Os projetos turísticos assediam ao povo garífuna de Honduras

FONTE: Publico.es | 16/08/2020 | TRADUÇÃO: Charles Rosa

“Não é um caso isolado. É um processo de extermínio do povo garífuna que não é recente. Estorvamos porque estamos nos territórios da costa caribenha. Somos um povo em luta e resistência permanente”. Assim contextualiza a desaparição de quatro jovens garífunas, em 18 de julho passado, Miriam Miranda, ativista hondurenha pelos direitos humanos e líder da Organização Fraternal Negra de Honduras (Ofraneh). “Os meios de comunicação sensacionalistas perguntavam se apareciam os corpos. Em lugar de denunciar o nível de violência e de insegurança que há no país, sempre querem apresentar os corpos e as vítimas, não a origem. É preciso uma investigação e também um debate sobre por que passa isso no país”, assim inicia a conversa com Miranda.

O povo garífuna, afrodescendente e presente na costa caribenha de vários países da América Central, vive em Honduras desde o século XVIII. À defesa histórica de sua cultura e de sua língua própria, se soma nas últimas décadas a de seus territórios, que estão no ponto de mira das empresas turísticas e do agronegócio.

“Não há nenhum lugar no que seja mais provável morrer assassinado por enfrentar as empresas que acumulam a terra e destroem o meio ambiente que em Honduras”, afirma de maneira taxativa a organização Global Witness, que realiza campanhas contra os conflitos e a corrupção relacionados com os recursos naturais, assim como contra as violações dos direitos ambientais e os direitos humanos. Um informe desta organização, publicado em janeiro de 2017 e intitulado ‘Honduras. O lugar mais perigoso para defender o planeta”, registra mais de 120 pessoas foram assassinadas entre 2010 e 2016. “As vítimas eram pessoas correntes que se opuseram às presas, as minas, a exploração madeireira ou a agricultura ou assassinos a soldo. Muitos outros foram ameaçados, atacados ou encarcerados”. O povo garífuna e o desenvolvimento turístico de Honduras é um dos cinco estudos de caso de um informe no qual se faz um gráfico sobre quem move os fios e no qual aparece na cimeira o presidente hondurenho, Juan Orlando Hernández.

“Nossa perseguição e assassinato tem a ver com uma sistemática estratégia do Estado de entregar os territórios das comunidades às grandes indústrias turísticas. Foi iniciada na época das bananeiras desde os anos 1930, seguida com a época militar dos anos 70 e 80, fortalecida nos anos 90 com a entrada do neoliberalismo e agora escalada com o assassinato persistentes nesta época do neo-extrativismo e do capital transnacional”, detalha Miranda à guisa de resumo.

Investigações próprias do meio de comunicação hondurenho Contracorriente, revelam que nos últimos 11 anos se contabilizaram 685 casos de violência contra defensores do meio ambiente no país, sendo a população garífuna a mais golpeada: de 138 assassinados vinculados à defesa da natureza, sete casos foram de pessoas garífunas.

A situação que se vive em Honduras teve maior impacto midiático e internacional em 2016 com o assassinato de Berta Cáceres, indígena lenca e prêmio Goldman que lutava contra uma hidroelétrica. “Ainda antes de seu assassinato, foi sequestrada por grupos armados que pretendiam meu desaparição, o qual não lograram por uma ação oportuna de um companheiro que pode denunciar”, descreve Miranda. Sua voz, seu rosto e seu corpo são provavelmente os mais visíveis da comunidade garífuna e é habitual vê-la participar em eventos internacionais de defensoras e defensores de direitos humanos e é habitual vê-la participar em eventos e declarações suas em meios de comunicação. Seu ativismo nas redes sociais também é marcado.

Quatro desaparições

Homens fortemente armados que portavam casacos com a insignia da DPI (Departamento da Polícia de Investigação), em veículos com características similares aos dos oficiais da ordem, retiraram de suas casas à força, segundo relata a líder, quatro jovens: ao presidente do patronato da comunidade Triunfo de la Cruz e membro de Ofraneh, Alberth Sneider; e aos três líderes comunitários Milton Joel Martínez, Aparicio Mejía e Alber Sentana. “Apesar das restrições de mobilização existentes, ante a pandemia, e com um toque de recolher imperante, ingressaram veículos com pessoas fortemente armadas à comunidade”, denuncia Ofraneh num comunicado.

Até o momento foi detido um suspeito. A Secretaria de Estado hondurenha informou que Polícia Nacional mantém ações permanentes na região para o esclarecimento dos fatos, “no marco do respeito irrestrito aos direitos humanos da população”. E o presidente Hernánez tuitou mais de dez depois do sucedido que “o Governo está focado em lograr justiça para os quatro membros da comunidade garífuna”. “Continuaremos trabalhando para fazer justiça para as vítimas e seus famílias e até que o trabalho dos defensores de DDHH em Honduras seja reconhecido, protegido e respeitado. Essa é nossa prioridade”, completou também na rede social.

Esses dias também foi denunciado o envenenamento de peixes e águas doces no lago Aguán. E um mês antes foi encontrado o corpo Antonio Bernárdez, oriundo da comunidade garífuna de Punta Piedra e que estava desaparecido há seis meses, com indícios de tortura e impactos de balas em seu rosto. O homem, de 71 anos, gozava de medidas cautelares outorgadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

“Nosso exemplo de vida é completamente contrário ao capitalismo colonial, racista e patriarcal. Por isso tivemos que nos defender das famílias oligarcas que destroem a terra com monocultivos e limitam nossos lugares para viver; de empresas e monopólios turísticos que poluam o mar e nos proíbem pescar, de grupos de crime organizado que querem nos expulsar com violência de nossas comunidades, para usá-las em seus negócios. Tudo com a cumplicidade e violência do Estado hondurenho. Ante a violência deste sistema nos cuidamos e protegemos em coletivo, encontrando a força em nossos tambores ancestrais e nossa capacidade organizativa”, escreveu Ofraneh num artigo publicado em Pikara Magazine dez antes da desaparição dos quatro jovens.

Miranda se mostra clara em conversa com Público: “Lutamos para defender a vida, para gerar vida, não morte. A hondurenha se converteu numa sociedade onde prevalece o terror, a morte, a violência, a insegurança. O Estado não quer cumprir. Em maio foi assassinado Antonio Bernárdez e em julho estamos enfrentando a desaparição forçada de nossos irmãos. Este é um plano de extermínio contra um povo em resistência permanente. Não esquecemos que as sentenças servem para todos os povos indígenas, porque tem a ver com a obrigação da consulta e com o direito à propriedade coletiva outorgados pelo mesmo Estado”.

A postura da Corte Interamericana de Direitos Humanos

Duas sentenças da CIDH decidiram em 2015 a favor do povo garífuna. Uma delas ordena que o Estado deve “restituir de maneira integral à comunidade de Punta Piedra seu território titulado, garantindo seu uso e desfrute pacífico de maneira plena e efetiva”, assim como avalizar que o território “não sofra nenhuma intrusão, expansão adicional, interferência ou afetação de parte de terceiros ou agentes do Estado que possa menosprezar a existência, o valor, o uso ou o gozo de seu território”. A outra sentença protege as terras comunitárias de Triunfo de la Cruz, fazendo referência, entre outras questões, a projetos turísticos. Até agora, segundo Ofraneh, o Estado de Honduras descumpriu as resoluções, apesar de que se estabeleciam prazos de execução.

“A expulsão dos garífunas da Bahía de Trujillo, a instauração de plantações de palma africana que vem sendo utilizado pelo crime organizado para se apropriar de vastos territórios, assim como a instalação de projetos inconsultos como a Térmica de la Ensenada são algumas das razões pelas integrantes de Ofraneh foram ameaçados, criminalizados, perseguidos e até sequestrados”, conta Miranda.

Há um ano a CIDH publicou o informe “Situação dos direitos humanos em Honduras”, no qual registra que este organismo multilateral recebeu testemunhos de pessoas garífunas “relacionados com a construção de projetos hoteleiros e casas de férias em parte das terras e territórios reivindicados por tal comunidade”. A Comissão adverte que “teriam sido aprovados sem a realização de uma consulta prévia, livre e informada de acordo com o Convênio 169 (da Organização Internacional do Trabalho), ratificado por Honduras em 1995”.

Incidência política

Graças ao aumento do assédio, diversas organizações de defesa de direitos humanos lançaram em 9 de julho passado uma campanha de apoio internacional a Ofraneh e ao Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (Copinh, o coletivo de Berta Cáceres), sob o lema #SusVidasSonNuestrasVidas. À iniciativa se somou a relatora especial sobre a situação das pessoas defensoras dos direitos humanos para as Nações Unidas, Mary Lawlor.

Cinco eurodeputados e eurodeputadas do GUE/NGL também enviaram uma carta ao Alto representante da União para Assuntos Exteriores e Política de Segurança, Josep Borrell; embaixador da União Europeia em Honduras, Alessandro Palmero; e ao coordenador da Oficina Técnica de Cooperação ao Desenvolvimento (AECID) em Honduras, Juan José Sanzberro. Na missiva, recordam que a UE apoia Honduras nos temas de direitos humanos e de proteção a pessoas defensoras que “ingentes quantidades de fundos foram canalizados através da Eurojustiça para os componentes de luta contra a impunidade e o fortalecimento da justiça desde 2013”. Segundo o escrito, a UE aportou 27,5 milhões de euros no período 2013-2018.

No âmbito estatal, celebrou-se uma reunião em 17 de julho com Ione Bellara, secretaria de Estado de Agenda 2030 do Governo da Espanha. Os coletivos participantes solicitaram que se exerça um maior controle sobre o uso dos recursos, para assegurar a efetividade dos direitos e que haja um maior acompanhamento das violações de direitos humanos que se dão no âmbito de trabalho de instâncias financiadas pela AECID e a UE.