Fonte: The Guardian | 13/07/2020 | Tradução: Charles Rosa
Qual mundo nos deixará a crise do coronavírus? Naomi Klein (Montreal, Canadá) insiste, em entrevista ao The Guardian, em que aquilo relacionado com a crise climática, a igualdade e a justiça devem ser as questões centrais ao redor das quais se pode reconstruir o mundo pós-pandemia.
A ativista, escritora e acadêmica é a primeira titular da Cátedra Gloria Steinem de mídia, cultura e estudos feministas da Universidade Rutgers (Nova Jersey, Estados Unido). A versão de livro de bolso de sua obra On Fire (2019) será publicada pela editora Penguin em 24 de setembro.
Katharine Viner: O que você acha do confinamento?
Para os que estávamos dando aula através do Zoom, e esse foi o meu caso, além de manter uma escola em casa, fazendo malabarismo e descobrindo como fazer coisas no forno, tem sido muito cômodo. Agora voltarei ao Canadá para passar o verão com a minha família e em quarentena, porque no Canadá, quando você volta dos EUA, você precisa passar por uma quarentena muito estrita. E já estou há quase duas semanas sem sair de casa. De fato, estou começando a desenvolver alguma fobia de sair da quarentena.
Katharine Viner: Há uma frase muito boa de um de seus últimos ensaios que diz: “Os humanos somos um risco biológico, as máquinas não o são”. Me deu arrepios e me fez sentir medo pelo futuro. Você escreveu coisas muito interessantes sobre um “Novo Acordo sobre as Telas”.
O Vale do Silício tinha uma agenda antes do coronavírus na qual imaginava substituir muitas, demasiadas, de nossas experiências corporais inserindo tecnologia no meio do processo.
Por isso, para aqueles poucos espaços nos quais a tecnologia ainda não media nossas relações, havia um plano – por exemplo, substituir o ensino presencial por aulas virtuais, a medicina do contato por telemedicina e a entrega em pessoa mediante robôs. Tudo está sendo ressignificado como tecnologia sem contato depois da Covid-19, o que é um modo de substituir o diagnóstico do problema, que agora é o contato.
Mas no pessoal, o que menos vínhamos desenvolvendo era o contato. E necessitamos ampliar o menu de opções que temos para viver com a COVID-19, porque não temos vacina e ela não está próxima. Inclusive caso se deem grandes avanços, vão passar muitos, muitos meses, possivelmente anos, antes de que ela possa ser desenvolvida à escala necessária.
Então, como vamos viver com isso? Vamos aceitar uma “normalidade” prévia à COVID-19 mas muito minguada e sem as relações que nos sustentam? Vamos permitir que nossos filhos recebam toda sua aprendizagem através da tecnologia? Ou vamos investir em pessoas?
Em vez de colocar todo o dinheiro num “Novo Acordo sobre as Telas” e em tratar de resolver os problemas de um modo que diminua nossa qualidade de vida, por que não nos dispomos a uma nova onda de contratação de professores? Por que não temos o dobro de professores com a metade de alunos e começamos a pensar na educação ao ar livre?
Há tantas formas nas quais podemos pensar para dar resposta a esta crise que não aceitamos essa ideia de que precisamos regressar ao status quo anterior à COVID-19, mas numa versão piorada, mais vigiados, com mais telas e menos contato humano.
Katharine Viner: Existe algum governo com esse discurso?
Me anima escutar Jacinda Arden falar de uma semana laboral de quatro dias como solução para o problema de que a Nova Zelândia é muito dependente das rendas do turismo. A Nova Zelândia é, provavelmente, o país que melhor lidou com a pandemia, ao menos melhor que outros no que se refere à taxa de mortalidade. O país não pode abrir as portas aos turistas como o fez no passado e daí nasce a ideia de que talvez os neozelandeses deveriam trabalhar menos, receber o mesmo e ter mais tempo livre para desfrutar seu próprio país com segurança.
Como baixamos o ritmo? Penso muito nisso. Parece que cada vez que pisamos no acelerador de “que tudo siga igual” ou “do regresso à normalidade” o vírus aparece de novo e diz: “Pare!”.
A todos nos encantam esses momentos de frear o governo do Reino Unido está empenhado em regressar à normalidade passe o que passe, abrindo tudo, por exemplo, os pubs e está desesperado porque não sairemos de férias. É urgente que nada mude em nossas vidas, que nos limitemos a regressar uma realidade igual a de antes.
Isso é uma loucura. É muito pequena a porcentagem dos que querem abrir as portas de novo como se na da houvesse acontecido. De fato, há uma maioria de pessoas muito mais preocupadas por ter que voltar ao trabalho antes que haja condições de segurança ou ainda por ter que mandar seus filhos ao colégio de modo precoce. Às vezes, o problema é apresentado como se tratando de dar ao povo o que ele pede, mas não é isso que mostram as pesquisas.
Há certas similaridades no modo como Donald Trump e Boris Johnson manejam a crise. Estão convertendo-a numa espécie de prova de masculinidade e, no caso de Johnson, inclusive depois de haver ficado enfermo. Jair Bolsonaro se dizia atleta e sabia como geri-la [o presidente brasileiro revelou ter contraído o coronavírus logo após a realização desta entrevista]. Já Trump se vanglariou do “bom” de sua genética.
Katherine Viner: Me interessa seu ponto de vista sobre os protestos pelos direitos civis após a morte de George Floyd. Por que eles aconteceram agora? É intrigante que, em meio a uma crise como esta, se produzam grandes manifestações contra o racismo em todo o mundo?
Não é a primeira onda de mobilizações com estas características. Mas creio que houve alguns aspectos que foram únicos graças à crise da COVID-19 e ao impacto descomunal nas comunidades afro-americanos em cidades como Chicago, por exemplo, onde, segundo algumas fontes, até 70% dos falecidos por COVID-19 eram afro-americanos.
Seja porque são os que desempenham trabalhos de maior risco com proteção, pelo legado de contaminação ambiental em suas comunidades, o estresse, o trauma ou um sistema sanitário que as discrimina, as pessoas negras sofrem de maneira desproporcional com as mortes pelo vírus. É um fato e desafia a ideia de que todos estamos juntos nisso.
Neste momento traumático, esses assassinatos, o de Ahmaud Arbery, o de George Floyd, o de Breonna Taylor, abrem um espaço. E surge uma pergunta recorrente: o que fazem nesses protestos tantas pessoas que não são negras? Isso é novo. Ao menos na escala na qual ocorreu. Muitas destas manifestações foram multirraciais de verdade; manifestações multirraciais lideradas pelas pessoas negras. Por que desta vez foi diferente?
Tenho algumas ideias. Uma tem a ver com o fato de que a pandemia introduziu uma certa suavidade em nossa cultura. Quando você diminui a velocidade, você sente mais as coisas; quando você está numa corrida constante pela sobrevivência, não lhe resta muito tempo para a empatia. Desde que isso começou, o vírus nos obrigou a pensar em relações e interdependências. A primeira coisa em que você pensa é, de tudo o que toco, há algo que o tenha tocado alguém antes? O que como, o pacote que acabam de me entregar, a comida nas estantes. São conexões nas quais o capitalismo nos ensina a não pensar.
Creio que nos ver obrigados a pensar de maneira mais interconectada pode nos fazer mais sensíveis ao pensar nestas atrocidades racistas, como algo que não é apenas um problema de outras pessoas.
Katherine Virne: Esta é uma grande frase de seu último livro, On Fire: “Tudo o que já era ruim antes do desastre se degradou ao nível do insuportável”. O modo como a polícia trata os homens negros é insuportável.
Sempre que nos golpeia um desastre escutamos o mesmo discurso: “A mudança climática não discrimina, a pandemia não discrimina. Estamos juntos nisso”. Mas tal constatação não é correta. Os desastres não funcionam assim. Exercem a função de intensificadores e maximizadores. Se você tinha um trabalho numa loja da Amazon que já estava lhe afetando antes de que isso começasse ou se você estava em alguma residência de idosos e já sua vida era tratada como algo que não valia nada, já era ruim antes, mas tudo isso se maximizou até se tornar insuportável neste momento. E se antes você era descartável, agora você pode ser sacrificado.
Isso por falar somente da violência visível. Temos que falar mais sobre a violência escondida, a violência doméstica. Sem rodeios, quando os homens se estressam, quem sofre mais são as mulheres e as crianças. Estes confinamentos são estressantes porque as famílias não têm o hábito de passar um tempo uns com os outros. Inclusive a melhor família necessita de algum espaço. Se acrescentadas as demissões e a pressão econômica o resulta é este o que vemos, uma situação atual muito ruim para as mulheres.
Katherine Virne: Você passou grande parte do ano passado trabalhando na campanha de Bernie Sanders e no denominado ‘Green New Deal’. Como você vê tudo isso agora? Você se sente mais ou menos otimista em relação em seu potencial?
De certa maneira, isso é mais complicado. Você menciona a Bernie e, sem dúvida, eu teria preferido que o resultado fosse um candidato presidencial que baseasse sua campanha no ‘Green New Deal’. Somente poderemos ganhar quando houver uma interação entre um movimento de massas que pressione de fora para dentro com uma receptividade no interior do sistema. Creio que tivemos essa oportunidade com Bernie.
Com Joe Biden é mais difícil, mas não impossível. Ao final de On Fire apresentei dez razões em favor de um “Green New Deal” e os motivos pelos quais é uma boa política climática. Uma dessas razões é que funciona à prova de recessões. Se olhamos para trás, vemos que o movimento climático tem uma trajetória pobre em resultados quando a economia vai relativamente bem. O tipo de soluções oferecidas pelos Governos tendem a ser neoliberais e baseadas no mercado, impostos climáticos ou políticas baseadas em energias renováveis que são percebidas como elementos que encarecem o custo da energia. Também os imposto que elevam o preço da gasolina. E quando chega a recessão, não há dúvidas de que o apoio a esse tipo de políticas se evapora. Vimos isso depois da crise financeira de 2008.
O que importa falar do ‘Green New Deal’ é que toma forma a partir de um dos programas de estímulo econômico mais importantes de todos os tempos: o New Deal de Roosevelt durante a Grande Depressão. Por esta razão, o maior golpe que recebi quando publiquei o livro há pouco mais de um ano foi: “Mas fazemos coisas como esta quando a economia vai bem”.
As únicas oportunidades nas quais podemos agarrar com clareza na direção de uma mudança sócia rápida, grande, que atue como catalizadora – e sobretudo não me cabe dúvida alguma – é em momentos de grande depressão ou guerra. Sabemos que podemos mudar rapidamente. Já vimos isso. Mudamos nossas vidas de forma substancial. Descobrimos que os governos possuem bilhões de dólares que poderiam ter sido mobilizados durante todo este tempo.
Tudo isso tem um potencial radical. Sinto que temos uma nova oportunidade. Não me descreveria como otimista porque falamos de um futuro pelo qual temos que lutar. Mas se olharmos na direção dos momentos na história nos quais se produziram grandes mudanças, são os momentos como o atual.