FONTE: Página 12 | 24/05/2020 | TRADUÇÃO: Charles Rosa
por Dolores Curia
“A humanidade vive tempos de desconto” A quarentena não a encontra letárgica nem confusa. Maristella Svampa não faz outra coisa que pensar na pandemia e escrever. “A crise abre processos de libertação cognitiva”, diz. E ela a tem na cabeça “desde a manhã até ir para a cama”. A conversa segue a velocidade de seu pensamento, porque sabe que este estado de exceção vai ser breve. A crise do coronavírus é uma oportunidade, um portal que se abre, mas não por muito tempo, no qual eventualmente vai ser preciso escolher entre mais “capitalismo do caos” ou um New Green Deal, do qual está se falando aqui e no mundo, e que a sua passagem vai somando as assinaturas de intelectuais e políticos, como Bernie Sanders, Alexandria Ocasio-Cortez, Noam Chomsky.
É que esta crise não é produto do azar, mas uma tragédia que vem sendo anunciada desde a Organização Mundial da Saúde, entre outras agências oficiais das Nações Unidas. E às causas da enfermidade que percorre o mundo é preciso buscá-la, diz Svampa, entre a relação predatória com a natureza, o modelo agroindustrial e as ânsias de lucro a qualquer preço.
-Por que é este um momento especialmente oportuno para pensar o social numa chave ambiental?
– A humanidade vive tempos de desconto. Converteu-se numa força que impacta em termos destrutivos no tecido da vida. É um alarme que saltou há bastante tempo. A gravidade da crise climática e o colapso ecossistêmico são evidentes. O coronavírus evidencia as enormes desigualdades que se consolidaram neste sistema e, por outro lado, a importância das causas socioambientais. Não estamos vivendo um Leviatã climático, mas sim um Leviatã sanitário. As causas deste fenômeno sem precedentes têm a ver com a devastação dos ecossistemas, as enfermidades zoonóticas, como o explicaram tantos especialistas, e também se desprendem do modelo agro-alimentar. As megagranjas industriais que são um caldo de cultivo e de transmissão destes vírus. É uma crise que abre interrogações acerca de até onde queremos ir como sociedade, como vamos pensar os vínculos sociais de agora em diante e nosso vínculo com a natureza. As grandes crises são portadoras de demandas ambivalentes. Por um lado, há demandas de transformações radicais. As crises tornam viável aquele que até há pouco era considerado inviável. Por outro lado, há vozes conservadoras que clamam por um retorno à normalidade. Quando, na realidade, o retorno à normalidade significaria uma falsa solução.
Não se fala de causas socioambientais nos principais debates. A que se deve para você esta invisibilização?
– Em princípio não aparecem no discurso público de nenhum político. De Angela Merkel a Alberto Fernández. Aparece somente o sanitário e ligado a um discurso bélico que tende a obturar esta discussão. É uma crise que abriu dois eixos. Primeiramente, desvelou a profundidade das desigualdades. Não somente entre o Norte e o Sul senão no interior de nossas sociedades. Thomas Picketty sublinha que a concentração da riqueza hoje é comparável a qual havia no final do século XIX. E estão as causas socioambientais que anunciam, como dizem tantos pesquisadores, que haverá novas pandemias. E que além disso devemos afrontar a mudança climática, que combinará muitos deste elementos, além das enfermidades ligadas à contaminação e um processo massivo de refugiados ambientais.
– Do que se trata o pacto ecossocial do qual vem escrevendo, junto ao advogado especialista em Direito Ambiental, Enrique Viale?
– É algo do que se vem falando em todo o mundo. Também é conhecido como Green New Deal. Nos Estados Unidos e na Europa há um imaginário instalado relacionado com a necessidade de um grande pacto como saída da crise, como o New Deal e o Plano Marshall. Na Argentina o que temos é uma tradição ligada à concertação como, por exemplo, a que promovia o Peronismo com os Planos Quinquenais. Mas não há um imaginário ligado a um pacto social, entendido como uma recuperação integral. Hoje, sim está se falando mais do tema. É importante promover uma visão integral, porque há uma tendência a encapsular os pactos em sua dimensão social e econômica, desviando-o dos temas ecológicos, que são o grande desafio que enfrenta a humanidade nos dias vindouros. Preferimos não chamá-lo de “Novo Pacto Verde” porque cada vez que aparece essa palavra se tende a limitar, a pensar que somente falamos da redução dos gases do efeito estufa. Quando na verdade estamos falando de abordar a desigualdade, a questão sanitária, a educação e a dimensão socio-ambiental.
Por que você acredita que o tema da transição energética é uma discussão que somente se coloca marginalmente na Argentina?
Entra e sai das agendas de muitos países e se vê cercado por tensões e interesses. Aqui Vaca Muerta obturou a possibilidade de pensar uma transição para energias limpas. É um ponto cego que atravessa diferentes governos, com suas modalidades. Instalou-se a ideia de que, explorando-a, a Argentina vai se converter numa potência energética exportadora. Essa imagem se viu desmoronando e hoje está em sua mínima expressão. Mas não somente porque em todo o mundo há fortes controvérsias ambientais, mas porque em termos econômicos e financeiros Vaca Muerta é inviáveis. Não somente pela queda do preço do barril de petróleo. É necessário sair dessa quarentena e pensar numa linha diferente em sintonia com as energias limpas e como vamos em transição para elas.
Há toda uma discussão sobre o lítio que ainda não se deu na Argentina, pelo menos, não cabalmente…
– Está se dando em muitos países. Pensa-se como criar uma Agência Nacional do Lítio que promova um entrelaçado tecnológico e produtivo diferente, com métodos de extração não contaminantes e acordos com as comunidades indígenas do norte argentino. Se não pensarmos como implementá-lo aqui, o que faremos, que já está se passando, é destruir nossos territórios, atropelar as comunidades que vivem ali e facilitar a transição energética aos países mais poderosos como a China, Japão e Alemanha.
Abre-se com este novo governo as possibilidades de dar esses debates?
– Sim, são temas que agora poderiam ser abordados. Sobretudo, levando em conta a conjuntura. Também sou consciente de que estes são processos curtos. São oportunidades, portais que, assim como se abrem, também se podem fechar em muito pouco tempo. Mas poderia suceder que a resposta seja reativar a economia com mais extrativismo, por exemplo. Durante o confinamento houve mais desmonte no Norte e também em províncias com Chubut, onde lhe foi dito que não à megamineração, está se aproveitando a crise para promover a mineração como uma solução. Insisto com que a transição é um processo complexo e não temos um manual. A velha imagem de YPF serviu, no meu entender, até os anos 70. Hoje os combustíveis fósseis não fazem parte do futuro. No caso do lítio é diferente, pertence aos dois mundos. Por um lado, é mineração de água e é altamente insustentável. Para sua extração se utiliza milhões de litros de água em ecossistemas frágeis como são as salinas. Mas, por outro lado, é uma das chaves para aceder a energias limpas, livres de combustíveis fósseis. Aí há um dilema. Teríamos que tratar de pensar num cenário com energias pós-fósseis, limpas, renováveis, para construir uma sociedade solidária e resiliente. Se queremos pensar em termos de justiça distributiva e de transição energética, o que o Governo ajeitou, cedendo à pressão das companhias petroleiras, como um preço especial ao óleo cru ou um ‘barril criollo’, é um total desatino. Um grave retrocesso. Os custos que vai trazer o país são enormes. Estou incluindo nisso aos governadores. É preciso pensar como desarticular essa aliança perversa entre grandes companhias, governadores e sindicatos petroleiros, para voltar a pensar no país, nos trabalhadores do setor, nos consumidores e na transição.
Ao calor do confinamento, muita gente conta que está repensando sua relação com o consumo…
– É que se vamos a substituir os combustíveis fósseis pelo lítio mas vamos conservar o mesmo modelo de consumo, centrado, por exemplo, em automóveis individuais, não mudamos nada. Não somente o planeta é limitado. O lítio também é limitado e em algum momento vai se esgotar. É lógico que todos nós estamos repensando a diferença entre aquilo que é acessório e aquilo que é necessário. Por isso, digo que a pandemia é uma oportunidade de rever a insustentabilidade e todas as injustiças que implica este modelo de consumo tão ligado à globalização neoliberal.
Outros dos eixo que entretece a proposta do Pacto Ecossocial e Econômico é a Renda Universal Cidadã.
-Também pensamos isso como um processo. Implicaria uma saída da armadilha da pobreza e o clientelismo, tão ligados aos planos sociais focalizados. Deve ser pensado junto a uma reforma fiscal progressiva. Não somos os únicos que falamos do tema. Intelectuais como José Nun trabalharam isso historicamente, Rubén Lo Vulo, inclusive Beatriz Sarlo. A ideia seria que não se castigue os setores mais vulneráveis, através de impostos indiretos como o IVA. Mas impostos às grandes fortunas, aos danos ao meio ambiente, ao capital financeiro, à herança. Não temos imposto à herança porque Martínez de Hoz o suprimiu num canetaço. Quando dizemos que a América Latina teve uma oportunidade de crescimento econômico durante o ciclo progressista e usou renda extraordinária proveniente do extrativismo em melhorar as condições de vida dos trabalhadores e dos setores populares, é preciso dizer também que não se promoveu maior justiça social através da reforma do sistema fiscal. O terceiro eixo do pacto é a dívida externa. A Argentina está em virtual default, graças aos que nos deixou o Governo anterior. Muitos organismos internacionais estão chamando a contemplar a situação de fragilidade que atravessam os países do Terceiro Mundo. Alguns falam de um jubileu de dívidas como a nossa, que é insustentável e que nem sequer melhorou a situação dos setores menos favorecidos.
A ideia de reforma fiscal que taxe a renda financeira soa muito bem, mas estamos vendo a resistência que provoca um imposto sobre as grandes fortunas. Lhe parece praticável?
-Estamos ante uma crise civilizatória. Nem falar da recessão econômica que já está se instalando no país. A isso é preciso que somar que o vírus está chegando às populações mais vulneráveis. Estamos a uma situação de tal gravidade que fica claro que os setores que têm que aportar são os que mais têm. O imposto sobre grandes fortunas não é uma loucura peronista, como se quer instalar, mas uma questão lógica de justiça distributiva. É necessário sair a apoiar essa medida desde todos os setores. As cartas não estão marcadas.
– Também colocaram foco no tema dos cuidados, desde a perspectiva da economia feminista. .
– Acreditamos que se deve implementar um sistema nacional público de cuidados. É central para pensar a nova sociedade na qual se ponham em jogo o respeito e a reciprocidade como elementos fundamentais para a reprodução social. Trata-se de colocar outro olhar das relações entre os seres humanos e dos seres humanos com a natureza, uma visão que não pensa o ser humano como alguém autônomo, mas como alguém que necessita do outro para sobreviver. As feministas populares deixam isso bem claro quando colocam a ética do cuidado num lugar central. Hoje o cuidado aparece no discurso oficial e de fato este Governo incorporou numerosas mulheres profissionais, economistas, intelectuais. Oxalá suas presenças nesses postos colaborarem a aprofundar esta visão.
Entretanto se organiza uma “marcha o comunismo”, se faz barulho contra a prisão domiciliar para presos em situações vulneráveis, e poderíamos seguir…
Todas essas pessoas sempre estiveram aí. Vivemos um momento de regressão política no qual há correntes sociais ligadas a um pensamento reacionário de direita e extrema-direita, que buscam uma expressão política partidária. E que, em alguns países, como o Brasil, a encontraram. A crise de 2008 na Europa e nos Estados Unidos abriu a porta para uma reconfiguração econômica e social negativa: se fez em benefício dos setores financeiros e prejudicou setores médios e populares. Esses setores buscaram outras soluções pela via de uma narrativa xenófoba e nacionalista. Na América Latina vimos isso na Bolívia: a partir da derrubada de Evo Morales se fez presente uma direita radical, anti-indígena, que acreditamos derrotada. O modelo da globalização neoliberal se esgotou. Corremos o perigo de avançar para um colapso ecossistêmico em sintonia com uma direita radical e nacionalista que propõe um fechamento cognitivo através do medo. Em 2011, quando surgiram movimentos como Occupy Wall Street ou os indignados na Espanha, uma das consignas era “Somos os 99% da população contra 1% dos super ricos”. Luis González Reyes, um ecologista espanhol, diz que é preciso complexificar essa consigna: há 20% que é permeável à mensagem fascista. Então, na verdade, somos 79% versus 21%. Não se pode negociar com os fascismos, o fascismo se combate através de frentes políticas.
Por que Maristella Svampa?
Maristella Svampa se define como intelectual anfíbia, oriunda da Patagônia. É Licenciada em Filosofia pela Universidade Nacional de Córdoba, mestra em Filosofia na Universidade de Paris I e doutora em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris. É pesquisadora principal do Conicet e tem uma vintena de livros publicados, entre ensaios, pesquisas e romances. Svampa é uma pensadora, se diria, especializada em crise: na crise do mundo popular e o desenvolvimento das organizações piqueteras na convulsionada pós-2001 (mas também, sua contraface: a vida nos countries e bairros privados), a crise do peronismo (La plaza vacía. Las transformaciones del peronismo) e, desde há anos, sua grande tema foi o da devastação ambiental. Seus últimos livros o demonstram: Chacra 51. Regreso a la Patagonia en los tiempos del fracking y Las fronteras del neoextractivismo en América Latina.