Entre as contradições do caos geopolítico global, a revolução democrática emerge na Bielorrússia

Agosto de 2020 será um mês que ficará por muito tempo na memória dos bielorrussos em razão das maiores manifestações de rua já registradas em sua história recente. Uma revolução democrática contra o regime autocrático de Alexander Lukashenko vem se desenvolvendo nas últimas semanas, com forte protagonismo da classe trabalhadora e das mulheres. Por envolver e contrapor diretamente os interesses geopolíticos da Rússia e da OTAN, o curso dos acontecimentos na Bielorrússia é acompanhado com atenção pela imprensa mundial, pelo establishment global e pelos revolucionários internacionalistas. Tentaremos neste breve texto sintetizar as informações mais importantes do processo revolucionário em desenvolvimento, bem como explicar as nossas posições de apoio ao movimento de massas na Bielorrússia contra a ditadura de Lukashenko e de rechaço a qualquer tentativa de intervenção imperialista na crise que, caso aconteça, só poderá intensificar a super-exploração dos trabalhadores bielorrussos.

A fraude eleitoral como estopim do levante democrático

Após 26 anos de férreo controle sobre o sistema político e de cinco processos fraudulentos de reeleição, Alexander Lukashenko enfrenta uma onda de contestação sem precedentes. Desde que anunciada a vitória eleitoral do “último ditador da Europa” com inacreditáveis 80% dos votos na noite de 9 de agosto, os moradores de Minsk e de outras três dezenas de cidades foram às ruas denunciar a farsa eleitoral, expressa principalmente na inabilitação e detenção de três candidatos opositores ao regime. Nem mesmo a repressão – feroz até mesmo para os parâmetros da autocracia bielorrussa, com um saldo até agora de cerca de 7000 detidos e ao menos três mortos – impediu que o movimento contestatório se expandisse por todo o país e chegasse também aos locais de trabalho. Nos últimos dois domingos (23 e 16 de agosto), os manifestantes só podiam ser contados na escala de centenas de milhares. Além disso, os pontos de greve já ultrapassavam a marca de 150 por todo o território nacional até o dia 25 de agosto, algo que impressiona bastante visto que metade dos trabalhadores bielorrussos está vinculada ao setor público (ou seja, sofrem com as ameaças de represália dos capatazes do regime), sem contar que os sindicatos independentes da Bielorrússia foram constantemente enfraquecidos desde que Lukashenko esmagou a greve do metrô de Minsk em 1995.

Esta fúria popular e operária contra o autoritarismo ocorre num país em que a gestão da pandemia foi tão péssima que apenas encontra algum paralelo no mundo com o Brasil de Bolsonaro. Lukashenko não fez absultamente nada para combater o novo coronavírus e chegou ao cúmulo de prescrever vodka e sauna aos infectados por aquilo que ele havia inicialmente classificado como “psicose”. Para além do obscurantismo de um presidente que uma vez declarou que “preferia ser ditador a homossexual” ou que “as mulheres não estavam aptas para governar a Bielorrússia”, há a preocupação com a debilidade da economia do país, a qual desde a crise de 2008 se vê atolada em dificuldades cada vez maiores, agravadas pelo esfriamento das relações com Rússia que lhe subsidia petróleo e outras fontes de energia em troca de uma “união militar” geoestratégica. Para se ter uma ideia, na última década, o salário médio do trabalhador bielorrusso caiu de 550 dólares para 300 dólares, na esteira de uma galopante inflação.

Contradições da geopolítica e o dever dos revolucionários

A escassez de democracia somada à deterioração crescente das condições materiais de seus habitantes produziram a atual crise na Bielorrússia. Quando percebeu que a situação havia saído de seu controle e na iminência de perder aliados internos para uma pactuação com setores burgueses da oposição que o retirasse definitivamente do ringue (vide o desenlace a Revolução de Veludo na Armênia em 2018), Lukashenko se viu obrigado a pedir ajuda ao mesmo Kremlin que ele havia acusado anteriormente de tentar interferir nas eleições bielorrussas com a infiltração de 30 agentes provocadores no começo de agosto. Evocando a crise ucraniana que culminou num governo afim ao Ocidente e na anexação da Crimeia pela Rússia, Lukashenko acusa a oposição interna de ser teleguiada pela OTAN e pela União Europeia – instituição, aliás com a qual curiosamente ele vinha travando bom diálogo desde 2016, quando foram levantadas sanções contra altas autoridades do regime em troca de facilidades fiscais para empresas europeias. Fiel ao pragmatismo que tão bem o caracteriza, Putin parece ter esquecido rapidamente as desavenças passadas e já anunciou que as tropas russas estarão à disposição de Lukashenko, caso haja uma incursão europeia em solo bielorrusso.

De fato, é inegável que as potências ocidentais têm seus representantes dentro da oposição bielorrussa, como o autoproclamado Conselho de Coordenação transitório, cujos partidos-membro defenderam um programa neoliberal durante as eleições. Vale lembrar que mais da metade do PIB bielorrusso é controlado pelo Estado, de modo que as suas empresas públicas são alvo de cobiça do grande capital internacional há um bom tempo. Além disso, a Bielorrússia apresenta uma mão de obra extremamente qualificada a um custo relativamente baixo, o que propicia condições ideais para empresas, por exemplo, de tecnologia.

Contudo, do ponto de vista do socialismo internacional, constitui um erro gravíssimo se colocar contra um movimento de massas profundamente espontâneo e com uma notável atuação da classe trabalhadora, em benefício de um inexistente campo antiimperialista nas relações geopolíticas de 2020. Esta transposição do campismo1 do século XX para o século XXI só poderá desarmar o internacionalismo revolucionário.

E aqui listamos três motivos para chegarmos a esta conclusão:

1- Em primeiro lugar, nenhum povo é obrigado a tolerar a supressão de seus direitos políticos e o rebaixamento de seu nível de vida, em nome de uma lógica geopolítica, seja ela qual for. Exigir que o povo bielorrusso se silencie e aceite a tirania contribui para desacreditar os socialistas do século XXI, em sua árdua missão de conciliar igualdade social com liberdade.

2- Em segundo lugar, a vitória de Putin nesta queda de braços significaria, na realidade, a vitória da oligarquia russa, a qual certamente não possui um programa econômico tão diferente para a crise bielorrussa que o receituário neoliberal do Ocidente. As esquerdas que romantizam Putin (e até mesmo Xi Jinping) pela rivalidade com os EUA e a UE frequentemente omitem que ambos obedecem à logica do grande capital de seus respectivos países, e não à construção de outros Estados independentes e sob poder operário e popular.

3- Em terceiro lugar, a situação que mais colocaria em xeque o neoliberalismo moribundo do contexto pós-pandemia seria justamente o triunfo de uma revolução democrática na Bielorrússia. Se o processo bielorrusso for adiante, certamente o será pela força dos organismos da classe trabalhadora em direção a uma Assembleia Popular Constituinte num país onde a economia ainda é fortemente estatizada e seu proletariado apresenta uma consciência socialista mais avançada que nos outros países da região.

Deste modo, as tarefas elementares dos revolucionários no restante do mundo compreendem em: a) denunciar o regime autocrático de Lukashenko; b) exigir que não haja intervenção estrangeira de qualquer tipo em território bielorrusso; c) incentivar que os trabalhadores ganhem peso na revolução democrática até que um novo processo constituinte reorganize a luta de classes na Bielorrússia.


NOTA

1O campismo foi uma teoria muito influente na vanguarda revolucionária do século, a qual propugnava a existência de dois campos geopolíticos irreconciliáveis em última instância: o campo capitalista liderado pelos EUA e o campo socialista liderado pela URSS. Assim, o proletariado de um determinado país que se colocasse em movimento contra o seu governo deveria calcular o quanto era conveniente para o campo socialista a sua luta para desenvolver as suas táticas.