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O Observatório Internacional traduziu dois artigos sobre o movimento democrático que eclodiu na Tailândia nos últimos. Confira abaixo:

Estudantes lideram nova onda de protestos por democracia na Tailândia

FONTE: Green Left | 13/08/2020 | TRADUÇÃO: Charles Rosa

A Universidade Thammasat em Bangkok tem um lugar icônico na longa história de lutas a favor da democracia na Tailândia. Em 10 de agosto, milhares de estudantes se manifestaram no campus, na maior de uma série de protestos massivos dirigidos por estudantes. Foram levados a cabo na maioria das cidades importantes desde uma manifestação de 18 de julho frente ao Monumento à Democracia.

A administração da Universidade de Thammasat se desculpou por permitir que a manifestação fosse realizada em seu campus.

Segundo um comunicado emitido em 11 de agosto, os organizadores do ato pediram permissão para realizar a mobilização para impulsionar três demandas: emendas constitucionais democráticas, a dissolução do governo e o fim da intimidação dos críticos do governo.

Entretanto, durante a manifestação, os manifestantes se comportaram e falaram “mais além dos limites permitidos, particularmente sobre temas delicados e sensíveis aos sentimentos do público em general”, segundo a universidade.

Essas referências foram a críticas abertas aos privilégios da monarquia.

Seguiram declarações sinistras de membros do regime respaldado pelos militares, argumentando que o protesto da Universidade havia “ofendido os direitos e sentimentos de dezenas de milhões de tailandeses leais à instituição real”.

Isso despertou dolorosas recordações do massacre da Universidade de Thammasat em 1976, quando o exército tailandês cercou o campus e permitiu que os paramilitares de direita torturaram e assassinaram brutalmente os manifestantes estudantis. Além disso, a desculpa que foi dada pelas atrocidades foi que os manifestantes estudantis haviam ofendido a monarquia.

O socialista tailandês Giles Ji Ungpakorn vive no exílio desde que foi acusado de lesa-majestade (insultar o monarca) por um livro de 2006 que criticava o apoio da monarquia tailandesa a um golpe militar. Ele afirmou a Green Left:

“As razões pelas quais os estudantes começaram a reviver os protestos a favor da democracia é que esta nova geração viu que pressionar por reformas dentro do sistema parlamentar não tem funcionado. Os partidos de oposição e os políticos foram eliminados pelos tribunais controlados pelos militares. A junta estava e segue utilizando descaradamente COVID-19 como desculpa para tratar de proibir os protestos. Qualquer um que fale é intimidado por agentes de segurança e os exilados políticos em países foram assassinados por esquadrões da morte militares. Além disso, a economia é um desastre e os jovens veem poucas esperanças para o futuro. De fato, compartilham estes sentimentos de ira e frustração com mais da metade da população adulta. A diferença é que os jovens não compartilham o medo que é comum entre os ativistas mais velhos que passaram pela repressão militar. Não se trata somente de estudantes universitários. Os estudantes secundaristas, frequentemente de escolas de elite, estão se unindo. Os ativistas LGBT participaram como Ativistas LGBT contra Junta”.

Embora a última rodada de protestos começou a se organizar em torno do hashtag #FreeYouth, houve uma mudança recente para o uso de #FreePeople num convite deliberado para atrair outros setores da população.

“Até agora, a avanço mais significativo é o estabelecimento de ‘Free People’”, disse Ungpakorn.

“O objetivo é expandir o movimento à classe trabalhadora para além dos estudantes e dos jovens. Tem três demandas principais: deixar de intimidar os ativistas, reescrever a constituição e dissolver o parlamento. O povo está farto das eleições fixadas, os senadores designados e o sistema de ‘democracia tutelada’ desenhado pelos militares em geral. Desde que o advogado ativista Anon Numpa se pôs de pé e apresentou uma série de críticas ao rei tailandês Whachiralongkorn, a ira subjacente sobre o comportamento e a arrogância do novo ‘rei idiota’ saiu à luz. O povo está enojado com a leis que impedem que a monarquia seja submetida a críticas e responsabilidades. Está enojado porque o rei passa seu tempo em seu harém na Alemanha e mudou a constituição para lhe permitir fazer isso mais facilmente. Estão enojados porque mudou a constituição para trazer toda a riqueza associada com a monarquia sob seu controle centralizado. As demandas adicionais do protesto massivo da Universidade de Thammasat em 10 de agosto refletem um sentimento de que a monarquia deve ser reformada e seus privilégios cortados. Caso aumente o sentimento antimonárquico, serão debilitados os militares, que utilizam o monarca de vontade débil como ferramenta política. Também ajudará a que a república seja mais provável. Entretanto, nunca devemos esquecer que as repúblicas também podem ser opressivas e, justo depois da Segunda Guerra Mundial, a Tailândia foi governada por uma ditadura militar antimonárquica na forma do marechal-de-campo Phibun. O Exército e sua ditadura parlamentar segue sendo o principal inimigo da democracia tailandesa”.

“O movimento não deve super-estimar o poder do rei”, agregou Ungpakorn, “porque em realidade, tem muito pouco poder”.

Peter Boyle é militante do Green Left, um partido socialista autraliano.

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“Vocês despertaram um gigante adormecido”

FONTE: NY Times | 17/08/2020 | TRADUÇÃO: Charles Rosa

Vocês despertaram um gigante

O letreiro de um estudante no protesto dizia: “Sem Deus, sem reis, somente homem”. Outro dizia: “Vocês despertaram um gigante adormecido”.

Esses manifestantes se encontravam entre as mais de 10 000 pessoas que no domingo assistiram a um ato de uma hora no Monumento da Democracia, que foi construído para comemorar o fim da monarquia absoluta na Tailândia em 1932.

Um estudante de 19 anos da Universidade de Ramkhamhaeng, que é conhecido pelo sobrenome de Joy, sustentava uma mensagem escrita a mão: “Devolva-nos a democracia”.

“Não temos mais remédio do que sair”, disse. “Este governo tem que ir embora”.

Foi o protesto de maior envergadura e mais audaz até agora desde que uma junta militar derrubou o último governo eleito democraticamente em 2014.

Estudantes como Joy querem mudanças: querem um exército subordinado aos funcionários eleitos, uma monarquia subordinada à Constituição e uma nova Constituição que proteja o governo da maioria.

Através de canções de rap afiadas, saudações de “Jogos Vorazes” e memes de Harry Potter, nos campi universitários ou nas ruas, os manifestantes pedem a renúncia do governo e uma reforma democrática sistêmica.

Tais demandas podem parecer óbvias, mas são notáveis na Tailândia dado os riscos de abrir a boca, especialmente contra a monarquia: a “lei de lesa-majestade” estabelece uma pena de até 15 anos de prisão, e a junta que tomou o poder em 2014 – e acredita-se que depois manipulou as eleições gerais do ano passado para manter o poder com um verniz de legitimidade – utilizou outras leis, como a lei de delitos cibernéticos, para sufocar a dissidência.

Este momento é diferente de qualquer outra na história recente da Tailândia. Uma nova geração de ativistas passou de expressar críticas codificadas contra a monarquia a pedir publicamente uma reforma total.

E esta onda de ativismo sem rodeios está provocando pavor e advertências – ou mesmo ameaças? – de outra repressão: as forças de segurança tailandesas mataram manifestantes a favor da democracia em 1973, 1976, 1992 e 2010.

Talvez fosse inevitável que no final do reinado de 70 anos do rei Bhumibol Adulyadej em 2016 significasse uma revisão da ordem política de seus dias, no qual o palácio, o exército, a burocracia e os tribunais afirmavam ter um veto sobre a autoridade política, não importando a vontade popular.

Durante o ocaso do governo do rei Bhumibol, se repetiram os conflitos entre as forças do establishment e a representação majoritária.

Os eleitores elegeram primeiro-ministro ao empresário Thaksin Shinawatra em 2001; foi derrubado pelo exército em 2006. A irmã de Thaksin, Yingluck, foi eleita em 2011. Seu governo foi deposto em 2014 num golpe de estado encabeçado pelo general reformado Prayuth Chan-ocha, quem é hoje primeiro-ministro.

Os generais ou seus representantes promulgaram em 2017 uma Constituição que cimentou o governo da elite. O primeiro-ministro não necessita ser um membro eleito do Parlamento (e o Sr. Prayuth não o é). O Senado é designado, não eleito, e se encheu de apaniguados eleitos pela junta. Facultou-se ao Judiciário para disciplinar aos políticos.

Desde que sucedeu a seu pai Bhumibol, o rei Maha Vajiralongkorn Bodindradebayavarangkun, que passa a maior parte de seu tempo na Alemanha, pediu que a última Constituição fosse modificada para facilitar seu reinado desde o estrangeiro, e tomou o controle direto dos grandes ativos da família real, assim como o mando sobre as unidades do exército baseado em Bangkok que foram fundamentais para levar a cabo golpes de estado no passado.

A junta, por sua vez, estendeu seu mandato ao celebrar eleições em março de 2019, assegurando-se de superar isso, em parte graças à desqualificação de alguns candidatos e a redistribuição de cadeiras depois da votação.

O incipiente Partido Futuro Avante apresentou um novo desafio às elites tradicionais, ao se apresentar numa plataforma que advogava pela ruptura dos monopólios, a descentralização do poder e a eliminação dos militares da política. O partido ocupou o terceiro lugar na recontagem de votos populares, ganhando 6,2 milhões dos 36,2 milhões de votos computados, muitos dos quais votaram pela primeira vez.

Mas, no início deste ano, a Corte Constitucional dissolveu Future Forward por motivos legais que grupos de direitos humanos qualificaram de duvidosos. Os líderes do partido enfrentam acusações criminais que poderiam enviá-los para a prisão por anos.

O surgimento e dissolução de Future Forwar ajudou a politizar uma nova geração criada no Facebook, Twitter e a música pop sul-coreana. Os protestos contra o governo começaram a ganhar impulso no início deste ano. As medidas de bloqueio para fazer frente ao coronavírus frearam os protestos, mas com o desempenho comparativamente bom do país nessa frente e o levante das restrições desde o início de julho, os manifestantes regressaram com força, com importantes queixas e demandas radicais.

Uma cartaz no protesto em Bangkok no domingo dizia: “A situação é tão ruim que até os introvertidos estão aqui”.

Os manifestantes mais jovens condenam a embrutecedora hierarquia econômica e social da Tailândia; querem por fim ao que alguns chamam “feudalismo”. Denunciam o padrão duplo de um sistema que mima os ricos e bem relacionados.

No domingo, uma mulher de 50 anos sentada junto à barreira que separa a multidão do cenário preparado para os oradores disse: “Por que estes generais são tão ricos? Tudo o que fazem é enganar. Deveriam estar na prisão”.

A extrema concentração do poder político também levou a uma extrema concentração de riqueza. No topo da pirâmide oligárquica da Tailândia se encontra o Gabinete de Propriedade da Coroa, que administra as propriedades e investimentos da família real, uma fortuna estimada entre $50 bilhões e $60 bilhões e desde meados de 2018 sob a supervisão direta do rei. Segundo um informe de Credit Suisse, em 2019 em 1% da Tailândia possuía em 50,4% da riqueza total do país.

Inclusive antes da pandemia, as rendas haviam se estancado e a pobreza, a dívida e a desigualdade estavam aumentando. Depois, em final de maio, a unidade de planejamento do governo estimou que até 14,4 milhões de pessoas, num país de ao redor de 69 milhões, poderiam estar sem trabalho para o fim do ano, principalmente devido à pandemia.

Os 500 000 estudantes que se graduarão da universidade neste ano enfrenta o pior mercado laboral em décadas. As estatísticas do governo publicadas na segunda-feira mostram que o produto interno bruto da Tailândia para o segundo trimestre de 2020 caiu 12,2% interanual: o pior desempenho do país desde a crise financeira asiática de 1997-98.

As pessoas que agora exigem a mudança necessária enfrentam os riscos reais. Os críticos do governo são assediados e intimidados de forma rotineira. Os dissidentes no exílio desapareceram, foram sequestrados ou assassinados.

Tanto os partidários como os críticos dos protestos citam uma possível repetição do massacre de 6 de outubro de 1976, na qual as forças de segurança e os paramilitares de direita dispararam lincharam e mataram dezenas de estudantes que protestavam pela democracia na Universidade de Thammasat.

Então, como nos últimos tempos, a direção militar disse que os ativistas eram comunistas. O chefe do exército disse que pessoas que “odeiam sua nação” e são uma enfermidade pior que o Covid-19.

Neste ponto, somente uma repressão massiva poderia por um freio às demandas de reforma emitidas nas últimas semanas; por outro lado, o derramamento de sangue provavelmente seria contraproducente para as autoridades. Em 1976, o massacre de 6 de outubro incitou milhares de estudantes a unir-se aos rebeldes comunistas na selva.

Os estudantes hoje pedem mais a responsabilização das autoridades perante a lei do que a abolição da monarquia como a abolição da monarquia.

Os realistas respondem com argumentos forçados: sobre a fidelidade a uma cultura tailandesa supostamente imutável, sobre o mérito karmico do poder, sobre a necessidade dos jovens conhecerem o seu lugar.

Sua incapacidade para sufocar a dissidência poderia permitir que se rompa por completo o antigo tabu contra a crítica da monarquia. Mas a repressão solaparia ainda mais a legitimidade da ordem existente.

De qualquer maneira, por falta de uma reforma política real, a potência ideológica do monarquismo na Tailândia somente pode se ver comprometida, talvez de maneira irreversível.

Tom Felix Joehnk é um jornalista e economista que mora em Bangkok. Matt Wheeler é analista sênior para o Sudeste Asiático no International Crisis Group.

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