Alianças intercontinentais não são novidade no mundo. Elas podem ser militares, como a OTAN, e representar um sistema coletivo de segurança mútua, e atuar de forma conjunta em ataques, como foi a Guerra do Afeganistão. Podem ser também acordos de não-interferência, como o BRICS, que não constitui pactos militares e econômicos automáticos. E costumam ser formados em momentos de conflito. A OTAN, por exemplo, nasceu em 1949, pós Segunda Guerra Mundial e o começo da Guerra Fria.
Na última quarta-feira (15/09), foi anunciado o nascimento do AUKUS, aliança intercontinental formada pela Austrália, Reino Unido e Estados Unidos. As tratativas deste acordo vem acontecendo em segredo há muitos meses. Não à toa: é o maior acordo militar entre eles desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Além disso, é a primeira vez desde 1958 que os Estados Unidos compartilharão sua tecnologia para desenvolver submarinos com propulsão nuclear. Ele nasce pelas tensões que vêm se dando nos oceanos Índico e Pacífico. Na coletiva de imprensa que Scott Morris, Boris Johnson e Joe Biden deram, tudo era focado em “segurança e prosperidade no Indopacífico”, e insistiram que o pacto “não está dirigido contra nenhum país”. Mas quem acompanha a política internacional sabe que não é bem assim.
Apesar da China não ter sido mencionada nenhuma vez, é fato que a aliança militar só nasce para fazer frente com a potência naval-militar do país. O principal “conflito-frio” da região são as disputas pelo Mar da China Meridional ou Mar do Norte da China, área que cria acesso entre os oceanos Índico e Pacífico. Se a intenção é aumentar ou diminuir os conflitos ainda está em aberto. Por ali passa um terço de toda mercadoria do mundo, referente a pouco mais de 3 trilhões de dólares por ano, o que significa duas vezes o PIB do Brasil, por exemplo. Vários países reivindicam partes daquele mar, e a China é o país que tem conseguido mais avançar em sua conquista, com a construção de ilhas artificiais na região, com bases aéreas e navais. Mas o AUKUS muda totalmente o equilíbrio de poder na região.
O acordo militar dará à Austrália a condição de construir seus primeiros submarinos de propulsão nuclear, por meio de transferência de tecnologia. E firma compartilhamento de tecnologia entre Austrália, Reino Unido e Estados Unidos nas áreas de inteligência artificial, cybersegurança e computação quântica. Mas foca no aumento da capacidade militar dos países, principalmente da Austrália. A China tem, entre submarinos e navios militares, entre 350 e 400. Os Estados Unidos tem 300, o Reino Unido 80. Se unindo e dando a tecnologia para a Austrália produzir os seus, passam a ter o maior poder naval-militar da região. A Austrália tinha uma política de “não-alinhamento automático” com os Estados Unidos, e o pacto encerra isso. Escolheram um lado. É claro que a China segue muito mais armada que a Austrália, mas a resposta que ela receberia a um eventual ataque mudou totalmente.
Para a Austrália, era um acordo irrecusável. A China, que costumava ser um dos seus principais parceiros comerciais na venda de minérios, respondeu com força às pressões de Canberra por uma investigação internacional sobre as origens do novo coronavírus. Quando Scott Morris enviou uma carta ao G20 solicitando apoio internacional na investigação, Pequim respondeu com aumento significativo nas tarifas de exportação. A cevada, carne, algodão, carvão e vinho foram os principais produtos que sofreram mudanças significativas nas tarifas. A China é o destino de 39% das exportações australianas, e essa mudança causou um óbvio descompasso em sua balança comercial. O pesquisador Mathias Alencastro escreveu para a Folha que o acordo “abre caminho para uma modernização tecnológica e posiciona a Austrália na linha da frente da oposição ao expansionismo chinês. Vale acrescentar que a transferência de tecnologia nuclear para submarinos proposta pelos americanos jamais poderia ser coberta pela França.”1
A China reagiu, claro. O porta-voz do governo disse que o AUKUS é a “mentalidade de Guerra Fria nascendo”, disse que vai causar problemas na paz da região e chamou os países de irresponsáveis. Mas não é bem “paz” que a região tem visto. Em 2020, um navio pesqueiro do Vietnã foi afundado pela guarda costeira chinesa. E um navio petroleiro da Malásia também foi interceptado na região, ambos no Mar da China Meridional. Apesar de parecerem ações pequenas, representam violações graves de tratados internacionais sobre o domínio daquelas águas, que também pertencem a Taiwan, Malásia, Vietnã, Filipinas e Indonésia, duas dessas atacadas pela China em seus próprios mares. Na prática, a nova capacidade naval-militar da Austrália dará ao país a capacidade de responder a um possível conflito de forma que os outros países da região não possuem.
A China não é o único país que enfrenta a AUKUS como um conflito diplomático. A França também se vê extremamente atacada. Em 2016 a Austrália comprou 12 submarinos da França, por um valor que representava anualmente 4% do PIB do país. Mathias Alencastro também escreveu que esse acordo “asseguraria milhares de empregos na Normandia, uma das regiões francesas mais atingidas pela desindustrialização, a competitividade internacional da tecnologia militar europeia no pós-brexit, e a projeção política da França na sua última fronteira global, o Indo-Pacífico, onde ainda controla a Nova Caledônia, a Ilha da Reunião e o arquipélago de Mayotte.”
Com o AUKUS, o acordo comercial foi rompido e a França ficou sabendo através da mídia, junto com o resto do mundo. O primeiro-ministro francês, Emmanuel Macron, já tinha dado entrevistas dizendo que não pretendia formar alianças militares com a União Europeia, que visava “alianças fora da Europa”, por isso o acordo com a Austrália era tão importante. Ainda que o desfalque no PIB seja importante, o maior problema é a quebra da parceria política, feita de modo pouco diplomático.
O Ministro de Relações Exteriores francês não teve vergonha de expor sua completa insatisfação para a mídia mundial. Acusou Biden de agir como Trump, disse que levou uma facada nas costas, e cancelaram eventos de Gala da Embaixada dos Estados Unidos em Paris (um deles foi da comemoração da Guerra da Independência dos Estados Unidos, o que chamou bastante atenção). Ele ainda chamou uma reunião com os embaixadores dos Estados Unidos e da Austrália com o primeiro-ministro Macron, que na política internacional é uma representação grave de insatisfação.
Os Estados Unidos e o Reino Unido se movimentam para suavizar a situação. O primeiro-ministro inglês Boris Johnson disse no domingo (19/09) que tem “muito orgulho da relação do Reino Unido com a França”, mas não foi suficiente para o Ministro de Relações Exteriores Jean-Yves Le Drian. Em entrevista ao jornal local Paris 2, o Ministro disse que “Houve uma mentira, houve duplicidade, houve uma grande quebra de confiança, houve desprezo. Portanto, não está tudo bem entre nós, não está nada bem. Significa que há uma crise”. O Presidente Joe Biden solicitou uma ligação com o presidente francês, mas o telefone ainda não tocou em Washington, DC.
Alguns comentaristas políticos supõem que a reação imoderada de Macron é sua tentativa de cativar a opinião popular a seu favor. A realidade é que a situação o coloca numa posição de humilhação e de facilmente descartável, isso a sete meses das primárias à presidência da França, onde ele se encontra tecnicamente empatado com a representante da extrema-direita Marine Le Pen. A mídia relembra seus grandes esforços em preservar os Estados Unidos nos acordos em Doha sobre a retirada das tropas do Afeganistão, e a resposta semanas depois é seu fácil descarte.
A OTAN também sai débil, já que a parceria entre os trinta países já não parece mais suficiente para lidar com os problemas militares internacionais. Já surgem burburinhos de que a França poderia deixar a OTAN. O Macron já chamou ela de “com morte cerebral”, e não seria nada atípico da França, que saiu pra OTAN em 1966 com o De Gaulle e voltou em 2009 com o Sarcozy. E o Macron é reconhecido por ser um Gaullista. Mas a saída também deixaria a França numa posição ainda maior de isolacionismo político, incapaz de se colocar como a potência militar que deseja ser reconhecida.
O AUKUS significa mais a mudança de posição da Austrália e Reino Unido num eventual conflito do que um grande aumento do poder bélico. O bloco, unido, certamente significa a maior potência naval-militar do mundo. Mas seu significado objetivo é o alinhamento automático anti-China da Austrália em qualquer conflito que possa se dar na região.
Alguns apontam que o nascimento do AUKUS é o nascimento do primeiro bloco da “Nova Guerra Fria”, com a China substituindo a Rússia. O deputado britânico Jeremy Corbyn acusa o governo Johnson de “incentivar uma nova guerra fria”, e alguns jornalistas concordam com sua opinião. Seu significado exato ainda está em aberto. Os submarinos australianos devem demorar alguns anos para estarem prontos para atuar, e teoricamente são proibidos de transportar armas. A próxima cúpula da OTAN ganhou ainda mais importância, assim como a COP 26, na primeira semana de novembro, em Glasgow.
1https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mathias-alencastro/2021/09/acordo-militar-com-a-australia-fragiliza-promessa-de-biden-de-unir-ocidente.shtml