FONTE: Media Part | 09/08/2020 | TRADUÇÃO: Charles Rosa
Depois da devastadora explosão que matou ao menos 154 pessoas na terça-feira, 4 de agosto, os libaneses estão tomando as ruas para expressar sua indignação contra uma classe política cada vez mais criticada. Professor e pesquisador da Universidade Americana de Beirute, o cientista político Jamil Mouawad se mostra prudente sobre as possibilidades de que surja uma alternativa política depois desta tragédia. Helena Berkaoui o entrevista para o Mediapart.
Quatro dias depois da explosão no porto de Beirute que matou ao menos 154 pessoas e deixou 5000 feridos, a indignação dos libaneses continua. Neste sábado, 8 de agosto pela tarde, teve lugar uma manifestação em Beirute (com milhares de participantes e semeada de enfrentamentos com a polícia) para exigir responsabilidades da classe política. Ante a pressão das ruas, o primeiro-ministro Hassane Diab anunciou que proporia eleições antecipadas podem permitir sair da crise estrutural”, e agregou que estava disposto a permanecer no poder “dois meses”, enquanto as forças políticas debatem sua proposta.
No domingo haverá uma video-conferência de doadores em apoio ao Líbano. Estará co-organizado pela ONU e França. Esta tragédia se produz quando o país atravessa uma crise financeira e social sem precedentes e depois de meses de protestos sem encontrar saídas políticas.
O cientista político Jamil Mouawad, professor e pesquisador da Universidade Americana de Beirute (AUB), estudou com profundidade os sistemas políticos libaneses e a relação entre a sociedade e o estado. Também analisou os debates e mobilizações surgidos da primeira manifestação massiva contra o governo em 17 de outubro de 2019. Segundo Mouawad, se a oposição civil não consegue organizar e convencer à opinião pública que opte pela alternativa que pudesse encarnar, a classe política poderia recuperar o controle da situação. Jamil Mouawad também é muito crítico com a visita de Emmanuel Macron a Beirute em quinta-feira, 06 de agosto.
Como analisa o drama desta explosão e os acontecimentos posteriores?
Jamil Mouawad: Todo mundo está traumatizado em Beirute, esta explosão lembrou ao povo os traumas da guerra, os ataques israelenses em 2006… De certo modo, não é nada novo, já tivemos explosões, exceto que a esta escala, não tem precedentes, não era conhecido.
Há muitas perguntas para as quais não temos resposta. Não se sabe como nem por que esta enorme quantidade de nitrato de amônia permaneceu armazenado no porto durante anos. Não existe uma versão oficial. Há rumores e relatos de jornalistas, mas nada oficial e isso reflete a realidade da política no Líbano.
Como sempre, há multidão de verdades. Cada um tem a sua própria e isso é parte do problema. Nem sequer existe um comitê de crise que se ocupe do tema e trate de explicar os libaneses, passo a passo, o que sucedeu. Sem dúvida é demasiado cedo para saber isso com precisão, mas já é bastante tarde para ativar este tipo de comitê de crise que se encarregue da comunicação com a cidadania.
A gestão de crise não está centralizada e, como resultado, as versões estão se multiplicando. Isso é muito simbólico. Ante cada crise temos multidão de histórias: o assassinato de Rafic Hariri, cem versões; a crise dos resíduos [em 2015, várias manifestações denunciaram a incapacidade do governo libanês para tratar o lixo acumulado depois do fechamento do maior depósito do país], uma centena de versões… Isso diz muito da forma como os assuntos públicos são geridos. Os políticos podem se desresponsabilizar, ter seu próprio discurso e, afinal, o cidadão libanês é a única vítima.
Caem dentro deste marco de leitura as recentes declarações do presidente Michel Aoun, que colocam a possibilidade de que a explosão tenha sido provocada por um míssil ou uma bomba?
Exatamente. É o presidente da República e seu comportamento ilustra o que a classe política vem fazendo isso há anos: exonerar-se de todas suas responsabilidades.
Frente a esta multidão de versões, num país onde nunca temos investigações céleres, todas as hipóteses (seja um ataque externo seja negligência) seguem sendo possíveis. O problema é que provavelmente nunca saibamos a verdade.
Suscitaram muitas críticas sobre a falta de responsabilidade ou inclusive a empatia da classe política libanesa. De novo, isso é surpreendente?
Não. Porque como os políticos nunca aceitam suas responsabilidades, acusam outros de ser responsáveis. Ninguém assume suas responsabilidades nem em tempos de paz, na gestão diária dos assuntos públicos nem em tempos de crise. Os cidadãos perderam a confiança neste estado, neste governo, e hoje são os cidadãos os quais estão assumindo a responsabilidade pelas consequências desta crise. Hoje, em Beirute, são principalmente voluntários, cidadãos, associações civis que limpam as ruas e brindam ajuda humanitária de emergência.
O que sucede dada a escala da explosão não tem precedentes, mas em termos de resposta à crise, o comportamento dos políticos segue sendo o mesmo. Eximem-se de tudo e os cidadãos se organizam. A resposta é muito descentralizada, todos falam a título individual, pelo que ninguém sabe que é responsável pelo que sucede.
A desconfiança da cidadania é patente desde outubro de 2019 e o início das manifestações sem por isso ter uma saída política. Poderia esta nova crise marcar um ponto de inflexão?
É um ponto de inflexão na história recente do Líbano, haverá um antes e um depois de 4 de agosto, mas é cedo para saber se os grupos independentes, os grupos da revolução vão se organizar e se apresentarão como uma alternativa séria. Os que estão muito organizados, com um programa escrito e claro não conseguiram convencer ao cidadão médio. Sempre existe esta distância entre essa alternativa e a opinião pública.
Contudo, é quase seguro que os grupos da revolução não se apresentarão como uma alternativa de tomada do poder ou de transição política. Estão muito mal organizados. Não conseguiram se colocar de acordo sobre um projeto comum. Não existe um diálogo sincero e aberto entre eles que leve a um plano de ação com três ou quatro reivindicações prioritárias em torno de um mínimo comum denominador.
Evidentemente, todos estão contra a classe política, contra a corrupção, mas isso não é política. É dissensão, protesto. Fazer política significa se organizar, falar com o povo, ter uma visão da sociedade e também convencer os cidadãos de que essa visão é a correta.
Assim, estas iniciativas para limpar as ruas são excelentes, mas podem organizar-se politicamente depois? Não creio.
Durante as eleições legislativas de maio de 2018, as listas da sociedade civil tentaram impor-se, em particular em torno do movimento Koullouna Watani. É possível que uma transição tome a rota eleitoral?
Koullouna Watani é uma coalizão de vários partidos e ativistas independentes. A figura principal deste movimento, Charbel Nahas, é a que tem o programa mais elaborado, mas não logrou convencer a cidadania.
Somente resultou eleita uma deputada, Paula Yacoubian, que demitiu depois da crise do ano passado. Fez parte dos chamados deputados da sociedade civil. É uma reconhecida jornalista que deu voz ao sistema durante anos. É uma celebridade política, tem um discurso sensacional, mas não faz política. Não apresenta uma visão para um novo contrato social entre os libaneses e o estado.
Para representar uma alternativa a este sistema, é preciso dizer o que se necessita. Ainda queremos uma sistema capitalista liberal? Queremos mais justiça social? E como reformar este sistema? Não existe esse debate. Dizem que toda a classe política é corrupta, que é preciso mudá-la, mas não discutem os temas de fundo.
Postular-se para um cargo é perfeitamente legítimo, mas é uma questão de poder, não de sociedade. Devemos pensar, sobretudo, num novo contrato social.
A abolição do confessionalismo, como início de uma resposta política, é um debate que se repetiu frequentemente durante décadas. É isso parte da solução?
Todos criticam o comunitarismo político, inclusive o presidente da Câmara de Deputados, Nabih Berri, ou o presidente da República, Michel Aoun. Temos que ir além da retórica e das palavras de ordem, temos que falar de temas substantivos e isso requer um espaço público onde se possam propor e debater estas questões. A Câmara de Deputados, o governo, as instituições públicas (todas controladas pela classe política) não podem abrir este espaço. Na falta de ter este debate nestas instituições públicas, os grupos da sociedade civil discutem entre eles.
Você esteve presente durante os protestos do inverno passado. Como vê os debates que tiveram lugar ali?
É o momento de fazer uma leitura crítica destas mobilizações. Diz-se que “Todos significam todos” [principal palavra de ordem das manifestações iniciadas em outubro – nota do editor]. Isso é genial, este lema é importante porque é a solução e o problema.
Por um lado, parte dos libaneses diz que todos os políticos são responsáveis. Puderam entender o poder como uma entidade. No Egito, por exemplo, era mais fácil culpar o regime de Hosni Mubarak. Mas no Líbano é muito difícil. A quem acusar? O Hezbollah? O Hariri? Com esta palavra de ordem, dizem que toda a classe política é responsável da miséria da sociedade: a crise dos resíduos, os incêndios, a crise financeira e econômica…
O problema é que nomeamos os responsáveis. Se digo isso a um simpatizante das forças libanesas, que Samir Geagea é corrupto, dirá que não, que temos de atacar Michel Aoun antes de que Samir Geagea porque é mais corrupto.
Não se trata somente de criticar toda a classe política, trata-se de se organizar com a sociedade, apresentar uma visão desta sociedade e oferecer uma alternativa.
Nos últimos dias, alguns falaram de guilhotinas e quiseram se vingar. É perfeitamente legítimo e compreendo esse sentimento, mas é pouco provável que suceda. Antes de criticar a classe política, é hora de que estes grupos se critiquem a si mesmos. Novamente, estes grupos devem se organizar, eleger um comitê representativo, colocar um programa mínimo e talvez apresentar um plano de ação a esta classe política para negociar.
É uma ideia muito pragmática que pode resultar ofensiva, mas que de que outra maneira podemos fazer isso? Esta classe política é muito violenta, está disposta a fazer qualquer coisa para não perder o poder. Não importar isso para a sociedade, há uma ruptura total e com o tempo a classe política criou uma grande brecha entre ela e a sociedade. Em minha opinião, temos que negociar. Temos que provar outros meios mais pragmáticos, menos idealistas, mas temos que tocar neste sistema. Nem as eleições nem as ruas tiveram êxito, talvez deveriam ser explorados outros meios.
O momento pelo qual atravessa o Líbano é terrível, a indignação é enorme. É este um bom momento para este tipo de iniciativas?
Agora não é o momento adequado porque uma vez mais está reagindo a uma crise, como a crise dos resíduos ou os incêndios de outubro. Por outro lado, é um bom momento para se organizar, para se consolidar como uma alternativa real, não necessariamente contra o sistema, mas a favor do cidadão libanês. Devemos convencer o cidadão libanês, não devemos convencer a classe política.
Talvez deveríamos nos colocar um plano de ação começando por pressionar esta classe política para que se leve a cabo uma investigação transparente sobre a explosão e que tenha eleições em um, dois ou três anos. Se não é assim, voltaremos a encontar no circuito dos partidos tradicionais que, logo, chegarão a encher o vazio. Porque têm os meios de comunicação, os recursos para oferecer ajudar, uma sensação de segurança, inclusive a nível físico, apesar do ato criminoso que viveu Beirute.
Ali estão todas estas pessoas que limpam as ruas e brindam apoio às famílias pobres. Estão aí mas não o estado. Os cidadãos libaneses devem estar convencidos de que serão a base da mudança, que esta organização humanitária deve converter-se numa oposição política. Esse é o desafio. Não é óbvio, leva tempo.
Como analisa a visita de Emmanuel Macron a Beirute depois da tragédia e que significa isso para a França?
É uma visita muito oportuna porque parece desbloquear as sanções internacionais que afetaram o Líbano durante os últimos cinco ou seis meses. Volta a colocar o Líbano na agenda internacional e talvez termine com o bloqueio que está experimentando o país com a crise financeira e econômica.
Emmanuel Macron está tratando de não perder influência no Líbano depois do revés da França na Síria. Está tentando se afiançar no Oriente Médio, especialmente no Levante, e o Líbano sempre foi um território prioritário. Na região, a política exterior francesa perdeu isso tudo frente a hegemonia estadunidense, iraniania e turca, as raízes francófonas semre foram o trampolim privilegiado da França, porque representa uma hegemonia cultural e colonial.
Há libaneses que desaprovaram a visita, talvez simpatizantes de Hezbollah e de outros grupos. A entrada em cena na qual Emmanuel Macron se apresenta a si próprio como um salvador e dá conselhos de bom governo ao pessoal político ao dizer que dará ajuda financeira às ONGs e não ao governo poder ter sido mal recebida.
Emmanuel Macron reuniu os políticos na Residence des Pins [a atual residência do embaixador francês no Líbano], o qual é um pouco impactante. Parece um novo mandato que se afiança a nível simbólico.
Suponhamos que a explosão teve lugar no aeroporto de Beirute ao lado de Danieh [o subúrbio do sul de Beirute, predominantemente xiita] e o presidente do Irã chega com a mesma retórica e a mesma encenação. Seria impactante. Por que seria impactante para um iraniano e não para um francês? Este é exatamente o efeito do espírito colonial. Na imaginação libanesa, para alguns libaneses, é a França a qual protege. Porque a França é um país que, por questões culturais, nos remete ao mandato francês.
O que lhe pareceu a caminhada do presidente francês em Beirute?
A visita de Emmanuel Macron teve lugar num bairro cristão onde a arquitetura é colonial. Este bloco de casas com pubs representa a Beirute europeia. A forma de vida é completamente diferente ali que em Dahieh.
Nesse bairro, o povo falava num francês impecável. Também deu sua coletiva de imprensa em francês, todos os jornalistas presentes fizeram perguntas em francês, nunca em árabe. A transmissão desta conferência foi em francês e não houve tradução direta para o árabe.
Representa os interesses da França para preservar um Líbano francófono. Não se trata somente de ajuda humanitária, de reformas. É o apoio a um Líbano imaginário que se vê a si mesmo como um Líbano europeu. Por isso, parte de sua coletiva de imprensa se centrou na cultura e em ajudar às escolas e universidades de língua francesa.
Há alguns meses, a França laica ofereceu 15 milhões para as escolas de idioma francesa no Líbano, que são esmagadoramente cristãs, mas não financiou a escola pública. Não se trata somente da política de Emmaneuel Macron, mas da representação do Líbano em relação à França, mas também em relação à Europa.
Para aqueles que sentem nostalgia do mandato francês, cabe assinalar que qualquer debilidade no setor público no Líbano não nos remete necessariamente à guerra civil libanesa mas também à época do mandato francês. Fizeram investimentos muito pobres no setor público, especialmente em instituições educativas. Entregaram a educação a missionários e ainda está se pagando o preço. Agora vêm com dinheiro, não para as escolas públicas, mas para as escolas de língua francesa. Isso cria uma divisão entre os francófonos e os que não falam francês, e também é uma divisão de classes. Assim que dizer que a França está aí para ajudar as instituições públicas libanesas e os libaneses, não me convence. Não é tão simples. Se falamos de um estado público, deve estar a serviço de todos os libaneses.
O que opina da petição pedindo que o Líbano volte a estar sob mandato francês?
Desesperados, milhares de libaneses assinaram uma petição pedindo que o Líbano voltasse ao protetorados francês. Os libaneses estão muito cansados deste sistema e têm razão, a explosão teve um grande impacto. Não devemos julgar sua reação, mas questioná-la à luz de uma imaginação colonial que acreditaria que o mandato francês beneficia a todos os libaneses.
Refere-se ao papel da França no Levante, no Oriente Médio. Necessitam esta ancoragem para reforçar certo neocolonialismo, não necessariamente militar mas cultural.
Graças a que parte dos libaneses estão muito cansados, sentem nostalgia do mandato francês. Entretanto, é um mandato que construiu infraestruturas para servir à economia francesa e não à libanesa. Se olhamos as infraestruturas da época, estas são infraestruturas, como a rua de Damas, que serviram a uma burguesia financeira mercantil libanesa que trabalhou com os franceses e que fez do Líbano um lugar do capitalismo global a serviço do capital e do capital francês, não da sociedade libanesa. Temos uma memória muito seletiva em relação a este mandato. Além disso, sempre chamamos isso o “mandato” e nunca pronunciamos a palavra “colonialismo” porque sempre existe esta construção que afirma uma visão cultural do mandato quando o Líbano sob o governo dos franceses.
As consequências da visita de Emmanuel Macron poderiam ser muito perigosas porque corre o risco de reforçar esta polarização cultural no Líbano entre os que amam a França, “os que amam a vida” e os que amam o Irã, “os que amam a morte”. Depois de 2005 e o assassinato de Rafic Hariri, tivemos um novo discurso muito perigoso no Líbano que dizia: há dois campos no Líbano, em 14 de março e em 8 de março [que se referem a duas coalizões políticas libanesas, em relação à Alianza de 14 de março e Alianza de 8 de março]. O campo de 8 de março ama a morte e o campo de 14 de março está formado por pessoas que amam a vida, Beirute, os pubs. Pagamos caro este discurso.
Hoje, apesar de que Emmanuel Macron diz que fala com os libaneses, fala com alguns deles, especialmente através da escola e da cultura. Não se dirigiu aos libaneses através do estado público. Nem todos os libaneses falam francês; nem todos os libaneses vão a escolas francófonas, nem todos os libaneses vão à embaixada para obter uma bolsa e estudar na França; e nem todos os jornalistas falam francês. Emmanuel Macron será em parte responsável pelos cismas que nos ameaçam nos próximos meses.
Jamil Mouawad é professor e pesquisador da Universidade Americana do Beirute.