Via Insurgência
A entrada do Brasil em uma “segunda onda” da Covid-19 e a divulgação dos resultados dos ensaios das vacinas mais avançadas em seus desenvolvimentos recolocam a questão de qual é a agenda alternativa da esquerda para enfrentar a pandemia, que está escalando para níveis inéditos pelo mundo. Enquanto alguns governos prometem a vacina para janeiro ou mesmo para dezembro deste ano, o grupo de especialistas do governo inglês alertou para o risco de “ter um feliz Natal e então enterrar seus amigos e parentes em janeiro e fevereiro“; o Ministro da Economia da Alemanha disse que o país ainda tem pelo menos cinco meses de restrições.
O que os dados indicam é que a pandemia está mais forte do que nunca: em 25 de novembro são quase 60 milhões de casos oficiais pelo planeta, com 1,4 milhões de mortes – 258 mil nos EUA, 170 mil no Brasil e 134 mil na Índia, todos governados por líderes de extrema direita. No período de 10 a 16 de novembro houve, na média diária, mais de 575 mil casos e 8.866 óbitos. Às mortes se somam as sequelas em milhões de pessoas, por vezes terrivelmente incapacitantes. Onde a pandemia se agrava, governos têm que recorrer, em algum nível, a lockdowns, que afetam de forma diferenciada os países, regiões e cidades, ramos econômicos e setores da população. Mas ao mesmo tempo, as vacinas começam a ser validadas pelos ensaios clínicos e acirra-se a disputa comercial e geopolítica pelo que está em jogo, sem consideração pelos problemas do que certamente será a maior, mais concentrada e mais estratégica campanha sanitária da história.
Um acontecimento tão central exige que coloquemos em perspectiva não mais sua origem – já sobejamente localizada na forma como os sistemas alimentares capitalistas predam outras espécies de seres vivos, produzindo saltos viróticos entre as espécies -, mas sim sua dinâmica e as disputas políticas que gera.
As respostas à Covid-19: como manter os negócios abertos e não acumular mortos?
A pandemia da Covid-19, que golpeou a China em janeiro, se espalhou pelo mundo um mês depois e chegou ao Brasil em março – há tão somente de oito meses, portanto -, catalisando uma crise maior da sociedade moderna.
Mas a Covid-19 parece ter se tornado objeto de um debate rotineiro sobre a administração de uma “abertura” gradual da economia compatível com a manutenção de um “platô” de casos até a chegada da vacina salvadora, que permitiria retomar a “normalidade”. Esta banalização da maneira como lidamos como a pandemia é uma derrota política para a esquerda. As discussões que colocam o tema em uma perspectiva mais ampla vem sendo gradativamente substituídas, nos governos e na mídia, por debates sobre o quanto a curva estaria se achatando ou sobre qual seria e quando chegaria a vacina salvadora. Isso representou o enquadramento do problema pelas duas alternativas em disputa no seio do mundo empresarial.
As duas políticas em disputa são: manter os negócios intocados, que gerariam empregos e precisariam ser salvos para tirar a economia capitalista da recessão em que ela é hoje jogada, não importando o custo em vidas humanas; ou priorizar a preservação das vidas, garantindo algum atendimento médico, para melhor viabilizar os negócios a médio prazo. Na verdade, na maior parte dos casos, as duas políticas convergem em uma só, buscando combater o fechamento das atividades econômicas e estabilizar a crise social pela “retomada econômica” mantendo um patamar mínimo de distanciamento social – exceto nos casos em que novos “picos” exijam um lockdown para evitar que corpos se amontoem.
O número de óbitos no Brasil foi caindo de mais de mil por dia de junho a agosto para cerca de 400 por dia nas duas semanas passadas, mas isso ainda equivale à queda de dois “boings” todos os dias, atingindo particularmente os mais vulneráveis. Os 170 mil mortos que já registramos não parecem mais despertar indignação! E agora o número de casos e contágios volta a crescer e as mortes subiram para uma média de 500 por dia na última semana. Fala-se na chegada de uma “segunda onda” no país – como se a primeira tivesse passado.
No marco desta banalização da pandemia, mesmo a esquerda anti-sistêmica parece submissa ao estreitamento do horizonte imaginativo aos marcos liberais e acometida pelo “estresse” do período de convívio com a Covid-19. Aceita-se a hegemonia da classe capitalista e seus dilemas, como se eles fossem os de toda a sociedade, como se isolamento ou “normalização dos negócios” fossem possíveis para a maioria da população de um país como o Brasil. Pouco se debate, mesmo com as oportunidades de discussão com toda a sociedade aberta pelo processo eleitoral, a pandemia que enquadra, sobredetermina e dá sentido a toda a ação política na atualidade.
Esta não é somente uma pandemia, mas uma sindemia em uma manifestação e escala inéditas na modernidade – em que os problemas sanitários e as estruturas de desigualdades econômicas, sociais e psíquicas interagem e se agravam mutuamente. Se as providências para se evitar as mortes e a rapidez com que se desenvolvem vacinas apontam para ganhos e soluções modernas para o problema da pandemia, ela também evidencia os impasses dessa modernidade capitalista. E para além de seu impacto direto, este processo tem que contabilizar inúmeras vítimas de outras enfermidades que estão sendo descuidadas; campanhas de vacinação que não estão sendo realizadas; problemas de saúde mental em uma escala vastíssima; o crescimento da violência doméstica contra mulheres e crianças em ampla escala; perdas na educação de centenas de milhões de crianças que não tem acesso ao ensino remoto, etc. A sindemia evidencia um curto-circuito na reprodução social!
A pandemia também catalisou e alavanca uma vasta recomposição do capitalismo, com dimensões não só econômicas, mas sociais, políticas e ambientais. Como afirma Robert Boyer, “um terço da capacidade de produção revelou-se não ter nenhuma utilidade social ‘indispensável’. Alguns setores são afetados por uma mudança estrutural nos padrões de consumo (turismo, transporte, aeronáutica, publicidade, indústria cultural, etc.) e pelo colapso das redes de subcontratação e o desaparecimento de diversos pontos na cadeia de valor”. Sob diferentes formas de governamentalidade neoliberal, consagra-se globalmente a transição das estruturas produtivas fordistas e toyotistas para uma economia das plataformas digitais que agrega muito pouco valor, demanda um nível de qualificação mínimo para a maioria dos que nela trabalham e gera poucos ganhos de produtividade, mas que segue transferindo enormes rendas para o capital financeiro.
A pandemia como portal
A Covid-19 galvanizou processos profundos em curso na sociedade, alguns com mais vigor, outros com menos. Entre eles estão:
– as fragilidades da globalização neoliberal, suas cadeias globais de produção e sua hipermobilidade com a popularização da aviação comercial, em paralelo à interdependência ecológica da humanidade e a necessidade de políticas globais para gerí-la;
– as transformações geopolíticas derivadas do deslocamento do centro dinâmico do capitalismo do Atlântico Norte para o Leste da Ásia e da ascensão da China como potência capaz de disputar a hegemonia do sistema-mundo capitalista com os EUA;
– as tendências à estagnação da economia capitalista como um todo, vigentes desde a crise de 2008, ao lado da expansão dos grandes monopólios digitais tanto norte-americanos como chineses, que se tornaram o centro dinâmico da acumulação mundial;
– a aceleração da precarização e uberização do trabalho e agora também da difusão do trabalho remoto e da conectividade digital em escalas colossais;
– a crise social já latente nas desigualdades galopantes, agora escalando com o desemprego entre os trabalhadores menos qualificados, e a busca desesperada por se manter as precárias fontes da renda popular e o acesso aos serviços fundamentais;
– a centralidade da reprodução social sobre uma produção cada vez mais supérflua, com a visibilidade da opressão e do protagonismo das mulheres e das populações racializadas, em um mundo simultaneamente de abundância e injustiça;
– a centralidade do Estado e da gestão do comum, em especial dos sistemas de saúde, seguridade social e garantia de renda frente a uma sociedade de mercado cada vez mais caótica;
– o crescimento da consciência da crise ambiental, que agora remete não só mais ao uso dos combustíveis fósseis e à necessidade da transição energética, mas também ao sistema alimentar industrial, origem da crise pandêmica e fonte da destruição de biomas estratégicos do planeta (como a Amazônia…) e ao consumo ligado à hipermobilidade e à descartabilidade;
– a necessidade de se garantir a vida e as necessidades humanas fundamentais, frente à superficialidade do modo de vida consumista e ao ritmo inumano que a concorrência a ela associada impõe a todos, um modo de vida agora questionado pela paralisação de muitos setores da atividade mercantil;
– uma discussão do reordenamento dos territórios e, em especial, do espaço urbano e da organização das cidades – objeto, nos países centrais, de iniciativas visando reduzir o caos sistêmico (como os modais de transportes…);
– a constatação da ausência de um sistema multilateral de organizações internacionais que coordenem de forma mais eficiente os problemas globais.
A pandemia pode ser o gatilho para a discussão ampla de todos estes processos, permitindo que se discuta a organização da sociedade capitalista contemporânea em seu alcance. A metáfora apresentada por Arundhati Roy, que coloca a pandemia como um portal para vários outros mundos, faz, assim, todo sentido.
Mesmo com todo enquadramento e encurtamento da discussão para os marcos ideológicos hegemônicos, a pandemia vem impactando a estrutura de valores e as visões de mundo liberais. Leva ao questionamento:
– do individualismo exacerbado e à revalorização de variados laços, associativos, familiares e comunitários;
– da narrativa do mundo como um grande mercado autorregulado por seres humanos reduzidos a consumidores; e
– de uma história resolvida, fechada ao novo e ao imprevisível.
E a pandemia também recolocou em outro patamar a percepção do lugar estratégico da interseccionalidade e seu agenciamento internacionalista que já estava em curso em 2019 (lutas ecológicas, feministas, antirracistas, dos povos indígenas), destacando seu papel de afiançador da vida democrática (do Chile à Polônia, dos EUA à Amazônia).
Qual agenda política para a pandemia e para a vacinação?
A resposta à pandemia precisa, hoje, estar no centro toda a política que quer mudanças estruturais no mundo. Mas isso exige a ruptura com a inércia do senso comum – isto é, sua subordinação aos parâmetros estabelecidos pela narrativa liberal – e explicitação de uma posição antissistêmica.
O debate travado por pessoas como Bruno Latour, Naomi Klein, Mike Davis e Rob Wallace, apenas para mencionar algumas dos nomes mais conhecidos, vem se esvaziando no Brasil. Com exceção de Maíra Matias e Raquel Torres, a esquerda daqui não vem dando o destaque que que a questão exige – bem como ao tema correlato da emergência climática. Isso tem que ser revertido rapidamente.
1. O ponto de partida é evidenciar a razão da existência da pandemia: o mundo globalizado da hipermobilidade física, a estrutura do sistema alimentar capitalista – em especial na criação de animais – e a destruição em um ritmo avassalador dos últimos biomas ainda relativamente preservados. O salto virótico entre as espécies e as epidemias vem escalando nas últimas décadas e tudo indica, mantido este sistema, que novas pandemias continuarão ocorrendo. Este é um trabalho de educação política que toda esquerda deve realizar em sua propaganda. No caso do Brasil, isso significa apresentar o agronegócio e a pecuária, o neoextrativismo e a globalização estabelecida como os grandes inimigos de toda a população brasileira, pilares que sustentam a extrema direita nestas terras.
2. A questão imediata que temos que garantir é o funcionamento e aprimoramento do sistema de saúde pública – no Brasil a grande conquista que foi o SUS e que vem sendo atacada pelo fundamentalismo neoliberal, buscando privatizá-lo. Significa também defender a ciência, garantir verbas públicas para a área da saúde e defender os trabalhadores do setor contra o furor neoliberal das políticas de contenção de gastos.
3. Mas garantir a vida da população é também garantir que tenha condições materiais de sobreviver à crise social que de avoluma, materializadas em políticas públicas de proteção e cuidado de tod@s. Isso é antes de tudo a garantia da renda cidadã universal, condição indispensável para que a vida das massas se torne menos precária e dispositivo central do sistema de seguridade social. Mas também a garantia das condições de trabalho e educação remotos – inclusive equipamentos e garantia de acesso à banda larga em todo o sistema de educação pública.
4. Precisamos incidir fortemente nas políticas sobre o desenvolvimento, fabricação e uso das vacinas. As potências centrais buscaram privatizar e controlar seu desenvolvimento, transformando-a em peão do jogo geopolítico e o Brasil se subordinou a isso. Há novas vacinas de RNA mensageiro (Pfizer, Moderna…), que começam a mostrar uma alta eficácia potencial, mas há também as duas vacinas que serão produzidas no Brasil: a da Astrageneca-Oxford (em parceria com a Fiocruz e o governo federal) e a da Sinovac (em parceria com o Butantã e o governo estadual de São Paulo). Há ainda uma quinta vacina que já emerge como importante no tabuleiro mundial, a Sputnik V, desenvolvida pelo Centro de Pesquisas Gamaleya da Russia.
Mas, entre o estágio atual (os testes de fase 3) e uma vacinação de massas, ainda há um caminho bastante complexo: algumas vacinas serão caras, há enormes problemas logísticos e levará tempo para se vacinar a população, particularmente em países carentes de estruturas públicas – uma coisa é vacinar um bilhão de pessoas nos países ricos, outra é vacinar 7,8 bilhões. Isso pode ser alterado pela:
– atuação da Covax Facility, um consórcio internacional coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em parceria com outras entidades, que promove acordos multilaterais que acelerem a produção e distribuição de uma vacina contra a Covid-19;
– chegada de mais alternativas ao mercado de vacinas, como elementos não apenas da Big Pharma, mas também do jogo geopolítico;
– acordos de solidariedade e cooperação internacional para financiar aquela que será, de longe, a maior e mais intensa campanha de vacinação da história; e, finalmente, por
– eventuais quebras de patentes por países que possam fabrica-las (improvável no atual mapa de acordos de colaboração).
Finalmente, a estrutura de distribuição das vacinas estabelece um enorme desafio logístico, porque exige unidades de ultra refrigeração. O Brasil até tem condições potenciais melhores do que a maioria dos países para responder a isso, por conta da existência do SUS e de instituições como a Fiocruz e o Butantã, mas isso exigirá muita política pública. A disputa sobre o tema foi, até agora, entre Bolsonaro e Dória!
5. É necessário romper a dicotomia entre normalidade e isolamento social. Nenhuma sociedade, qualquer que seja sua forma social, pode ficar indefinidamente paralisada por meses e anos. A pandemia coloca em questão justamente a estrutura estabelecida de necessidades e prioridades, rompendo com o senso comum liberal, que as pessoas devem se virar. Não, as pessoas não tem que se virar; é a sociedade que deve se auto-organizar coletivamente para suprir as necessidades fundamentais de tod@s. Um grande número de atividades rotineiras mas não essenciais, que implicam a aglutinação de pessoas, deve ser proscrita por tempo indeterminado, mas uma renda digna deve ser garantida para toda a população. Nossa vida é comunitária e não a auto-organização individual na competição de tod@s contra tod@s e o estado é o afiançador democrático disso, redistribuindo rendimentos e recursos e intervindo sobre as estruturas de necessidades criadas artificialmente pelo mercado. Este é o combate ideológico fundamental que toda liderança de esquerda deve fazer!
6. É preciso compreender que distanciamento social é diferente de isolamento social, que deve ser restrito a parcelas extremamente vulneráveis da população e apoiado por políticas públicas. Quando a pandemia começou e lockdowns foram decretados, a esquerda confundiu as duas coisas e não saiu para mobilizar a população com empregos informais – que não podia manter-se em lockdown por muito tempo sem o apoio das políticas públicas. Mas a luta do Black Live Matter nos EUA mostrou que essa mobilização de rua é o elemento fundamental da alteração da correlação de forças. Aqui foi somente a eleição municipal que forçou a esquerda a se confrontar com esta questão – saindo à rua para disputar voto!. A lição precisa ser assimilada: cuidado, na maior parte dos casos, é distanciamento social e uma alteração de comportamentos e práticas, possível nos setores mais conscientes da população. Mas o poderes públicos devem ser pressionados para alavancar a conscientização e para priorizar, antes de tudo, a defesa da vida.
A pandemia continua sendo, para a esquerda, a grande oportunidade para romper com a inércia do senso comum liberal, que naturaliza a vida mercantil. Esta porta está aberta, mas não continuará assim por muito tempo!