Fonte: Última Hora – 27/04/2018 – Tradução: Charles Rosa
Tem a casca de uma melancia partida pela metade, incrustada na cabeça como se fosse um capacete militar. As faces e os olhinhos alucinados delatam a aparência jurássica do rosto e, com ela, a impressão genética de um ditador. A bandeira colorada amarrada no pescoço proporciona outra pista, se falta fizesse. A camisa que suporta a barriga mostra uma inscrição em português, o lema positivista da bandeira do Brasil: Ordem e progresso. Tem assim duas insígnias fundidas em sua pele. Na mão esquerda porta um pedaço de tacuara, no meio do caminho entre o garrote e o fusil. Na direita se oculta um estilingue. No fundo, recortado contra o céu azul, se pode ver uma desbotada paisagem rural. Mais para lá, a família nuclear parece sentir-se segura com o garroteiro brasileirista como guardião de seu modesto portão. Mas as crianças têm outro tipo de felicidade: duas olham o céu, como se estivesse saindo do lenço, enquanto uma infla uma bola com o chichete e outra devora um pancho. O terceiro coça o traseiro, enquanto seu rosto se deforma numa careta que recorda um pouco a algum ser demoníaco de El Bosco. Debaixo deles, no piso, há víveres. Alguns poucos víveres envoltos em polietileno.
A pintura de Fidel Fernández (San Juan Bautista del Ñeembucú, 1984), cujo título é a divisa brasileira, faz parte da mostra Políticos a todo color que esteve em exposição até a última terça-feira no Centro Cultural Citibank em Assunção. É uma pena que foi desmontada (e também uma coincidência sinistra) dois dias depois que o filho do secretário particular de Alfredo Stroessner, Mario Abdo Benítez, tenha se tornado presidente (por uma margem estreita e entre alegações de fraude). Talvez ainda possa ser montado noutro lugar, talvez ao ar livre.
O conjunto de obras de Fernández é o retrato, entre o paradoxal e realista, da classe política paraguaia, à direita e à esquerda (ainda que em geral tudo provenha das marcas culturais da direita vernácula). A série pictórica recorda um pouco a pena de Rufino Villalba, que em Tipos y caracteres (1911) criticou, denunciou e se riu da “classe política” local (e de outros atores sociais, como funcionários públicos, assessores e até jornalistas).
Mas esse quadro, em particular, encerra significações repetidas ao longo dos últimos setenta anos no país. O coloradismo atávico, a influência brasileira, o desejo de um tipo de segurança paternalista e autoritária, o assistencialismo e inclusive a fuga de (e até) a infância como metáfora de felicidade política, tudo está ali, de modo complexo, como caracteriza a impressão de Fernández.
Desde 1989, a historia da política uruguai está marcada pelo mimetismo político – não por isso menos protagônico – dos herdeiros de Stroessner. Luis María Argaña foi o porta-voz e líder que aqueles elegeram uma década, até seu assassinato. Com seu ocaso, famiglias stronistas não voltaram a encontrar alguém que encarnasse – com certa cintura, ilustração e “modernidade” – as competências políticas (e econômicas) daquelas. Nem Osvaldo Domínguez Dibb, nem Alfredo Goli Stroessner, nem nenhum outro conseguiu o que Mario Abdo Benítez, tres décadas depois, conseguiu. O Brasil verá também com agrado nostálgico o filho de um velho aliado de sua elite conservadora sentado na cadeira dos López. E o garrotero do quadro já vela na porta.