FONTE: Left East | 04/08/2020 | TRADUÇÃO: Charles Rosa
O explosão de 4 de agosto no porto de Beirute é um desastre sem precedentes. A explosão de 2700 toneladas de nitrato de amônio confiscadas de uma embarcação em 2013 e armazenadas no Porto, assassinou mais de 135 pessoas, deixou mais de 5000 feridos, e deixou mais de 300 000 sem teto em uma cidade de escombros e vidros estilhaçados. Ainda não está claro o que levou o material a incendiar e explodir. Este texto analisa mais de próximo o porto e as vizinhanças afetadas, e o momento socio-econômico no qual ocorreu a explosão.
O Local
O porto de Beirute é o principal ponto de entrada desde o mar, e recebe mais de 90% das importações do país. Também é o local dos principais silos de grãos do país, agora em grande parte destruídos. Mas além de uma zona de carga e comércio e uma área de armazenamento, o Porto é também um lar. O incêndio que se seguiu à explosão ocorreu numa instalação de armazenamento diretamente em águas marítimas. Mas o local é próximo de vários bairros residenciais, mercados, o principal terminal de ônibus e a região central de Beirute. Embora a explosão realmente afete a todos em Beirute, as pessoas que estiveram à margem da pobreza e que viveram ou trabalharam nos bairros ao redor do porto, acabam de perder seus lares e trabalhos, sofreram feridas ou perderam a vida.
Imediatamente ao sudeste do Porto é a área de Karantina, que inclui edifícios de armazenamento, mas também residências e mercados. O porto e Karantina estão delimitados pelo restante de Beirute pela rodovia Charles Helou: Karantina está ao norte da estrada, enquanto vários bairros densamente povoados como Mar Mikhael, Gemmayze e Burh Hammoud estão ao sul da estrada. Mar Mikhael e Gemmayze são lares de várias comunidades de migrantes e refugiados, inclusive a comunidade armênia e os trabalhadores do sul da Ásia. Durante a última década, a área se transformou no café popular e bar familiar para a maioria dos visitantes de Beirute. Embora seus velhos edifícios históricos foram habitados por famílias libanesas durante gerações, ao mesmo tempo, a área tem sido testemunha de alguns dos projetos de destruição e construção urbana mais violentos, exprimindo edifícios de vários andares em lugares estreitos, elevando-se sobre os residentes e reclamando a vista principal do mar através de janelas de vidro gigantes, o mesmo vidro que agora suja as ruas. Além disso, durante a crise do lixo em 2015-16, os moradores deste bairro sofreram meses de odores tóxicos e desagradáveis do vertedouro próximo e do excesso de lixo que foi armazenado ou jogado ao longo da costa.
Ao Oeste da explosão se encontram várias áreas em frente ao mar com praias, centros turísticos e cafés ilegalmente privatizados, a Praça dos Mártires e o Centro de Beirute, que foram reconstruídos depois do fim da Guerra Civil (1975-1990). O centro de Beirute tornou-se um centro para lojas de alto luxo e “Bazares de Beirute”, hotéis, bancos embaixadas e prédios governamentais, incluindo o Palácio do Governo (Serail), todos sofrendo vários danos na explosão. Em dias normais, o Centro de Beirute mais uma zona de transição para a maioria dos habitantes de Beirute que entravam ou saiam do bairro de Hamra, já que a maioria não pode permitir-se comprar ou jantar no distrito. Esta é também a razão pela qual se converteu no principal lugar para os protestos de 2017 e 2019 contra a corrupção governamental e financeiro. Os protestos contra a crise do lixo em 2015 e 2016, assim como a revolta de Outubro de 2019 repintaram muitos dos muros da área com arte e palavras de ordem revolucionário numa tentativa de reivindicar o Centro da cidade para o público.
O dano
O dano está em todo o raio da explosão, inclusive mais ao leste em Hamra – lar de um distrito comercial e residencial, a Universidade Americana de Beirute (AUB), e o Centro demitiu mais de 850 empregados no mês passado. O aeroporto de Beirute no extremo sul da cidade também sofreu danos, e alguns informes dizem que a explosão foi tão poderosa que se sentiu a mais de 200 km de distância no Chipre. A Companhia de Eletricidade (Electricite du Liban) também sofreu danos num momento em que os residentes experimentam cortes de eletricidade imprevistos e escassez de combustível para os geradores de eletricidade, o que proíbe a muitos comprar alimentos perecíveis caso eles consigam.
Mas o dano para os espíritos das pessoas não podem ser mensuradas. Os que sobreviveram ainda estão tratando de dar sentido à magnitude desta tragédia enquanto recolhem os pedaços de suas casas destroçadas e processam o choque e o desespero.
Crucialmente, essa explosão se produz em meio ao colapso financeiro e a urgência médica no Líbano; um tempo de “múltiplas crises”. Nos últimos meses, a crise financeira de 2020 fez as taxas de inflação voar pelas nuvens, desvalorizando a lira libanesa de 1500/1 USD para quase 8000/1 USD, às vezes alcançando o patamar dos 10000. A escassez de divisas levou os bancos a limitarem ou congelarem a retirada de dólares, cortando efetivamente as poupanças e os salários das famílias. O aumento dos preços empurrou muitas pessoas ainda mais para a pobreza e a precariedade fazendo a ONU alertar para a ameaça de miséria e fome no país.
Tudo isso também ocorre durante a pandemia de Covid-19, cujos efeitos estão longe de acabar no Líbano. Esta explosão chega como um golpe surpreendente e contundente, após anos de corrupção política, erosão de serviços e infraestrutura, instabilidade política local e regional, e guerras e ataques (incluindo os devastadores ataques de 2006 por Israel que causaram destruição em massa no país).
E agora?
Por si só, essa explosão é surreal. A destruição que deixa para trás é insondável do ponto de vista de um observador externo e, possivelmente, sem paralelo na dolorosa história do Líbano. O choque é seguido pela dor e, então, pela raiva legítima contra a negligência e o abuso banais da vida humana. O povo do Líbano – sejam cidadãos, refugiados, trabalhadores ou emigrantes – sempre foi o mais resiliente. Mas eles estão com raiva de seus líderes corruptos que continuam a transformá-los em “reféns” e “sobreviventes acidentais”. E eles querem respostas, responsabilidade, vingança e ajuda.
Devemos estar com o Líbano hoje e devemos defender o direito do povo de simplesmente viver. Isso inclui apoiar os apelos do povo por justiça contra os crimes prolongados e a corrupção da elite governante. Também inclui doar para entidades confiáveis e não governamentais que garantirão que a ajuda seja recebida pela população e não perdida ou roubada. Abaixo está uma lista preliminar, por favor, considere doar.
A list of local and international NGOs in Lebanon
እኛለኛ በስደት Egna Legna Besidet (uma organização de caridade que fornece assistência para trabalhadoras domésticas etíopes no Líbano)
Adriana Ahmad Qubaiova é PhD em Estudos Comparativos de Gênero. Ela morou em Beirute em 2013 e conduziu vários meses de pesquisas na cidade desde então. Atualmente ela está escrevendo seu livro “Hedging Queer Sexualities in Beirut”