o momento em que escrevemos este artigo os acontecimentos se precipitam.
Após Lenin Moreno decretar o Estado de Exceção (04/10), o mundo acompanha boquiaberto as mostras de heroísmo do povo equatoriano, num processo que vem sendo chamado “Revolución de los Zánganos”1 (“Revolução dos Zangões”). Vale recapitular o que já ocorreu no Equador nesta semana:
Na segunda-feira, 7 de outubro, com medo das crescentes manifestações, o governo de Lenín Moreno transferiu a capital para Guayaquil. Em uma breve comunicação televisiva, ladeado pela cúpula das Forças Armadas, o presidente equatoriano pediu “calma” à população e acusou Nicolás Maduro e Rafael Correa de estarem por trás de um “golpe de estado”. Essa típica cena de falência política, nítido sintoma de fraqueza, denunciou a força da rebelião que está sendo fermentada nas ruas e barricadas no país andino.
Na terça-feira, 08 de outubro, uma gigantesca marcha indígena chegou a Quito e centenas de manifestantes ocuparam a sede da Assembleia Nacional por algumas horas. A resposta do governo foi decretar um toque de recolher em torno dos prédios público. À noite, Lenín Moreno, durante entrevista a uma TV local, sinalizou aceitar a mediação da ONU e da Igreja Católica, embora não cogite abrir mão do “paquetazo” que transbordou a revolta. A OEA e os governos conservadores do Grupo de Lima manifestaram apoio a Moreno.
Na quarta-feira, 09 de outubro, uma greve geral em todo o país uniu diversos setores populares, com o protagonismo dos indígenas2 organizados na Conferedación de Nacionales Indígenas del Ecuador (CONAIE). Informes caracterizam a situação do país à beira da emergência alimentar, por conta dos bloqueios de estradas que impedem a circulação de alimentos e combustíveis em diversas províncias. Mais de 700 manifestantes já foram detidos e/ou feridos e duas mortes por repressão policial são confirmadas.
Lideranças do movimento denunciam a infiltração de agentes estatais para gerar vandalismo e saques. À noite, quando o movimento indígena se retirava para descanso em Quito, a Polícia Nacional atacou covardemente seus acampamentos. Oito agentes policiais foram retidos pelos indígenas e só serão liberados com a libertação de todos os manifestantes presos até agora.
Na quinta-feira, 10 de outubro, o movimento indígena realiza uma assembleia durante o funeral dos manifestantes mortos. A decisão é de radicalizar a greve geral, com a tomada de poços e instalações petrolíferas no oriente equatoriano. A procuradoria-geral apresentou denúncia de sedição contra deputados ligados a Correa.
As próximas horas serão decisivas para o rumo do país. O dever da esquerda é cercar de solidariedade internacional o processo com medidas práticas e repercutir a luta pela saída de Lenin, pelo fim da repressão e pela libertação dos presos políticos. Ou seja, é nosso dever apoiar com afinco o triunfo desta alvissareira rebelião popular.
Um pacote neoliberal sob medida do FMI
O Equador voltou a viver um cenário que lhe era bastante comum nas décadas passadas. As ruas do país estão marcadas por conflitos. O presidente LenÍn Moreno decretou estado de Emergência por 60 dias, podendo ser renovados por mais 30 dias. O vulcão do movimento de massas equatoriano, fiel às características naturais do país, volta à tona, saindo do estado de hibernação. É tempo de revolta.
Em 1 de outubro, Lenin Moreno anunciou um pacote de medidas impopulares, obedecendo uma exigência do FMI para continuar emprestando dinheiro ao país. Desde fevereiro deste ano, o organismo financeiro mais odiado pelos povos sul-americanos voltou a ter ascendência sobre o Estado equatoriano, após o acerto de uma linha de crédito emergencial no valor de 10 bilhões de dólares. Hoje, a dívida externa pública corresponde a 36% do PIB equatoriano. Em contrapartida, Lenin Moreno prometeu ao FMI cortar despesas e investimentos do governo, além de realizar reformas laborais e tributárias que intensifiquem a exploração do trabalho no Equador.
A medida do “paquetazo” mais rechaçada pela população foi o corte do subsídio estatal aos combustíveis (uma cifra equivalente a 1,8% do PIB anual). Isso significa na prática a liberalização dos preços do gasolina e do diesel, após 40 anos de auxílio público. Da noite para o dia, os equatorianos passaram a pagar 123% a mais pelos combustíveis, gerando um efeito em cascata nos itens da cesta básica e nos serviços de transportes. Evidentemente, esse neoliberalismo de choque envolve também a crise internacional dos preços do petróleo. O Equador anunciou que vai deixar a OPEP(Organização dos Países Exportadores de Petróleo) a partir do ano que vem, a fim de ampliar a produção de petróleo para 545 mil barris por dia.
Outras pontos controversos do “austericídio” cometidos Lenin Moreno são: o corte salarial de até 20% em contratos temporários no setor público; a redução de 30 para 15 dias nas férias dos empregados públicos; aporte de um dia de salário mensal dos empregados públicos para o fisco. Ontem, em meio aos protestos, a Agência Nacional de Transportes elevou a tarifa urbana do transporte público em 40%.
Um histórico de rebeliões
Lenín Moreno parece ter caído na ilusão neoliberal de que as revoltas e revoluções populares são assuntos restritos aos livros de história. Um erro fatal, ainda mais num país onde as rebeliões populares explosivas são eventos tão recorrentes quanto as traições de seus líderes. Desde a independência no século XIX, o Equador já contabilizou nada
menos que 19 Constituições e 38 processos de ruptura institucional. Mais recentemente, o que vem provocando a ira popular são as frequentes intromissões do FMI em sua economia.
O drama das contas públicas do Estado equatoriano remonta ao governo de Osvaldo Hurtado Larrea (1981-84), quando dívidas privadas foram assumidas pelo Tesouro Nacional. Duas décadas de sucessivos ajustes fiscais, orientados pelo FMI/Banco Mundial, pioraram o nível de vida da população e massificaram a pobreza no país.
Como a luta de classes tarda, mas não falha, eclodiu um ciclo de rebeliões em contraposição às políticas neoliberais. Em 1990, durante o governo social-democrata de Rodrigo Borja, a CONAIE liderou um levante indígena que durou duas semanas e logrou alcançar o reconhecimento do Equador como estado plurinacional. Em fevereiro de 1997, seis meses após sua posse, o corrupto presidente Abadalá Bucaram Ortiz não resistiu à fúria popular e foi afastado pelo Parlamento por incapacidade mental. O presidente posterior, Jamil Mahuad, debilitou ainda mais a economia equatoriana, ao dolarizar a economia, além de ferir a soberania nacional com a entrega da base de Manta aos EUA. Em janeiro de 2000, novamente uma mobilização popular, com os indígenas na vanguarda, causaram a renúncia do presidente.
De 2003 a 2005, governou o coronel Lucio Gutierrez. Eleito em 2002 com o prestígio de ter enfrentado a tentativa de golpe de Mahuad em 2000 e com a promessa de realizar um governo de diálogo com os movimentos sociais, Gutierrez é outro notório traidor da história equatoriana. Desprezando os movimentos populares que possibilitaram sua vitória, Gutiérrez recolocou as oligarquias tradicionais no comando da vida política nacional, alinhou-se aos ditames geopolíticos de George Bush e assumiu a agenda econômica do FMI como programa de governo. Em 2005, um levante massivo em Quito empurrou as Forças Armadas e o Congresso a desfazerem esse lamentável mal-entendido, cassando o mandato presidencial.
Em 2006, foi a vez do economista Rafael Correa triunfar nas eleições presidenciais. Expressando o ascenso das forças populares construído durante a fase de grande instabilidade institucional e sincronizado com o auge do anti-imperialismo bolivariano, Correa assumiu o Palácio de Carondelet para um período que duraria 10 anos. Uma de suas primeiras medidas foi patrocinar uma auditoria cidadã da dívida pública externa, logrando renegociar em até 70% do montante. O abatimento da dívida significou triplicar os investimentos sociais que reduziram em até 40% a pobreza extrema no país. Apoiado nas massas e aliado a Chávez e Evo, o presidente Correa convocou também uma Constituinte com a qual foi possível aumentar a regulamentação do Estado sobre a economia bem como introduzir conceitos revolucionários como “direitos da natureza” na Carta Magna. Como nos descreve o companheiro Jorge Estrella em artigo recente:
“A Constituinte de Montecristi gerou uma década de estabilidade, impedindo mediante MANDATO CONSTIUINTE toda forma de precarização laboral; elaborou-se um mecanismo legal que permitiria a revogação da legislação neoliberal e desenhou um
Estado de bem-estar que consolidou seu acionar no controle do Estado sobre a economia, um forte sistema de controle da arrecadação, que permitiria garantir os gastos. Ao mesmo tempo, a reestruturação da contratação petroleira e o ingresso das regalias do setor permitiu que o 87% dos ingressos da exploração do petróleo fossem diretamente pro Estado e o 13% para as petroleiras. Eliminou-se o endividamento externo para financiar os gastos, e os ingressos das exportações destinaram-se para as contas de investimento em infraestrutura em geral, mudando a cara do país com novas estradas, escolas modernas, hospitais, universidades e um programa agressivo para a denominada mudança da matriz produtiva, mediante o envio de milhares de jovens a estudar em centros científicos do mundo inteiro.”
A orientação macroeconômica heterodoxa de Correa colocou-o em choque com o receituário do FMI. Em 2010, um motim de forças policiais, financiado pela diplomacia estadunidense, tentou derrubar Correa, porém o povo equatoriano saiu às ruas para garantir a continuidade do projeto correísta. Em 2012, o pedido de asilo diplomático de Assange na embaixada equatoriana em Londres é concedido, contrariando a pressão norte-americana. Em 2013, Correa é reeleito no primeiro turno com 57% dos votos, aproveitando-se de uma conjuntura econômica favorável com a qual pôde transformar o Equador no país sul-americano com a maior proporção de investimentos sociais em relação ao PIB.
Tão logo se manifestou o esgotamento do bolivarianismo e do velho progressismo na região, as contradições da “Revolução Cidadã” puderam ficar mais nítidas. No segundo mandato de Correa, os interesses das transnacionais passaram a ter maior ascendência sobre o governo, aumentando o nível de conflitividade com o movimento indigenista. A economia do país não resistiu à crise econômica global e entrou em recessão em 2016. Quando Correa instituiu um inédito imposto sobre terras e heranças em 2015, a reação das elites foi tamanha que a leitura dos dirigentes da Revolução Cidadã passou a ser que o país necessitava de uma liderança mais centrista. Assim, em 2017, o conciliador Lenín Moreno, apoiado por Correa, venceu o segundo turno presidencial por uma pequena diferença sobre o conservador Guillermo Lasso. Em poucos meses, Moreno passaria uma borracha nas relações com seu antecessor e daria início ao caminho sem volta da guinada à direita.
Cenário atual: o giro à direita de Moreno como parte do processo
Pactuando cada vez mais com as elites e os setores conservadores da sociedade, Lenín Moreno escolheu o correísmo como o principal adversário de seu governo. As revelações de corrupção da empreiteira Odebrecht foram utilizadas para perseguir judicialmente Correa (que precisou se exilar na Bélgica para não ser preso) e seus aliados. Em total desprezo ao caminho diplomático independente trilhado pela Revolução Cidadã, Moreno reativou a cooperação militar com os EUA e retirou o Equador da UNASUR. Além disso, rebaixou o prestígio internacional do país conquistado por Correa e entregou vergonhosamente o fundador do Wikileaks, Julian Assange, ao governo britânico, num dos comportamentos mais lacaios já registrados na história latino-americana
Do ponto de vista econômico, Moreno fez retornar a ortodoxia neoliberal ao país, arrochando os investimentos públicos, liberalizando o comércio, anistiando grandes sonegadores e desregulamentando os direitos trabalhistas. A pobreza deu um novo salto no país, atingindo 37% da população geral e 75% das populações indígenas. Em fevereiro de 2019, um empréstimo de 10 bilhões de dólares é anunciado pelo FMI e pelo Banco Mundial.
Neste cenário, a impopularidade de Moreno só pôde seguir uma trajetória de massificação. Em abril deste ano, a oposição denunciou um escândalo de corrupção (caso dos INA Papers) que envolveria a família de Moreno e uma companhia chinesa responsável pela construção de uma hidrelétrica no país na década passada, malfeito que teria movimentado mais de 18 milhões de dólares em off-shores na Suíça. Até o final de setembro último, a aprovação popular deste governo não chegava a 20% e sua base parlamentar era bastante débil (Governo: 51 cadeiras; Oposição: 86 cadeiras), após o cisma com o correísmo que liquidou o partido oficialista Alianza PAÍS. Neste contexto de isolamento, Lenín Moreno vendeu totalmente a alma ao FMI, ao empresariado e à grande mídia (esta última sedenta por vingança contra Correa que em 2012 aprovou uma Lei de Meios no país, procurando democratizar a informação).
O pêndulo e América Latina
A vitória de Bolsonaro no Brasil, há um ano, abriu muitas dúvidas no ativismo sobre qual dinâmica teríamos no continente. Apesar de ser o único presidente com viés protofascista, a agitação de uma frente do neoliberalismo duro se tornou recorrente. A reunião que a cúpula da extrema-direita realizou em Foz do Iguaçu após a vitória de Jair Bolsonaro buscava conectar pontes, sempre a serviço de Trump. Piñera no Chile e Macri na Argentina serviam de linha auxiliar para impor um novo ciclo duradouro de neoliberalismo, com uma dependência direta de Trump.
Naquele momento, apesar da inflexão reacionária no Brasil, alertamos que os governos de caráter neoliberal teriam muitas dificuldades em consolidar seus planos, sem impor derrotas de caráter histórico em cada um dos países. A tentativa golpista de Guaidó, apoiada por Brasil e Colômbia, foi derrotada no primeiro semestre. O cenário mudou desde então. Trump foi alvejado por contradições internas, Macri foi derrotado em toda linha, na vizinha argentina.
O Peru entrou na dinâmica de crises e conflitos. A tentativa da ala fujimorista de impor um golpe parlamentar foi enterrada pela combinação da ação do presidente Vizacarra, apoiado pelo povo nas ruas. A ascensão de novas forças à esquerda como a Frente Ampla chilena e Veronica no Peru, apontam uma dinâmica de crescimento das ideias de uma nova esquerda, socialista e democrática. No Paraguai, Marito Abdo sobreviveu por pouco ao escândalo do acordo secreto de Itaipu com o governo brasileiro. Na Colômbia, Iván Duque viu sua popularidade despencar em 1 ano de governo e o ex-presidente Alvaro Uribe está na berlinda judicial por seu envolvimento corrupto com as milícias paramilitares.
O desenlace da crise equatoriana vai interferir em cheio na relação de forças continental, com o protagonismo dos indígenas e dos setores populares. Junto aos processos eleitorais de Uruguai e Bolívia, vamos ter uma série de testes para onde vai dinâmica geral. O certo é que, dificilmente, teremos um novo ciclo estável de governos neoliberais como nos ´90.
No Equador se joga parte do futuro
Neste momento, acontecimentos decisivos marcam a rebelião em curso. Com Lenin Moreno em Guayaquil, acuado debaixo das barbas das oliguarquias mais parasitárias do Equador e da grande mídia que passa desenhos animados durante as manifestações, em todo país a greve geral é um êxito. O governo, ainda sustentado pela cúpula das Forças Armadas, cada vez mais desprestigiado, aponta a repressão como única saída possível.
Com o país paralisado, social e economicamente, a aliança entre os trabalhadores e indígenas atua sobre o povo todo. Com a conformação da assembleia do povo, tomada de diversos governos locais, a rebelião entra numa fase crucial. A se manter o fôlego das mobilizações em todo o país, apesar da forte repressão, o governo de Lenín Moreno pode estar com as horas contadas.
O papel da esquerda mundial é apoiar com toda força a movida do povo equatoriano. Por iniciativa de deputados do PSOL, foi aprovada na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional uma moção de repúdio a Lenin Moreno. Atos estão sendo chamados em frente aos consulados e embaixadas.
Estamos com o povo do Equador, vanguarda para derrotar o autoritarismo e o neoliberalismo.
1 O termo “zángano” (em português, “zangão”) é uma alusão a uma frase de Lenín Moreno ( “ acabou a ‘zanganería’”) ante as primeiras manifestações contra as medidas anunciadas em 01 de outubro. O termo tem duas acepções: uma abelha sob mando de uma rainha ou uma pessoa que não gosta de trabalhar. Logo, as redes sociais emplacaram a #YoTambiénSoyZángano.
2 A população indígena do Equador representa 7% dos 17 000 000 de habitantes do país.