto fossem retirados da disputa por condenações casuísticas. Situação bem parecida ao que vem ocorrendo no Equador. Ali, desde 2018, os partidos políticos ligadas ao ex-presidente Rafael Correa (hoje exilado na Bélgica) sofrem com sentenças judiciais que os inabilitam eleitoralmente pelos mais inacreditáveis motivos. O protagonismo do Judiciário equatoriano visa a beneficiar as forças de direita, seja as da oposição reacionária, seja as do governo neoliberal de Lenin Moreno, cuja popularidade jamais se recuperou depois do levante indígena de 2019. Para as eleições gerais de março de 2021, o correísmo já começa a enfrentar a parcialidade da Justiça, a qual por meio de um órgão sem competência para tanto requereu no último 20 de julho a suspensão do registro da legenda em que convergiram diversas correntes políticas da Revolução Cidadã no começo deste mês.

Na Venezuela do regime bonapartista presidido por Nicolás Maduro, os povos indígenas veem seus direitos políticos ameaçados por uma mudança no regulamento eleitoral. Caso valha a nova normativa dada pelo Conselho Nacional Eleitoral, a votação que escolherá os representantes indígenas deixará de ser direta, secreta e universal, e passará a ser através de assembleias e de mão levantada, sob a justificativa de respeitar os “usos e costumes” dos povos originários. Conforme destacou Observatório Eleitoral da Venezuela, trata-se de mais um ataque tanto à Constituição Bolivariana (que no auge do chavismo era um exemplo de soberania popular) quanto aos indígenas, os quais sofrem a cada dia mais com o avanço da mineração de ouro em seus territórios, para não falar do crônico abandono estatal em relação a seus direitos mais básicos.

Do outro lado do mundo, em Hong Kong, parece que todo o arsenal de manobras disponíveis na literatura política vem sendo lançado mão para impedir que a insistente oposição democrática alcance a administração da cidade. Na última sexta-feira (31/07), a chefe do governo local, Carrie Lam, com a óbvia anuência de Pequim, anunciou o adiamento em UM ANO das eleições para o Conselho Legislativo, marcadas anteriormente para setembro deste ano. A medida ocorre em seguida à aplicação da controversa Lei de Segurança Nacional, imposta pela China, que resultou na detenção de dezenas de diversos ativistas da oposição, além da inabilitação de muitas de suas jovens lideranças. Sob o pretexto de proteger a população da nova onda de contaminação de Covid-19, os poderes ligados à China em Hong Kong tentam evitar que as alas democráticos e/ou independentistas da ilha consiga repetir o sucesso das últimas eleições municipais de novembro de 2019 em que levaram a maioria esmagadora dos distritos em disputa, na esteira das multitudinárias mobilizações contra o jugo ditatorial chinês.

Os exemplos brevemente analisados acima ilustram como os regimes políticos de diferentes países flertam a cada dia mais com o autoritarismo e com a anulação dos direitos democráticos, conforme se aprofundam os impasses do capitalismo em sua fase mais decrépita. A tenacidade dos movimentos sociais bolivianas demonstrada nas ruas na última terça-feira, como já mencionamos, ou mesmo as populações árabes que se insurgiram contra regimes ditatoriais na última década constituem em excelentes exemplos do caminho em que os povos do mundo precisam trilhar para que não prospere um modelo político ainda mais autoritário no contexto pós-pandemia. A nossa aposta é de que o “novo normal” da luta de classes no próximo período serão as revoluções democráticas.