FONTE: CADTM | 13/08/2020 | TRADUÇÃO: Charles Rosa
As e os ativistas da rede internacional CADTM nos inteiramos com grande emoção da catastrófica explosão que afetou Beirute na terça-feira, 4 de agosto. Com este comunicado queremos expressar nossa plena solidariedade com as e os libaneses que sofrem há tantos anos esta injusta cadeia de crises criminosas que agora está chegando a seu paroxismo. Acreditamos que também é importante apontar as responsabilidades políticas e quem tenta aproveitar-se da situação; e mais ainda, tentar identificar as pistas que permitiriam ao país sair deste círculo vicioso.
A verdade sobre as causas precisas da explosão, neste 4 de agosto a uma da tarde, de 2750 toneladas de nitrato de amônio no porto de Beirute tomará algum tempo para se estabelecer, se é que alguma vez se logra. Entretanto, o que esta catástrofe, que no momento de escrever este artigo causou a morte de mais de 158 pessoas e as lesões de mais de 6000, demonstra claramente até que ponto o Estado libanês se encontra numa forma avançada de desintegração. O Primeiro Ministro do país do cedro falou de “negligência”. Contudo, esta negligência, que é inclusive literalmente criminosa, é sobretudo a do governo e sua própria alta administração gangrenada pelo clientelismo e da corrupção. É também a dos governos que se sucederam à frente do Líbano desde o final da guerra civil (ainda que os homens no poder hoje de fato já o estavam então) e obviamente a dos diversos partidos e milícias de todo o país. O Líbano vai mal, muito mal, e as elites políticas locais têm uma grande responsabilidade nesta situação, como é óbvio para todo o mundo. Mas esta responsabilidade é também a das potências regionais e mundiais, as instituições financeiras internacionais (Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial) e os bancos privados.
Uma situação local mantida pelo jogo das potências internacionais
O desastre deste início de agosto se produziu sobretudo no contexto da intensa crise econômica que atravessa o país há vários meses. E esta se inscreve num contexto político problemático durante várias décadas. O Líbano é um país magnífico, de fronteiras milenares de várias culturas e religiões. Esta mescla cultural e religiosa é, como em todas as partes, uma fonte de enorme riqueza cultural e social. Esta mesma mescla e diversidade étnica e religiosa frequentemente explode e amplifica nos jogos políticos dos poderes estabelecidos. Mostra disso é a guerra civil que eclodiu o país de 1975 a 1990. O fim da guerra não significou o fim do hábito das potências internacionais de tratar de tirar proveito das tensões interconfessionais. Esquematizando um pouco de maneira aproximada, historicamente, a Arábia Saudita e seus aliados (e atrás dela os Estados Unidos) e em menor medida a Turquia são os apoios dos partidos sunitas, Irã e Síria dos partidos xiitas (liderados pelo célebre Hezbollah) e a França (e mais discretamente Israel) dos partidos cristãos. Cada um apoia e os utiliza para fazer avançar seus peões nesta região estratégica a nível geopolítico e econômico.
No Líbano, esta organização em torno de confissões religiosas define toda a política. As e os eleitores somente podem votar por candidaturas que compartilham sua confissão (real ou suposta por nascimento) e não na localidade onde vive o ou a votante mas na qual nasceu. Este sistema favoreceu o estabelecimento de um clientelismo estrutural de enormes proporções. Até tal ponto que não é exagerado dizer que a maior parte da classe política libanesa trabalha quase exclusiva e abertamente por seus próprios interesses sem se preocupar pelos da população a qual se abandona a si mesma na maioria dos terrenos da vida cotidiana: o fornecimento de energia elétrica é caótico, a gestão dos serviços de ônibus em Beirute é deixado para distintas milícias, ou bem a particulares que têm miniônibus, a (não) gestão de resíduos foi tema de grandes manifestações em 2015, as comunicações têm preços elevadíssimos, os projetos para construir uma linha de trem do sul ao norte do país são adiados constantemente apesar da congestão permanente das estradas e de haver planos preparados há muito tempo. Nos postos da administração e no funcionalismo público, a norma é o amiguismo político e o nepotismo.
Nem é preciso dizer que neste contexto, a “boa gestão dos orçamentos públicos” é um conceito que somente existe nos discursos dos políticos. Estes se utilizam sobretudo para enriquecer aos representantes locais e para enriquecer ainda mais às grandes fortunas privadas. O centro de Beirute, ao redor da Place de l’Étoile, com seus edifícios vazios construídos com subvenções estatais e úteis somente para a especulação imobiliária privada, é o símbolo por excelência desta colusão de interesses entre titulares de poderes públicos e privados. Entre 2005 e 2014, o 1% mais rico se apropriou de 23% das rendas e 40% da riqueza patrimonial pessoal total no Líbano, enquanto os 50% “mais pobre” repartiam entre si a metade da renda do 1% mais rico. O movimento de protesto popular libanês começou em 17 de outubro de 2019, desafiando todo este sistema de desigualdades, exigindo a saída de toda a classe dominante, a condenação dos funcionários corruptos e o estabelecimento de uma economia baseada na justiça social. Segue tentando manter-se na rua apesar da excepcional situação sanitária vinculada ao Covid-19 e à repressão. O movimento lança palavras de ordem anticonfessionalistas e denuncia a ditadura dos bancos. O movimento de protesto popular retomou depois do desastre de 4 de agosto de 2020 e conseguiu a renúncia do governo em 10 de agosto 2020. Mas o povo quer mudanças reais e profundas.
Uma economia ultrafinanceirizada baseada numa montagem financeiro instável
O país que alguma vez foi chamado a “Suíça do Oriente Médio” baseou sua economia no setor financeiro em detrimento dos setores privados. A balança comercial do país é muito deficitária há muito (o que implica uma soberania alimentar muito precária) e a economia depende em grande medida dos dólares que envia a enorme diáspora libanesa pelo mundo (8 bilhões de dólares em 2018). Sobre a base desta aportação, o setor bancário estabeleceu uma verdadeira pirâmide de Ponzi. Os bancos privados compram, graças à liquidez enviada pela diáspora, os títulos de dívida nacional, estendidos em libra libanesa, beneficiando-se de taxas de juros muito vantajosas outorgadas pelo Banco do Líbano (BDL) que encontrava neste sistema de forma de financiar os orçamentos públicos que eram no essencial dilapidados pelos governos, como dissemos mais acima.
Este sistema de financiamento do Estado por e para as finanças privadas levou à acumulação de uma dívida pública insustentável que representou, em 2019, 170% do PIB (com cerca de 40% desta dívida denominada em dólares). O edifício foi derrubado paulatinamente sob a desaceleração do fluxo de importações de dólares graças à guerra na Síria e à fratura do sistema financeiro a nível mundial, assim como à fuga de capitais organizada pelas grandes fortunas do país. Terminou colapsando por completo com a crise econômica e financeira que acompanhou o coronavírus quando as consequências socioeconômicas já eram consideráveis (há alguns meses se estimava que cerca de um terço da população vivia com menos de 4 dólares por dia, que o desemprego era de ao redor de 25% e inclusive alcançava 37% se considerada a população menor de 25 anos). Os libaneses se viram privados de suas poupanças e pensões e o Estado não pôde financiar nada, nem sequer o pagamento de sua dívida (o país se encontrou em suspensão de pagamentos ante os eurobônus com vencimento em março de 2020, o que acentuou ainda mais a asfixia do sistema bancário).
Quando a crise econômica e humanitária alcançava níveis sem precedentes no país, nem sequer durante a guerra civil e os bombardeios israelenses, foram novamente os jogos políticos internacionais os que frearam a ajuda do exterior. A maioria dos partidos políticos se debilitaram depois dos protestos populares e somente Hezbollah, utilizando sua posição dominante como a milícia mais armada do país para fustigar as pessoas que se manifestavam, conseguia manter seu poder. A partir daí, estava fora de discussão que os Estados Unidos, Arábia Saudita, Turquia, Israel assim como a França e o restante da UE, ajudaram ao país neste contexto. Pelo contrário, os Estados Unidos estavam bem tratando de aproveitar esta crise para exercer a máxima pressão sobre Hezbollah privando-o (e com ele ao restante do país) da chegada de liquidez, com o objetivo de causar danos ao Irã em sua estratégia regional. Quanto ao Irã, que se encontrava numa posição difícil devido às repercussões econômicas tanto do fortalecimento do bloqueio estadunidense como do coronavírus que está golpeando muito forte o país, tampouco foi capaz de proporcionar uma assistência adequada. As potências internacionais que durante décadas haviam utilizado Líbano para seus próprios interesses, lhe deixavam sua sorte no pior momento possível.
Neste contexto o Banco Mundial outorgou, em abril, um primeiro empréstimo de 120 milhões de dólares ao Estado libanês para financiar seus gastos em saúde. O FMI, sempre disposto a reagir ante este tipo de situações, também se fez passar pelo salvador dos libaneses ao propor um empréstimo de 10 bilhões de dólares ao governo. Evidentemente, como é habitual na instituição de Bretton Woods, esta oferta de entrega de liquidez esteve acompanhada de um plano de ajuste estrutural (PAE), dito de outra forma, de um pacote de reformas para liberalizar ainda mais uma economia já extremadamente financeirizada.
Por uma verdadeira ajuda internacional e por reformas que realmente sirvam aos interesses dos libaneses
Desde terça passada, ante o verdadeiro cataclismo que golpeou ao povo de Beirute e que logicamente comoveu aos povos do resto do mundo, os governo de todo o mundo multiplicaram as promessas de ajuda humanitária. O presidente francês inclusive foi a Beirute para pronunciar um discurso abertamente neocolonialista às pessoas do antigo protetorado francês que, por seu lado, lhe pediu que deixasse fossa de jogo às elites políticas apoiadas pela França. Se a explosão de 4 de agosto afetou naturalmente à cidadania de Beirute em primeiro lugar, todo o povo libanês está a ponto de sofrer também as consequências. De fato, foi destruído o porto, que é a principal porta comercial do país (60% das importações passavam por este porto, inclusive 85% dos cereais importados) que tem todas suas fronteiras terrestres cortadas pela guerra na Síria e o conflito com Israel, igual que grande parte do distrito financeiro. Assim, toda a economia libanesa está no chão. Se o povo havia perdido já suas poupanças e pensões e o custo de vida havia disparado, 250 000 pessoas se encontram agora sem lar e milhões ficaram sem renda.
E não é preciso esquecer que o Líbano é um país no qual 1 de cada 4 habitantes é refugiado. Ainda que os dados não são exatos, calcula-se que junto a 4,5 milhões de pessoas libanesas há mais de 1,5 milhão de pessoas refugiadas sírias e mais de 500 000 palestinas, por falar somente dos grupos mais importantes. Igualmente é preciso considerar a enorme quantidade de pessoas migrantes que vivem no país, trabalhando em condições lamentáveis, particularmente as trabalhadoras domésticas. A todas estas pessoas a crise atual golpeará com maior força ainda.
Portanto, é óbvio que a ajuda internacional é indispensável, tanto em termos de ajuda humanitária de emergência como para a reconstrução a meio e longo prazo. Também é muito claro que o poder local já não pode estar nas mãos da gente responsável deste desastre, mas que deve ser devolvido à “sociedade civil”, ou seja, à população, que deve poder gerir as instituições do país em interesse de todos e todas. Esta ajuda deve ser uma ajuda real e, para isso, deve tomar a forma de doações, apoio médico e alimentar e o fornecimento de experiência logística (em particular para a reconstrução do porto, hospitais e infraestrutura essencial) e não em forma de empréstimos. E as grandes reformas imprescindíveis para o país (exigidas pelo movimento popular) são as que permitirão uma gestão democrática e eficiente do país, não as oferecidas (com grande insistência) pelo FMI e que conduzirão a um aumento ainda maior das desigualdades econômicas e uma economia não menos dependente das finanças, como ocorre sistematicamente em todos os países que seguem seus planos de ajuste estrutural.
Portanto, pedimos uma ajuda internacional genuína em forma de doações e cancelamento de toda a dívida libanesa e não em forma de novos empréstimos que não farão sem impedir a reconstrução do país a longo prazo.