Em suspenso
FONTE: Brecha | 28/08/2020 | TRADUÇÃO: Charles Rosa
Depois de um novo adiamento das eleições, o governo de Jeanine Áñez teve que enfrentar nas últimas semanas massivas mobilizações operárias e camponesas, que bloquearam estradas e caminhos, além de gerar graves distúrbios nas principais cidades do país. A medida, não obstante, colocou em perigo as chances do MAS nas eleições, quando deverá enfrentar um oficialismo impopular e cercado por uma grave crise sanitária e econômica.
Uma das imagens que mais impactaram a cidadania boliviana no início de agosto foi a de 28 bebês recém-nascidos que necessitavam oxigênio medicinal. Este tardou em chegar graças ao bloqueio de caminhos e pôs em risco a vida dos bebês. A cena foi o resultado de uma crise política que, embora tenha sido superado, deixou um conflito latente. Durante 12 dias, o bloqueio de caminhos, protagonizado pelas organizações sociais afins ao Movimento al Socialismo (MAS) que questionavam a mudança de data das eleições nacionais, impediu o transporte de oxigênio de Santa Cruz ao restante das cidades. Agora, uma vez levantada a medida, os dirigentes sociais denunciam ser alvo de perseguição que poderia tensionar a espera dos comícios, que já foram suspensos três vezes.
TRANCAÇOS E PROTESTOS
A nova postergação para 18 de outubro das eleições pelo Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) molestou setores sociais afins ao MAS, partido do ex-presidente Evo Morales. A medida unilateral do TSE, anunciada em 23 de julho, é considerada por esse setor da oposição uma forma de prorrogar o lapso do governo transitório, que, depois dos conflitos do ano passado, tinha a missão de pacificar o país e convocar um novo pleito, mas até o momento está no poder há mais de nove meses. Da mesma forma que o primeiro adiamento da data das eleições (fixadas para 3 de maio e postergadas no começo da epidemia para 17 desse mês) e o segundo (que as agendou para 6 de setembro), esta última postergação se deveu, de acordo com o governo, a ascensão dos contágios de coronavírus. Durante a terceira semana deste mês, chegaram, segundo a recontagem oficial, aos 2031 casos diários, o terceiro pico mais alto desde março.
Ao conhecer a notícia desta terceira postergação, a oposição questionou que a autoridade eleitoral mudasse a data de votação em contradição com o que havia aprovado a Assembleia Plurinacional – na qual o MAS tem maioria – num acordo com o oficialismo arduamente negociado. Em 2 de agosto, desde seu exílio na Argentina e mediante sua conta de Twitter, Morales afirmou que o TSE “não pode apoiar tentativas de um governo de facto de se prorrogar”. Suas bases sociais recorreram, então, a uma estratégia de protesto que popularizaram os movimentos campesinos – entre eles, o liderado por Morales – nos anos 90 e 2000 e que na atualidade usam vários grêmios como forma habitual de propor suas demandas. De 3 a 15 deste mês, os setores aglutinados no chamado Pacto de Unidade – aliança de movimentos sociais que respaldam o MAS – bloquearam as vias principais de seis departamentos do país.
RECUO
Finalmente, o tenso cenário se solucionou sem a intervenção das forças da ordem, apesar de que na quinta-feira, 06 de agosto, o ministro de Governo (Interior), Arturo Murillo, disse numa conferência de imprensa que, embora o Executivo pensasse esgotar todas as instâncias de negociação, não estava descartada uma intervenção militar “em qualquer momento”. Com o correr dos dias, e a mediação da igreja católica e representantes da União Europeia e das Nações Unidas, os movimentos sociais foram aceitando o 18 de outubro como nova data das eleições e o governo se ofereceu a dar garantias de que assim seja cumprido.
Morales, que no início da medida expressou seu apoio ao protesto, já vinha retrocedendo em seus passos e em 9 de agosto afirmou que as bases mobilizadas deviam refletir sobre as propostas do TSE. Numa mensagem para os mobilizados emitida através da Rádio Kausachun, afirmou que, caso se contasse com uma lei do Parlamento que referendasse a nova data e com o aval da comunidade internacional, era possível aceitar a nova postergação dos comícios. E disse mais: um pouco depois de começados os bloqueios, “somente 28 por cento repudiava a mobilização de luta pela democracia; na sexta-feira já subiram para 49 por cento e, no sábado, para 58 por cento», em referencia a pesquisas que disse haver visto por essas horas. “Se fazemos uma avaliação, o governo usa muito bem nossa mobilização para nos desgastar”, agregou.
Na sexta-feira, 14 de agosto, a Central Obrera Boliviana (COB), principal animadora dos piquetes, chamou a levantar a medida e a “uma trégua das mobilizações” até 18 de outubro. Numa coletiva de imprensa, seu secretário-executivo, Juan Carlo Huarachi, disse que a decisão buscava “evitar mais enfrentamentos e mortes” e que a COB e o Pacto de Unidad eram os verdadeiros “pacificadores do país”. O dirigente também assegurou que a aprovação das disposições legais e administrativas necessárias para celebrar as eleições na nova data – que foram aprovadas pelo Parlamento no dia anterior – eram “uma conquista da classe operária”. Se fosse pelo governo, assegurou, não haveria eleições em 18 de outubro. «Estavam mentindo para nós, estavam mentindo para o povo boliviano”, assim criticou o que foi dito no dia anterior, no Palácio de Governo, pela presidenta Jeanine Áñez.
Ao promulgar a lei com a nova data de eleições, a mandatária interina afirmou que estava assinando uma “segunda pacificação” do país. Considerou, além disso, que uma vez promulgada a lei, acordada com a bancada do MAS, já não havia razão para os bloqueios: «Os bolivianos, para além de nossas diferenças, preferimos a democracia à ditadura, o diálogo ao bloqueio […]. Queremos a vida antes que a guerra. Por isso queremos que passe o oxigênio”. Em tom conciliador, assegurou que os bolivianos têm “metas comuns, que agora são a saúde e a economia”.
BALANÇO E PERDAS
Os cortes de estradas provocaram uma perda econômica de ao menos 700 milhões de bolivianos (algo mais de 101 milhões de dólares), segundo o Ministério da Economia. O desabastecimento de alimentos e combustível causou carestia e o aumento dos produtos da cesta familiar. Além disso, o governo afirma que, por falta de oxigênio nos hospitais, morreram 27 pacientes com Covid-19. O secretário-executivo do Sindicato de Ramos Médicos Afins de La Paz, Fernando Romero, disse à Brecha que foi registrado, ademais, um número similar de mortes de pacientes da área rural que não puderam ser trasladados aos centros especializados nas cidades. O sindicato médico apresentou uma denúncia na Procuradoria por homicídio culposo contra seis dos dirigentes que encabeçam o Pacto de Unidad; entre eles, Huarachi.
Ainda que os dirigentes sociais afirmem que nos bloqueios a COB deu a ordem de deixar passar os caminhões que transportavam oxigênio e que assim se fez, o governo decidiu demandar penalmente as organizações sociais; neste caso, o vice-presidente das Seis Federações Cocaleiras do Trópico de Cochabamba e candidato a senador pelo MAS, Andrónico Rodríguez, e o executivo da Federação Chimoré, que reúne mais de 100 sindicatos cocaleiros, Leonardo Loza. Além disso, as autoridades apresentaram uma denúncia contra Morales por “atentar contra a saúde pública”. A causa se soma a quatro demandas penais que pesam contra o máximo dirigente do MAS; entre elas, uma por estupro, abuso sexual e tráfico de pessoas (veja a nota «El abuso», neste número).
Para a socióloga e cientista política da Universidad Mayor de San Simón, María Teresa Zegada, os conflitos serão apaziguados em decorrência de que o MAS percebeu que os bloqueios prejudicavam a sua imagem eleitoral. A acadêmica também atribui a interrupção dos protestos ao fato de que muitos dos manifestantes haviam contraído Covid-19, tal como indica um relatório do Serviço Departamental de Saúde de Santa Cruz, que em 10 de agosto afirmou que, de 49 pessoas detidas pelos bloqueios na localidade de Samaipata, 19 deram positivo nos testes rápidos.
CAMPAÑA EN CRISIS
O governo transitório diz esperar que entre setembro e outubro baixe o pico de contágios. Para isso, assegura, as eleições nacionais serão realizadas sim ou sim em 18 de outubro. “A presidenta Áñez não é quem quer prorrogar. […] O Órgão Executivo entendeu que em 18 de outubro se deve colocar como uma data impreterível, e assim entendeu a Assembleia”, afirmou à Brecha o vice-ministro de Coordenação e Gestão Governamental, Israel Alanoca. De acordo com a última pesquisa de intenção de voto urbano de Ipsos, publicada na sexta-feira, 21 de julho, os candidatos de Comunidad Ciudadana –o ex-presidente Carlos Mesa– e o MAS –o ex-ministro da Economia Luis Arce– empatam com 26 por cento de apoio. Áñez aparece em terceiro, com 14%. A pesquisa não inclui as áreas ruais, onde o MAS espera obter uma importante vantagem.
De todos os modos, o episódio dos bloqueios foi apenas a manifestação de um conflito latente maior sem resolver. “Nos mostrou a fragilidade enorme que há no sistema político e nas instituições”, disse Zegada. Tal situação é evidente no enfrentamento constante entre os poderes Executivo e Legislativo, ambos com mandatos que concluíam em janeiro e foram ampliados de urgência até a celebração de eleições que não deixaram de se postergar. Assim, várias normas sancionadas nos últimos meses pelo Legislativo não foram promulgadas pelo Executivo e há créditos econômicos e projetos de lei apresentados pela equipe da presidenta que o Parlamento se nega a aprovar. “Estamos em meio de um cenário de apreensão das forças sociais e políticas”, declarou. Assim percebem os movimentos sociais. Não somente temem que o governo amplie ainda mais seu mandato, mas se sentem ameaçados.
Leonardo Loza, um dos principais dirigentes cocaleiros do país, afirmou à Brecha que o conflito social das últimas semanas deu lugar à perseguição política dos representantes dos movimentos sociais. “Possivelmente estamos saindo de um conflito social –dependerá muito do comportamento do prorroguismo eleitoral que temos–, mas é preciso que povo saiba que entramos num conflito jurídico-legal, a uma perseguição política», agregou.
Por sua vez, o chefe da bancada do MAS no Senado, Efraín Chambi, disse a este semanário que o país ainda vive uma situação delicada, com uma constante vulnerabilização de direitos por parte do Executivo. Destacou, por exemplo, as demandas iniciadas pelo governo contra vários líderes do MAS – entre eles, a prefeita de Vitno, Patricia Arce, e sua família – por um suposto descumprimento da quarentena. Chambi considera que, apesar da suspensão dos bloqueios, ainda há mal estar na cidadania. Afirmou que, embora noo conflito de agosto os setores urbanos não saíram às ruas, o farão nos próximos dias. Porque, ainda que o protesto tenha começado pela modificação da data das eleições, muitos setores passaram depois a somar reivindicações vinculadas à gestão governamental da pandemia. Inclusive o movimento indígena do Altiplano, liderado pelo veterano militante Felipe Quispe –muito crítico de Morales–, se somou aos bloqueios para pedir a renúncia de Áñez.
Áñez é questionada, além disso, pela oposição de direita devido a seu duplo papel: candidata e presidenta. Seus rivais afirmam que sua gestão tem como objetivo somar votos para sua candidatura, e são várias as vozes que a instam a renunciar sua à candidatura e a se concentrar em combater a crise sanitária e econômica. Precisamente depois dos conflitos do ano passado, da crise sanitária e dos conflitos sociais de agosto, a economia se viu duramente golpeada e se teme que o cenário piore no final deste ano. Dados do Centro de Desenvolvimento Laboral e Agrário mostram que a taxa de desemprego subiu de 4,2% para 7,34% e a informalidade aumentou para 80%. A crise sanitária fez com que várias empresas demitam seus trabalhadores e outras, principalmente as pequenas, fechem. Apesar da quarentena, as ruas estão cheias de pessoas que tentam vender algum produto para sobreviver, se é que não ficam doentes antes.
OS MASSACRES E AS DENÚNCIAS
A conflitividade boliviana se arrasta desde a convulsão social do ano passado, provocada pelas suspeitas de fraude nas eleições nacionais de 20 de outubro nas mãos do governo de Evo Morales. Os protestos da então oposição derivaram na renúncia do mandatário, o qual havia insistido em se postular pela quarta vez à presidência, contra a Constituição e os resultados do referendo de 2016.
Quando a pandemia da Covid-19 chegou, no início de março, encontrou um país que tentava sair de uma crise política e social com um governo transitório abertamente de direita e de questionada legitimidade.
Um dos aspectos mais criticados do governo de Jeanine Áñez é a vulnerabilização de direitos humanos nas intervenções policiais e militares nos bloqueios de Sacaba (Cochabamba) e Senkata (El Alto) em 15 e 19 de novembro, respectivamente. Estas interveções deixaram 23 civis indígenas mortos por bala e 230 feridos.
Recentemente, e através de informes especiais sobre estes fatos, várias instâncias internacionais condenaram o uso excessivo de violência pelo governo e ressaltaram a falta de investigação penal correspondente. Na segunda-feira, 24 de agosto, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos apelou ao governo da Bolívia para encarar mudanças estruturais que atendam as causas da presente crise política e social e para que se prestem contas pelas diversas violações aos direitos humanos que ocorreram nas eleições de 20 de outubro.
«Me preocupa profundamente que, em nove meses, nem uma só pessoa tenha sido responsabilizada pelas mortes em Sacaba e Senkata nem pela maioria dos assassinato que ocorreram neste período”, expressou a titular do organismo, Michelle Bachelet.
Previamente, o informe «“Dispararam contra nós como se fôssemos animais”, novembro obscuro e o governo interino da Bolívia», apresentado no final de julho, havia destacado a presença de “padrões desconcertantes de violação de direitos humanos” cometidos pelo governo de Áñez. O documento foi elaborado pela Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard e a University Network for Human Rights.
A esta denuncia havia se somado, além disso, no início de mês, a da Anistia Internacional, que condenou a impunidade em matéria de violações de direitos humanos durante a crise pós-eleitoral e instou ao governo e aos candidatos dos distintos a se comprometer na promoção das investigações penais deste fato.
O IMPACTO DA COVID-19
A Bolivia foi um dos primeiros países na América do Sul em impor uma quarentena rígida, desde 22 de março. Durou três meses e logo continuou com um confinamento parcial. Entretanto, essas medidas não impediram que os casos aumentassem.
Até 21 de agosto, esse país reportava um total de 107 435 casos de Covid-19. Além disso, até essa data faleceram 4366 (2093 nos últimos 30 dias). Os médicos, enquanto isso, consideram que ambas as estatísticas são muito mais altas e que existe um sub-registro em decorrência da falta de testes e de que muitas pessoas não chegam até os hospitais. Ainda com relação aos dados oficiais, Romero afirma que a mortalidade registrada é muito alta para um país que teve três meses para se preparar. Embora a Bolívia carregue problemas estruturais históricos em seu sistema de saúde, um dos principais questionamentos dos grêmios médicos para o governo transitório é que o esforço da população de se confinar por vários meses não foi acompanhado por uma adequada gestão da pandemia. Uma evidência disso é a compra irregular em maio de 170 respiradores, por um preço três vezes superior ao real, que levou à destituição e detenção policial do então ministro da Saúde. Até agora não foram utilizados.
Romero explica que durante os meses de confinamento o Governo se comprometeu a gerir ao menos três tarefas, mas nenhuma se cumpriu. Entre elas, a contratação de 5000 profissionais da saúde para que os hospitais estendessem seu horário de atenção de oito a 24 horas, a habilitação de centros de isolamento comunitários e a realização de testagens massivas em todo o país.
Assim, nos últimos dias se superou a capacidade de atendimento dos cerca de vinte centros especializados no tratamento de pessoas contagiadas. As autoridades tiveram que habilitar, em caráter de urgência, novos hospitais e desde esta semana se traslada parte dos pacientes a clínicas privadas.
Karen Gil é jornalista da revista Brecha.