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FONTE: La Vie des Idées | 04/05/2020 | TRADUÇÃO: Charles Rosa

Em dezembro, quando a província chinesa de Wuhan assistia ao começo da pandemia atual de Covid-19, a Índia era cenário de revoltas massivas e violentas. Centenas de milhares de pessoas se manifestavam em todo o país contra lei de cidadania, considerada antimuçulmana, que acabava de adotar o parlamento: a Lei de emenda do direito de cidadania. Em resposta se perpetraram ataques violentos de milícias hindus contra universidades e bairros populares muçulmanos. Enquanto, apesar dos primeiros casos identificados já em janeiro no território, as autoridades negavam toda possibilidade de transmissão comunitária do vírus, para anunciar finalmente, quatro horas antes de sua entrada em vigor, o confinamento total do país durante 21 dias pelo menos, a partir de 24 de março à meia-noite. Da mesma forma que na frança, este anuncio provocou importantes migrações das cidades ao campo. Claro que na Índia foram de natureza muito distinta, já que os trabalhadores migrantes, os jornaleiros, o povo mais pobre, carentes de recursos, decidiram retornar a suas aldeias de origem. Este êxodo trágico e em algumas ocasiões mortal de migrantes indianos que fugiam das cidades constitui o sintoma mais visível de uma profunda crise sanitária, econômica e social que este texto propõe analisar em três tempos.

Aceder aos cuidados em tempos de confinamento

Esta pandemia expôs brutalmente as vulnerabilidades de alguns dos melhores sistemas sanitários do mundo; para o sistema sanitário indiano, um dos mais saturados e menos financiados do mundo, o momento poderia ser crítico, posto que as estruturas sanitárias já estão sobrecarregadas num sistema muito fraturado, subfinanciado e geograficamente desigual. A crise atual ameaça com aumentar as inveteradas desigualdades sanitárias e as infraestruturas sanitárias já disfuncionais poderiam colapsar sob a pressão do aumento espetacular de casos de Covid-19.

Os testes são essenciais para avaliar a propagação da Covid-19 num país. A Índia tem até agora uma das menores taxas de detenção do mundo, o que pôde escamotear casos de coronavírus. Em 23 de março, o número total de pessoas submetidas à prova de detenção da Covid-19 em todo o país era de 17 493. Essa mesma semana, a Coreia do Sul realizava mais de 5 500 testes por milhão de habitantes, a Itália 2.500, o Reino Unido cerca de 1.500 e a França cerca de 900. Ainda que a epidemia estava mais adiantada nestes países, a Índia ia na retaguarda, nas vésperas de seu confinamento, com tão somente 10 testes por milhão.

Até então, a estratégia de detenção do governo partia da hipótese de que na Índia não se produzia nenhuma transmissão comunitária, mas unicamente casos importados do estrangeiro. Basear a estratégia de detecção nesta hipótese e não submeter a prova mais que as pessoas procedentes de zonas infectadas no estrangeiro pôde ter consequências imprevistas na propagação da epidemia. Efetivamente, com o confinamento se produziu um importante volume de migração interna de trabalhadores e trabalhadoras a partir de focos da epidemia como Mumbai e Délhi para seus Estados de origem, como Uttar Pradesh e Bihar. O fato de não reconhecer a presença local de infecções por Covid-19 e não diagnosticar às pessoas com sintomas em Mumbai ou em Délhi pôde expor a estes Estados à difusão do vírus e a uma explosão potencial de casos, em lugares em que as infraestruturas sanitárias são bastante mais precárias.

Ao começo de seu confinamento nacional, a Índia não contava simplesmente com suficientes kits de testagem e por muito que o governo tenha concedido licença a empresas privadas para vendê-los na Índia, a limitação dos testes radica no número de laboratórios credenciados. Em 23 de março, na Índia havia 118 laboratórios credenciados para uma população de 1,3 bilhão de habitantes, com enormes desigualdades geográficas; os Estados de Arunachal Pradesh (1,5 milhão) e Nagaland (3,3 millones) não dispunham de nenhum, Bihar de um só para uma população de 110 milhões de habitantes, frente aos oito que há em Rajastão para uma população de 80 milhões. Ainda que os Estados tivessem a sua disposição um número infinito de kits de testagem, os laboratórios não poderiam utilizá-los, pois sua capacidade de obtenção de 90 mostras por dia resulta insuficiente. Assim, o governo decidiu autorizar a realização de testes de Covid-19 em laboratórios privados para que a população indiana, inclusive as pessoas que não estão hospitalizadas, possa obter a prova, claro que às custas de seu bolso.

Entretanto, o teto de 4500 rupias (cerca de 55 euros) por teste, fixado pelo governo, está fora do alcance da maioria da população. Além disso, com a estigmatização associada ao vírus e o confinamento, alguns laboratórios privados acreditados já declararam que a tarefa é de todo impossível. Levando em conta o preço elevado dos testes privados e de todos os problemas logísticos associados ao confinamento, a maioria da população depende provavelmente do sistema público para que lhe façam a prova. Num sistema sanitário público já sobrecarregado e subfinanciado, o dinheiro investido nos testes de detenção do coronavírus resta recursos aos demais gastos sanitários essenciais, já a Índia somente consagra 3,7% de seu orçamento para saúde. Um orçamento totalmente insuficiente para responder à demanda massiva de cuidados intensivos, constatada nos países já afetados pela Covid-19.

Se na Índia a proporção de pessoas de idade avançada menor que em outros países, seus hospitais sobrecarregados acolhem a muitas e muitos pacientes que apresentam patologias anteriores – como desnutrição, tuberculose, diabetes, enfermidades respiratórias crônicas e cardiovasculares – que poderiam agravar a mortalidade graças à Covid-19. Entre as pessoas infectadas, a taxa de mortalidade oscila entre 1 e 3%, mas entre as pessoas gravemente enfermas alcança 62%. A maioria destes falecimentos se devem a hipoxia, a um aporte insuficiente de oxigênio aos tecidos do corpo ou ao colapso multiorgânico.

Ao redor de 5% dos e das pacientes infectadas requererão cuidados intensivos e a metade das pessoas ingressadas em UCI precisarão ventilação mecânica; poderiam fazer falta até um milhão de respiradores no momento álgido da epidemia. Segundo cálculos do ministério da Saúde, em 24 de março havia 8.432 respiradores nos hospitais públicos, quantidade que poderia ascender a 50 000 caso se incluem os hospitais privados. A título comparativo, EUA, submergido atualmente em plena epidemia dispõe de 160 000 respiradores para uma população que representa um terço dos indianos. Até agora, a Índia importa cerca de 75% de seus respiradores, enquanto que sua capacidade de produção nacional é de 5000 unidades por mês e depende igualmente de provedores internacionais, que hoje por hoje se acham desbordados.

Além disso, as estatísticas anteriormente citadas escodem disparidades extremas em matéria de acesso. As UCI e os respiradores estão concentrados nas grandes zonas urbanas e as províncias mais ricas; por si só, Mumbai já dispõe de 1000 respiradores e Kerala de 5000, o que significa que há um número claramente inferior de aparatos disponíveis nas províncias mais pobres e as mais rurais do país. As mesmas disparidades afetam às camas de cuidados intensivos, já que seu número muito menor nos Estados mais pobres em comparação com uma média nacional, que já resulta catastrófica, de 0,7 camas por mil habitantes (frente a 11,5 na Coreia do Sul, 6,5 na França e 3,5 na Itália). Inclusive segundo as estimativas mais prudentes, em 75 % das províncias indianas não terão camas suficientes para as pessoas contagiadas de coronavírus daqui até o mês de junho. Sabendo que o custo médio de uma hospitalização privada em 2017 era de 31.845 rupias (384 euros), que a renda média mensal por habitante aumenta para 11 254 rupias (135 euros) e que a maioria não tem seguro de saúde: quantas pessoas enfermas poderão pagar os cuidados em hospitais, uma vez saturados os modestos estabelecimentos públicos?

Tendo em conta as graves dificuldades enfrentadas pelo sistema sanitário público e o predomínio da atenção sanitária privada, inacessível em numerosos Estados indianos, a resposta sanitária à crise da Covid-19 deve dar prioridade ao reforço de um sistema sanitário acessível para todas as pessoas, sejam ricas ou pobres, hindus ou muçulmanas, de Bihar ou de Kerala. Mas esta pandemia revela assim mesmo a extrema vulnerabilidade da maioria da população indiana ante uma catástrofe que vai além da mera atenção sanitária. Por cima do risco de infecção, as medidas adotadas para conter o contágio – o confinamento total – terão consequências desastrosas para grande parte da população.

Sobreviver ao confinamento

Que sentido pode ter o confinamento num contexto em que o povo, não só a mais pobre, depende da mobilidade e da sociabilidade de aceder a seus recursos e proteger-se? Retomando tópicos culturalistas, numerosos meios puseram o acento na dificuldade “cultural” para aceitar o princípio de distanciamento social. Antes que uma questão cultural, e por muito que este argumento seja válido, em economias em que o emprego informal é a regra mais do que a exceção, e em que a proteção social é privilégio de uma minoria, o vínculo social e o movimento são simplesmente necessários para a sobrevivência e proteção.

A Índia se caracteriza pela amplitude do emprego informal – segundo as estatísticas da Organização Internacional do Trabalho, 92% dos empregos não estão formalizados, no sentido de que não implicam nenhuma forma de proteção, nenhum contrato nem nenhuma garantia de continuidade – e o papel determinante das migrações e circulações internas. Em grande medida subestimados pelas estatísticas oficiais, estes deslocamentos são objeto de diversos cálculos, que chegam até um resultado de 100 milhões de pessoas. Se estes movimentos de trabalhadores sempre existiram, é provável que tenham aumentado para responder às necessidades de uma economia capitalista que sembre busca uma mão de obra barata e disciplinada. Isso inclui migrações de longa distância, inter-estatais, em particular com fluxos massivos procedentes dos Estados mais pobres, situados no nordeste da Índia, com destino aos Estados onde há mais empregos, no oeste e no sul.

A isso se adicionam práticas cotidianas de circulação entre aldeias e cidades menores. Com o declive massivo da agricultura ao longo dos últimos decênios, e por muito que a Índia se resista ao êxodo rural, numerosas pessoas das aldeias sobrevivem deslocando-se todos os dias para os centros urbanos próximos. Algumas destas pessoas migrantes permanecem nas cidades, engrossando a massa desvalidas dos assentamentos de latas, mas a maioria segue vinculada a suas aldeias de origem. A mão de obra indiana, sobretudo masculina, protagoniza assim um fluxo contínuo que se desloca ao fio das temporadas e dos anos em função das oportunidades, as redes, e em especial das necessidades do sistema capitalista, ainda que volta regularmente a casa. Esta segue sendo o pivô do enraizamento e da identidade familiar e local.

O movimento não somente serve para encontrar trabalho, um trabalho que gera retornos escassos e sempre imprevisíveis. Ao mesmo tempo, as famílias têm gastos inevitáveis e que não cessam de aumentar: alimentação; manutenção da moradia, frequentemente precária e portanto necessitada de renovações e melhorias constantes; educação escolar da prole; consumo de eletricidade, às vezes de água e gás; rituais sociais e religiosos; aquisição de bens de consumo duradouros, necessários inclusive para trabalhar (telefone móvel, veículo motorizado de duas rodas). A estes gastos regulares e impossíveis de reduzir se acrescentam os imprevistos: enfermidades, perda súbita do emprego, costas judiciais, roubo, confisco da terra por causa de um conflito ou de uma dívida não-paga.

Para paliar esta inadequação entre rendas variáveis e gastos, as pessoas, homens e mulheres, mobilizam carteiras de complexas práticas financeiras em que a dívida ocupa um lugar central. A poupança não está do todo ausente, mas entre a gente mais pobre e grande parte da população rural, rara vez se materializa numa poupança monetária. Joias, gado, assim como investimentos sociais (presentes mútuos ou empréstimos) são muito mais frequentes. O mínimo excedente de liquidez se reinjeta amiúde na rede social em forma de doação ou empréstimo, suscetível de ser recuperadoa seguir em caso de necessidade.

A dívida é portanto um elemento central da sobrevivência cotidiana. Agora, o endividamento implica sociabilidade e portanto movimento, seja por parte de um membro da família que deve se deslocar para encontrar o credor, seja por parte deste último, já que alguns oferecem seus serviços de porta em porta. Os métodos dos diários financeiros (financial diaries), que tratam de rastrear o conjunto de fluxos financeiros de um lar durante um período dado, confirmam a intensidade dos movimentos associados às transações financeiras. Este é ainda mais certo para as mulheres, pois frequentemente são elas que se encarregam de administrar o orçamento familiar. Uma pesquisa deste tipo, realizada em 2017-2018 nos Estados de Pondichery e Tamil Nadu, mostra que o número de transações (tomar emprestado, reembolsar, emprestar, reclamar o reembolso, dar, receber) pode alcançar picos de 30 transações por semana no caso das mulheres e de 20 no dos homens.

Tendo em conta a importância crucial do movimento e da sociabilidade, podemos imaginar que o confinamento terá consequências absolutamente devastadoras, e já as teve. A invisibilidade da gente trabalhadora migrante, apesar de ser um eslabão essencial da economia indiana, apareceu de um modo flagrante. Simplesmente foi ignorada pelas medidas de confinamento. O anúncio do primeiro-ministro Narendra Modi de “fique em casa” provocou um fluxo massivo de trabalhadores e trabalhadoras tratando desesperadamente de voltar a sua casa, num momento em que os meios de transporte já se haviam restringido notavelmente.

Primeiros testemunhos recolhidos em Tamil Nadu falam de um pânico generalizado. As populações estão acostumadas aos golpes súbitos – o tsunami em 2004, a desmonetização em 2016-, mas o anúncio do confinamento lhes parece mais temível. Os que haviam emigrado voltaram para casa. Não somente carecem de qualquer perspectiva de emprego, mas que não poucas famílias já estão muito endividadas. Em certos setores, como a fabricação de ladrilhos ou a safra, o recrutamento e o controle da mão de obra se baseiam numa adiantamento do pagamento. Este adiantamento costuma ser reembolsado durante a temporada, em função da produtividade. Quando apenas havia começado a temporada (janeiro), a maioria destes migrantes contraíram uma dívida de 60 000 a 85 000 (6 a 8 meses de salário para dois trabalhadores). Está por ver se os patronos e as agências de recrutamento aceitarão cancelar uma parte desta dívida.

Quanto à mão de obra local, as fontes de endividamento, condição de sua sobrevivência cotidiana, se esgotaram. Enquanto que habitualmente o menor excedente se empresta ou se doa, agora assistimos, pelo contrário, a uma retirada. Desde o proprietário de terras até a mãe no lar, todos os testemunhos concordam: levando em conta da incerteza reinante, cada um tende a conservar seus recursos, tanto se trata de dinheiro líquido como de reservas de cereais. Por sua vez, os prestamistas reclamam a devolução de seus empréstimos e se negam a seguir emprestando. O Banco Central da Índia anunciou uma moratória do reemboslo dos empréstimos. Não obstante, certo número de entidades financeiras se negam a acatar a ordem e seguem enviando mensagens e instruções orais aos prestatários para que sejam respeitadas as devoluções.

Os bancos nacionalizados e certas sociedades financeiras autorizam a suspensão, mas os prestatários devem preencher alguns formulários em linha específicos que não são acessíveis para muitos deles, sobretudo quando se trata de mulheres pobres do mundo rural. Como as famílias lidam com isso? Momentaneamente, apertam os cintos. Recorrem às poucas reservas disponíveis. Se a poupança monetária é limitada, muitas famílias, amiúde graças às mulheres, contam com algumas centenas ou inclusive milhares de rupias secretamente guardadas para casos de emergência. Poupam na comida. Mas claro que isso não pode durar muito. O que acontecerá dentro de algumas semanas?

Morrer de fome em tempos de confinamento

Desde o momento em que se anunciou o confinamento, a população de classe média se lançou às lojas e mercados para comprar provisões. A avalanche se viu agravada pelo fato de que o anúncio oficial do confinamento não indicava se os comércios de alimentação permaneceriam abertos. Ao mesmo tempo, muitas pessoas carecem simplesmente de fundos suficientes para estocar reservas de alimentos e a frase “sem dúvida morrerei de fome antes de contrair o coronavírus” resume de modo contundente as condições de vida precárias de muita gente pobre.

Em toda a crise econômica, a ausência de poupança e um coeficiente elevado do orçamento dedicado à alimentação constituem dois ingredientes que podem provocar uma tragédia humanitária. Ao voltar-se para a segurança alimentar, se vislumbra até que ponto são vulneráveis os lares indianos. A parte do gasto total consagrada à alimentação ascende para 43% nos lares urbanos e 53% nos lares rurais. A título comparativo, os lares franceses gastaram em 2014 ao redor de 20% de seu orçamento total em comida e bebidas. Além disso, de acordo coma lei de Engel, quanto mais pobre seja uma família, tanto maior é a proporção do gasto total dedicado à alimentação. Na Índia, em 5% dos lares mais pobres das zonas rurais consagram ao redor de 61% de seu gasto total à alimentação, enquanto que nas zonas urbanas esta proporção não supera 28% no caso de 5% dos mais ricos. Um descalabro econômico tem portanto muitas possibilidades de afetar à alimentação, em especial das famílias mais desfavorecidas.

No contexto atual, cabe temer que as consequências econômicas do confinamento afetem de duas maneiras ao consumo alimentar dos lares. Em primeiro lugar, o confinamento provoca uma perda de fontes de rendas imediatas para numerosas famílias. Os lares que pertencem aos estratos mais pobres da sociedade são os primeiros prejudicados pela situação, entre eles os temporários, e mais concretamente os migrantes internos, que em muitos casos se encontram sem recursos e frequentemente inclusive sem teto. Um segundo efeito previsto se refere desta vez a todos os segmentos da sociedade: existe o risco de que interrompa a cadeia alimentar. Efetivamente, certos comerciantes temem abrir suas tendas e, no caso dos vendedores ambulantes, não estão autorizados a vender suas existências. Quando se obstaculiza a mobilidade, se altera o abastecimento de alimentos. Na vertente da produção, a falta de mobilidade dos trabalhadores agrícolas em perigo as colheitas. Estas dificuldades de abastecimento podem, portanto, provocar uma carestia e de fato já aumentam os preços dos alimentos. Ante isso, o governo interveio para fixar preços máximos para os artigos considerados de primeira necessidade.

Os primeiros artigos de imprensa que relatam situações de fome não podem deixar ninguém indiferente: em Bihar, um Bihar, um menino de 8 anos morreu de fome tão somente seis dias depois do começo do confinamento. Por desgraça, se preveem outros casos similares graças à situação alimentar da Índia, caracterizada por uma má nutrição crônica (falta de equilíbrio nutricional) e inclusive, em certa medida, uma desnutrição aguda (forma visível de sub-alimentação). Segundo as últimas estimativas, em 2019, a Índia ocupava o posto 102 de um total de 117 países na classificação de fome no mundo, o mais baixo entre os países do sul da Ásia (apesar de ter um PIB por habitante mais elevado).

A edição de 2019 do Estado Mundial da Infância da UNICEF sublinha o problema persistente da fome na Índia: ao redor da metade dos falecimentos de crianças de menos de 5 anos são imputáveis à desnutrição. A proporção com insuficiência de peso, medida em função da idade, e que pode revelar tanto uma má-nutrição crônica como aguda, era de 36% em 2015-16 (a Organização Mundial da Saúde considera que um nível de insuficiência de peso superior a 30% reflete uma prevalência muito alta). Estas estatísticas dissimulam importantes disparidades regionais e socioeconômicas. A insuficiência de peso de meninas e meninos é mais alta nos Estados do centro-norte e sobretudo do leste da Índia: Jharkhand (48%) e Bihar (44%), enquanto que é muito menor em Kerala (16%). O contexto atual de confinamento terá, portanto, uma incidência mais ou menos grave segundo a região de que se trate.

Na luta contra a fome e a má-nutrição, a Índia conta com uma longa história de programas sociais consistentes em prestações em espécie, amparados na Lei Nacional de Segurança Alimentar (também chamada Lei do Direito à alimentação) de 2013. Levando em conta a emergência atual, a ministra do Orçamento do governo federal, Nirmala Sitharaman, anunciou medidas para reforçar em particular estes programas existentes, poucas horas depois do estabelecimento do confinamento. Este plano, chamado Pradhan Mantri Garib Kalyan Yojana (literalmente o Programa do Primeiro-Ministro de Proteção Social aos Pobres), está dotado de ao redor de 21 bilhões de euros. Foi acolhido com críticas por parte dos economistas. Entre eles, Jayati Ghosh qualificou este programa de “embaraçoso” dada sua escassa dotação, assim como de “insuficiente”. A Sociedade Indiana de Economia Laboral, formada por eminentes economistas, escreveu uma carta ao primeiro-ministro, assim como aos presidentes dos Estados federados, declarando que a ajuda necessária deveria ascender a 434 bilhões de euros, ou seja, mais de 20 vezes a importância prevista do projeto.

No marco do programa anunciado se previu uma ajuda econômica através dos programas existentes de transferência direta, em particular a Lei Nacional Mahatma Gandhi de garantia do emprego rural (MNREGA), que assegura 100 jornadas de trabalho remunerado aos habitantes das zonas rurais para lutar contra o sub-emprego. Entretanto, de fato, o aumento salarial anunciado pelo mecanismo MNREGA não é mais que um ajuste que já estava previsto. Esta ajuda poderia beneficiar aos trabalhadores e trabalhadoras migrantes internas que ficaram sem recursos econômicos, mas unicamente a condição de que consigam voltar a seus lares, onde estão registradas administrativamente.

Quanto às ajudas vinculadas às prestações em espécie, o governo pretende ampliar o Sistema Público de Distribuição (PDS), centrando-se nos principais aportes calóricos na Índia: os cereais (mais de 50% do total) e as leguminosas (ao redor de 12%, fonte importante de proteínas num país que consome poucos produtos animais). No entanto, as promessas poderiam não bastar para cobrir as necessidade. Alguns altos funcionários assinalaram assim mesmo que será difícil fornecer todos estes alimentos, já que o setor se enfrenta a uma penúria de mão de obra. Finalmente, o Mecanismo de almoço de meio-dia (MDMS), que fornece uma comida gratuita nas escolas, está atualmente paralisado apesar de que é fundamental para assegurar a nutrição de todos e todas as menores.

Ainda mais inquietante é saber que a implementação destes programas sociais anunciados chocará com os problemas endêmicos que os afligem: a corrupção e a omissão de uma parte dos lares que deveriam se beneficiar (exclusion error), quando o PDS tem em teoria um âmbito de inclusão muito amplo. A capacidade de alcançar a todas as pessoas necessitadas é, no entanto, essencial na situação atual (a utilização de um sistema biométrica, denominado Aadhar, não parece resolver estes problemas). O economista Jean Drèze preconiza portanto fornecer os produtos alimentícios em “instalações de urgência” a toda pessoa sem lhe pedir um número Aadhar ou um cartão de racionamento.

Frente à crise emergente, florescem as iniciativas privadas, já se trate de ONG que organizam pontos de abastecimento em zonas urbanas, ou de tempos sijs que acolhem as pessoas sem teto. No entanto, não somente o setor benéfico se esgotou notavelmente durante as duas últimas décadas, mas que em ausência de um apoio público massivo, as iniciativas locais não bastarão. Em Tamil Nadu, as ONGs ainda ativas se concentram sobretudo em medidas de sensibilização e nas precauções necessárias para limitar a propagação do vírus, o que suscita mais receios que não confiança por parte da população, na medida em que o que mais preocupa atualmente é saber como ter comida para amanhã. Como adverte Jean Drèze: “A gente pobre está acostumada a encaixar muitas coisas com humildade; quando há fome e se sentem débeis, não estão em boas condições para se rebelar. Mas poderiam se produzir revoltas da fome, quem sabe”.

Conclusão

Num momento histórico como esta, caberia esperar que a unidade nacional se situasse por cima de tudo e que estigmatizações e polarizações baseadas na religião, na etnia, na casta ou na classe social ficaram relegadas a um segundo plano. Mas nada é menos seguro. Ao voltar a seus lares, os e as migrantes são vítimas de ataques e se veem condenadas ao ostracismo por medo à infecção. E não teve que passar muito tempo para que apareçam os discursos de ódio nesta crise, com acusações aos índios muçulmanos, aos do nordeste, a indígenas ou dalits, de propagar o vírus. Está por se ver se o governo aproveitará a ocasião desta crise para dividir ainda mais ou bem unir à população, e como fará isso. A preocupação imediata se centra no povo pobre e nas minorias, que como vemos serão as primeiras em padecer os efeitos da crise. Para elas, as consequências do lockdown serão dramáticos. Morrerão em casa, em silêncio, talvez a causa de algo muito mais mortal que o próprio vírus: as profundas desigualdades soció-econômicas que dividem a sociedade indiana.

Levando em conta a grande diversidade de situações no subcontinente indiano, as respostas públicas regionais parecem mais apropriadas para contrarrestar a tragédia econômica e humanitária. Vários Estados tomaram a dianteira implementando soluções de urgência ambiciosas para a gente mais desfavorecida, como Kerala, Delhi, Odisha ou Bengala Occidental, por muito que suas iniciativas se vejam freadas em parte pelas transferências de fundos do governo central. O setor informal, apesar de estar muito tocado pelo confinamento, também se mostrou incrivelmente resistente com motivos das crises anteriores, o que infunde esperança nestas circunstâncias sem precedentes. Mais a longo prazo, um investimento massivo no setor agrário contribuiria a regenerar a economia, assegurando a disponibilidade de alimentos e reduzindo o abismo entre as cidades e o campo, que se pôs de manifesto de modo flagrante com o enorme êxodo ao que estamos assistindo.

Marine Al-Dahdah é PhD em Sociologia pela Paris Descartes University.

Mathieu Ferry é um sociólogo francês.

Isabelle Guérin é pesquisadora de Economia do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento/ Centro de Estudos em Ciências Sociais nas Américas

Venkatasubramanian Govindan é doutor em Sociologia pela Universidade de Pondicherry, Índia.

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