FONTE: mondoweiss.net – 25/02 | Tradução do inglês: Charles Rosa
“Não há pátria livre sem mulheres livres”, ressoava o setembro passado nas comunidades palestinas, quando milhares de mulheres palestinas saíram às ruas em 12 povoados e cidades naquilo que foi o ato de lançamento do Tal’at, um movimento feminista palestino. “Tal’at” significa “sair às ruas” em árabe.
Optando pelas ruas como espaço de luta, as manifestantes levantaram suas vozes contra a violência machista em todas as suas concreções: feminicídio, violência doméstica, machismo inveterado, afirmando que o caminho para a verdadeira liberação deve passar pela emancipação de todas as pessoas palestinas, inclusive as mulheres. Era a primeira vez na história recente que as mulheres palestinas se manifestavam sob uma bandeira explicitamente política e feminista. O movimento conseguiu mobilizar muitas delas por toda a fragmentada geografia do país.
O catalisador foi o assassinato de Israa Ghraeyeb, uma jovem palestina de 21 anos de idade, residente em Belém. Israa foi vítima de um brutal espancamento por membros de sua família em agosto de 2019. Seguiram-na ao hospital, onde lhe infligiram mais feridas, várias delas mortais, causadas pelos abusos físicos continuados. Os gritos de socorro de Israa foram documentados pelos enfermeiros e difundidos através das redes sociais. Ninguém acudiu a resgatá-la e parece que nem sequer a pessoa que documentou suas petições de auxílio interveio. A brutalidade do assassinato de Israa viu-se agravada pelo que se sucedeu depois. A cumplicidade institucional direta do hospital foi acompanhada pelo silenciamento social por parte da família, que divulgou rumores acusatórios. Disseram que Israa estava “possuída” e alegaram que tinha problemas de saúde menta, como se isto justificasse seus atos.
Israa foi uma das 34 mulheres palestinas assassinadas em 2019, segundo nossos dados. Desde o começo de 2020 nos arrebataram Shadia Abu Sheihan, de 35 anos e residente no Naqab (Negev), e Safa Shikshek, de 25 anos e de Gaza, vítimas de feminicídio.
Sensíveis às exigências, duas semanas depois do assassinato de Israa, um pequeno grupo de mulheres palestinas emitiram um chamado a protestar, urgindo às mulheres a se levantar, erguer suas vozes e atuar: “Esta é uma manifestação por Israa e as 28 mulheres que perdemos desde o começo do ano, e por aquelas cujos corpos e almas sofrem a violência cotidiana”. Nossa mensagem é este: a segurança e a dignidade das mulheres na Palestina não são questões que se atenham unicamente a elas, mas que devem estar no centro de nossas políticas de emancipação na palavra e na ação, porque não há pátria livre sem mulheres livres.
Por que as mulheres palestinas sentem a urgência de organizar-se sob uma bandeira emancipatória feminista explícita? Que discurso feminista representa o “Tal’at”? Escrevemos com o propósito de abordar algumas destas questões.
Frente aos tópicos racistas e orientalistas, as mulheres no Oriente Médio e na região norte-africana se situam na vanguarda da luta por construir uma sociedade mais justa e equitativa. Enquanto escrevemos, mulheres ocupam praças e se manifestam nas ruas de um Iraque dilacerado pela guerra, decididas a desempenhar um papel ativo na configuração de seu futuro. No Líbano, as mulheres não abandonaram as ruas, destruindo agências bancárias, defendendo os direitos das pessoas refugiadas sírias e palestinas, e nos dando formação em tempo real sobre a prática do feminismo revolucionário.
As feministas de todo o mundo encarnam e articulam um feminismo que vai além das demandas individuais baseadas no gênero e nos convoca a lutar por um mundo mais justo e equitativo para todas e todos.
“Tal’at” faz parte desta tradição feminista revolucionária. Nosso movimento vem configurado por nossa experiência vivida e mais de sete décadas de violência colonial israelense. Nosso povo está privado dos direitos mais básicos e suas necessidades elementares não estão cobertas, o que mutila nosso desenvolvimento coletivo e nossa capacidade de resistência. Esta realidade nos força a analisar experiências de violência – em suas formas diversas – como assunto social e político que é abordar em sua raiz e coletivamente, como sociedade.
Além de representar uma ameaça direta à vida e à reprodução social, e para reforçar ainda mais o controle, Israel manobrou estrategicamente para esmagar e fragmentar a população palestina desde o ponto de vista social, político e econômico. A supressão da ação coletiva das comunidades palestinas vem acompanhada do reforço das estruturas de parentesco patriarcais. Isso é especialmente visível no caso das pessoas palestinas que vivem em Israel, onde se desenvolve uma relação interessada entre o governo de Israel e os chefes de famílias extensas, ou sheiks. Entre as retribuições, o Estado outorga a esse homens a autoridade para gerir o que se consideram assuntos “intracomunitários”. Assim, por exemplo, a polícia israelense devolveu mulheres fugitivas que se suspeita que foram vítimas de abusos a seus parentes e esposos, os mesmos dos quais pretendiam fugir.
Isto não é um chamado à reforma institucional, mas ao aprofundamento de nossa compreensão da estreita relação entre a colonização e as manifestações da opressão social. Além disso, como sabem as mulheres de todo o mundo, a polícia não é nossa protetora ou aliada, e muito menos quando faz parte de uma estrutura colonial que trata o povo palestino como sujeitos que é preciso vigiar e controlar, tanto se trata da polícia israelense como da polícia da Autoridade Palestina, formada e instruída nos EUA e que desempenha um papel crucial no controle da população palestina em interesse de nossos colonizadores.
Uma atualidade que não pode se separar desta matriz de opressão é o cerceamento sistemático do desenvolvimento econômico da Palestina e a conversão da população palestina, inclusive as mulheres, em mão de obra barata e explorável. Tudo isso culmina num sistema estratificado de violência no qual as relações de poder se intensificam e reproduzem em suas formas econômicas, sociais e políticas sexualizadas e repercutem diretamente nas formações sociais do interior da comunidade.
Em seu manifesto inicial, “Tal’at” fez um chamado a aproveitar a oportunidade para construir uma solidariedade feminista palestina desfragmentada. Com isso, “Tal’at” impulsiona ativamente contra a maré de fragmentação geográfica, política e social que engole a terra da Palestina, um processo que se vê acelerado pela criação de um Estado neoliberal cimentado pelos Acordos de Oslo de 1993. Oslo estreitou a luta de libertação palestina entre a estabilidade burocrática e a fragmentação de direitos, abrindo uma brecha entre as lutas sociais e políticas e limitando ainda mais nossa capacidade para articular uma visão mais ampla de nossa liberação coletiva.
O movimento político palestino, em suas múltiplas representações, segue desempenhando um papel ativo na marginalização e a minimização da emancipação da mulher como uma questão estritamente feminina que deveria se articular sobre a base de direitos individuais neoliberais e dentro dignidade das mulheres se apresentam como uma luta secundária que deveria adiar a libertação geográfica.
“Ta’l’at” foi criado para mudar esta realidade forçando a inclusão no programa das políticas de emancipação e afirmando que a nossa luta de libertação deve consistir em atender as experiências das pessoas marginalizadas social, política e economicametne e em praticar a solidariedade ativa com quem sofre com a selvageria do sistema atual. Aspiramos a construir um mundo diferente, pois nossa emancipação está condicionada à destruição do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado ao mesmo tempo. Por isso, “Tal’at” não prioriza as demandas institucionais, nem ante a Autoridade Palestina nem muito menos ante o Estado de Israel; nossa luta se desenvolve no interior da Palestina e passa por construir nosso tecido social e político, empreendendo um processo de cura coletiva radical que oriente nossa luta de libertação, no discurso e na prática.
“Tal’at” marca um novo começo para o movimento feminista palestino, no qual um movimento de base independente trata de forçar a inclusão de um discurso feminista revolucionário no programa para redefinir nossa luta de libertação nacional como uma luta que encarna o tipo de sociedade que queremos construir. Não se sabe o que nos reservará o futuro, mas sabemo que unindo as mulheres palestinas sob um mesmo guarda-chuvas, num espaço descentralizado e também desfragmentado de ativismo político feminista, criaremos as condições para o crescimento e a solidariedade.