Hoje é dia mundial da água, muito além de uma postagem romântica sobre a óbvia importância da água em nossas vidas, é fundamental entender que estamos longe de termos segurança hídrica no Brasil.
No país das contradições a água é mais uma delas. Somos o país com a maior reserva de água do mundo, 12% da água doce do mundo está aqui, enquanto 35 milhões de brasileiros ainda estão sem acesso ao serviço básico de água [1]. Nas capitais as crises hídricas estão se tornando mais frequentes e os rios urbanos estão mortos.
As relações sistêmicas à segurança hídrica também vêm sendo ignoradas. Os focos de queimadas da Amazônia atingiram patamares recorde no último ano.
Os discursos em torno da alocação da água também têm se limitado a interesses de mercado, desconsiderando valores sociais, como o valor da água para povos originários.
Sem esquecer da pandemia, em que uma das medidas fundamentais é lavar as mãos, enquanto as favelas enfrentam a falta de garantia ao acesso à água.
Lavar a mão para conter o Covid? A falta de Saneamento Básico
Lavar a mão, medida básica e fundamental, ainda não é uma realidade para todos os brasileiros. Essa pauta voltou à tona durante a pandemia com diversos vídeos compartilhados por comunidades de favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo em que relatava um instável recebimento de água, passando dias sem abastecimento.
O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) foi atrás de descobrir o que acontecia nas favelas. Depois do tratamento, a água é bombeada para reservatórios, e então distribuída para as diversas localidades. Essa operação é conhecida como “manobra da água”. A manobra é realizada segundo a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) e não há água suficiente para abastecer todas as casas ininterruptamente. Então, uma das regiões como o setor “novo” do Complexo do Alemão depende da “manobra”para que chegue até a casa dos moradores. Por isso, alguns dias a água vai para algumas localidades, e não chega para todos.
Apesar de áreas mais altas demandarem bombas mais potentes, é curioso que a falta d’ água não atinja bairros nobres. Universalizar o acesso à água e ao saneamento foi usado como motivação para as mudanças nas leis de saneamento no ano passado.
Do desmonte à privatização do saneamento básico
Em julho do ano passado tivemos um retrocesso político com o “novo marco do saneamento” como ficou conhecida a aprovação da lei nº 14.026. No Brasil já havia a participação do setor privado nos serviços de saneamento, entretanto cabia aos municípios a decisão final sobre como seria realizado, podendo assim decidir entre a concessão a uma empresa privada dos serviços ou não.
O novo marco tende a facilitar a realização de licitações para a competição da concessão dos serviços de saneamento. Com os baixos repasses aos municípios para investir em saneamento não é muito difícil de adivinhar que o setor privado terá facilidade de ganhar as licitações. Acontece que um grande número de municípios brasileiros é deficitário no quesito de saneamento básico, isso significa que a tarifa cobrada aos usuários não cobre as despesas, assim o setor privado possivelmente tenderá a concentrar esforços nos sistemas lucrativos
A lei consolida um cenário em que cidades como a capital do Rio de Janeiro que tem um sistema lucrativo deverá ter grande concorrência em licitações, e gerarão um bom dinheiro para o bolso dos empresários, enquanto os pequenos municípios deficitários tendem a ter seus serviços sucateados ficando a encargo dos baixos repasses públicos. O desmonte do setor que vemos agora fomenta o discurso para a privatização integral dos serviços de saneamento no futuro. A narrativa já estará pronta: “os serviços prestados pelo setor privado são de melhor qualidade” enquanto se mascara o processo de sucateamento dos serviços públicos de saneamento.
Amazônia em fogo e o Brasil em seca
Apesar da Agência Nacional de Água e Saneamento (ANA) estar fazendo um trabalho épico e aquém do resto do governo, incluindo pautas de gênero e criando diálogo com a sociedade, sozinha ela não consegue construir uma segurança hídrica para o Brasil. Aquele clichê que a água se relaciona com tudo é realidade. Existem várias interfaces, como as florestas que atuam na manutenção do clima e dos regimes de chuvas, e que estão longe do poderio da ANA.
A floresta Amazônica através da evapotranspiração, bombeia água para atmosfera e forma essa grande massa úmida que devido ao volume expressivo de água ficou conhecida como “rios voadores”. Através das correntes de ar os rios voadores levam umidade para as regiões centro-oeste, sudeste e sul do Brasil e propiciam a ocorrência de chuvas nessas regiões.
Os focos de queimadas na Amazônia bateram o recorde em 2020. O ex-presidente do INPE, Ricardo Galvão, foi exonerado do cargo por divulgar os dados de desmatamento. O ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, incentivou abertamente a passar a boiada na floresta. A lista é enorme de medidas políticas na contramão de garantir a segurança hídrica que depende da Amazônia em pé.
A preservação da Amazônia também é fundamental para evitar os efeitos das mudanças climáticas e sabe porque precisamos nos preocupar com as mudanças climáticas? Pois é, por causa da água também.
O futuro incerto da água: Mudanças Climáticas
O aumento da temperatura do planeta faz com que os ciclos hidrológicos acelerem: mais calor, mais rápido a água evapora e com mais energia disponível, mais intensas serão as tormentas, tornados e tempestades quando acontecerem.
As previsões do IPCC, Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU, demonstram que as regiões centro-oeste, sudeste e sul do Brasil tendem a vivenciar períodos de estiagens mais longas com as mudanças climáticas. Como se não bastasse a perda de umidade e diminuição de chuvas por conta dos desmatamentos da Amazônia, essas regiões ainda tem mais esse agravante no quesito hídrico.
Segundo a ONU ainda, até 2030 a demanda por água deve subir em 40% com o aumento populacional e mudança nos hábitos de consumo e que somadas às mudanças climáticas devem aumentar a ocorrência de crises hídricas. Entre as cidades apontadas como possíveis de enfrentar uma nova crise está São Paulo.
Crises hídricas não são um problema de falta de chuva
“Falta de chuva”, “seca”, “estiagem” são essas palavras que tomam conta dos títulos de jornais em épocas que vivenciamos crises hídricas no Brasil. Afinal, é “mais fácil” ou até mesmo “mais oportuno”, acusar os fenômenos climáticos ou o São Pedro do que acusar a ineficiência da gestão na criação de segurança hídrica urbana.
Períodos de estiagem mais intensos tendem a configurar os cenários de crise hídrica, entretanto o modo que estamos ocupando a cidade, impermeabilizando o solo, destruindo as margens ciliares, canalizando rios, construindo em áreas de morros e em áreas de nascentes têm grande influência na garantia local de água.
A gente já tem ciência da alta probabilidade de vir ocorrer novos períodos de estiagem, o que precisamos trabalhar é em uma mudança radical na nossa relação com a água urbana e evitar ao máximo criar mais obstáculos artificiais no ciclo natural da água.
Desvalor da água e a água como mercadoria
Cerca de 80% da água que chega em nossas casas retornam aos rios após o tratamento de esgotos (quando ocorre o tratamento do esgoto, apenas 63% da população é contemplada). Entretanto, o consumo de água é muito além do líquido que chega nas nossas torneiras.
O maior consumo de água no Brasil é pela agricultura, correspondendo a cerca de 70% da água retirada dos rios [2]. Além da maior consumidora, é a segunda maior fonte de poluição dos nossos rios. A poluição proveniente da agricultura é formada principalmente por agrotóxicos e excesso de fertilizantes.
A água usada pela agricultura é diferente que a usada em casa. Na agricultura retorna para o rio apenas aproximadamente 20% do volume que foi captado. Essa água vai incorporar os alimentos. Uma laranja, por exemplo, é composta por aproximadamente 90% de água.
Além da água que compõe os produtos e alimentos, muita água é usada que fazem parte dos processos de lavagem e limpeza indústrias. Toda essa água que fica “escondida” é chamada de água virtual.
A ANA está apostando na implementação da cobrança pela água como medida de conscientização principalmente para os setores de maior consumo: agricultura e indústria. Entretanto, qual é o valor correto para água?
Valores culturais não estão sendo considerados na cobrança d’água. Ailton Krenak comenta sobre isso em seu livro Ideias para mudar o mundo:
“O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo que alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo.”
A água se manifesta como temos tratado o meio ambiente
Muito se tem falado sobre mudanças climáticas, queimadas, preservação do meio ambiente, e tudo isso tem uma centralidade fundamental que é o fato de que sem água a gente não vive. A água não vai acabar no planeta, é um sistema fechado, mas todas as interferências que temos feito faz com que ela não esteja mais disponível nas áreas que mais precisamos. Estamos perdendo água o tempo todo. A gente já conhece o ciclo da água, agora tá na hora da gente trabalhar em consonância com ele.
[1] http://www.tratabrasil.org.br/saneamento/principais-estatisticas/no-brasil/agua
[2] http://conjuntura.ana.gov.br/