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Nota do editor: Este artigo foi concluído pouco antes do assassinato de George Floyd, e nós adiamos a publicação para focar nossa atenção nos protestos em andamento que surgiram em resposta. No futuro, esperamos retomar a questão de como um partido de massa da classe trabalhadora poderia fazer avançar as lutas contra a brutalidade policial e pela justiça racial, em particular. Embora este artigo apresente vários exemplos positivos da campanha de Bernie Sanders, concordamos com muitos da esquerda que sua resposta às revoltas tem sido inadequada.

Nas últimas semanas, os socialistas têm publicado uma enxurrada de artigos tentando tirar lições da recente campanha presidencial de Bernie Sanders. Alguns escritores têm argumentado que a derrota da campanha mostrou que apoiar candidatos na lista eleitoral do Partido Democrata é um beco sem saída; outros têm argumentado que a campanha demonstrou o oposto. Outros ainda argumentaram que a campanha mostrou a necessidade de grupos como o Socialistas Democráticos da América (DSA) refinarem sua estratégia para formar um partido independente dos democratas.

Somos gratos pelas contribuições, e quisemos abordar o que consideramos ser uma questão fundamental subjacente a este debate: por que os socialistas deveriam se importar com os partidos? A resposta a esta pergunta é necessária para avançar a conversa em torno da campanha Sanders 2020 e para onde os socialistas devem ir a partir daqui.

Começamos argumentando que as duas campanhas presidenciais de Sanders foram passos gigantescos para a esquerda, porque encorajaram a organização e a confiança da classe trabalhadora a lutar por si mesma. A campanha de Sanders 2020 poderia fazer isso porque foi capaz de cumprir temporária e desigualmente algumas funções-chave que os partidos de trabalhadores de massa têm em outros tempos e lugares.

Estes sucessos – e limitações – sugerem uma direção para que a estratégia socialista avance: devemos trabalhar para construir um partido da classe trabalhadora de massa. Precisamos dele para aprofundar e ampliar o processo de organização da classe trabalhadora, recentemente iniciado pela campanha Sanders, e para ajudar a classe trabalhadora a ganhar confiança, poder e coesão prática para, em última instância, derrubar o capitalismo. Na segunda seção deste ensaio, discutimos por que um partido é necessário e abordamos brevemente as suas características essenciais.

Concluímos oferecendo sugestões iniciais de como os socialistas podem iniciar o processo de anos de construção de um partido desse tipo. Em vez de trabalhar para “realinhar” um partido onde os capitalistas já detêm todo o poder, os socialistas devem concentrar-se em tarefas de curto prazo que ajudem a lançar as bases para um futuro partido de massa. Não é coincidência que essas tarefas sejam também aquelas que ajudarão a construir a organização dos trabalhadores, a consciência de classe e a capacidade de conduzir a luta de classes em geral.

Campanhas de Bernie: um partido em miniatura

Em seu recente artigo, Charlie Post e Ashley Smith argumentam que a campanha de Sanders 2020 mostra que não devemos apoiar os candidatos democratas, mesmo com a esperança de forçar uma “dirty break”[1]. Concordamos que o movimento em torno de Bernie Sanders tem todo tipo de limitações, e que a estratégia da “dirty break” apresenta uma série de desafios e contradições. Mas isso não significa que os socialistas devam sempre evitar a linha de voto do Partido Democrata, ou que a campanha de Bernie tenha sido um desperdício de esforços. Post e Smith sugerem que a campanha de Sanders ameaça trazer “a esquerda para o rebanho de um partido capitalista, desviando ativistas da organização da resistência e para campanhas eleitorais para candidatos a quem de outra forma se oporiam”. Ao mesmo tempo em que essa cooptação é real, não é a história toda.

Acreditamos que o impacto positivo das duas campanhas de Sanders se deve à suas funções-chave para as quais têm servido historicamente os partidos de massa da classe trabalhadora. A campanha Sanders de 2020 recrutou um grande número de trabalhadores para uma campanha que adotou uma luta aberta contra os capitalistas. Financiada inteiramente pelos trabalhadores, a campanha construiu uma mídia nacional impressionante e organizando atividades, avançando um programa nacional abrangente para reformas de esquerda. Estas são algumas das tarefas importantes dos partidos de trabalhadores, e precisamente o tipo de atividades necessárias para construir um novo movimento de massa da classe trabalhadora.

Por causa da ausência de grandes instituições democráticas da classe trabalhadora, essas realizações da campanha foram intrinsecamente temporárias. Mas elas nos dão um vislumbre, aqui e agora, do que um futuro partido da classe trabalhadora poderia fazer permanentemente.

Vamos começar com alguns exemplos concretos de como as campanhas da Sanders desde 2015 têm incentivado o desenvolvimento da consciência e da organização da classe trabalhadora.

Impactos duradouros das campanhas
Mesmo céticos como Post e Smith reconhecem o papel de Bernie em inspirar a pequena mas potente onda de esforços eleitorais socialistas desde 2016. De fato, até certo ponto podemos atribuir o aumento historicamente pequeno, mas ainda significativo, da luta de classes nos Estados Unidos de 2015-2020 ao fato de Sanders essencialmente ter feito uma campanha permanente durante esses anos.

Marianela D’Aprile mostra como a campanha de Sanders 2020 impulsionou o DSA, e também está claro que dezenas de milhares não teriam se voltado para uma organização socialista democrática em 2017 se a campanha de Sanders 2016 não tivesse conquistado mais de milhões para suas políticas e seu título de socialista. Mas as campanhas têm tido um efeito ainda maior além do DSA e dos esforços eleitorais socialistas.

O outro fenômeno dos últimos anos com impacto social comparável ao das campanhas de Sanders é a onda de greve dos professores que começou em 2018. Milhões de trabalhadores foram tocados por essas greves, e centenas de milhares participaram diretamente. Mesmo que as greves não tenham apresentado um programa abrangente e tenham sido limitadas a um punhado de estados e cidades, elas muitas vezes apresentaram políticas de luta de classe e reivindicações solidárias, atacando explicitamente os bilionários e os políticos corporativos de ambos os partidos e provando que apenas os trabalhadores organizados têm o poder de lutar contra a privatização, a austeridade e a injustiça racial.

Com base em dezenas de entrevistas com participantes das primeiras grandes greves de professores em 2018, Eric Blanc mostrou no livro “Red State Revolt” [2] que a campanha radical de Bernie não só “capturou a imaginação” de centenas de milhares de eleitores nesses estados, mas inspirou os principais organizadores de greve. Enquanto a longa crise de austeridade na educação foi o que motivou diretamente as greves, os organizadores principais revelaram que a campanha de 2016 de Sanders ajudou a coesionar e treinar redes de ativistas progressistas que foram fundamentais na construção desse movimento. Inúmeros trabalhadores desses estados aprenderam com a campanha que, ao invés de confiar nos políticos corporativos do Partido Democrata, como muitos líderes sindicais aconselharam, eles só podiam confiar em si mesmos e no poder de uma classe trabalhadora organizada e unida. Como disse a líder de greve da Virgínia Ocidental, Nicole McCormick, “Bernie apresentou a política de classe de uma forma realmente acessível a muitas pessoas com quem trabalho”.

O testemunho direto de líderes-chave torna difícil acreditar, como argumentam Post e Smith, que a primeira corrida presidencial de Sanders “pouco fez para preparar [os professores] para iniciar, construir e liderar essas lutas”. É verdade que alguns líderes de greve foram educados nas experiências do Sindicato dos Professores de Chicago (CTU) e pela Labor Notes. Mas isso não significa que a campanha de Sanders 2016 não tenha contribuído tão bem, em primeiro lugar por inspirar os jovens radicais a se encontrarem. Por exemplo, dois dos futuros líderes da greve de West Virginia se encontraram quando se juntaram à DSA depois de serem ativistas da Sanders, e ali formaram um grupo de leitura para estudar as lições da greve de 2012 em Chicago. Mais uma vez, vemos uma maneira pela qual a campanha transitória assumiu uma função que um partido da classe trabalhadora assumiria permanentemente: servir como um lugar para os organizadores radicais se encontrarem e elaborarem estratégias juntos.

O impacto da campanha de 2016 foi além da organização no local de trabalho. O Sunrise Movement, a potente organização climática liderada pelos jovens, também tirou energia da campanha de 2016 da Sanders. Os líderes Sara Blazevic e Varshini Prakash disseram ao The New Republic que o Sunrise foi fundado no final de 2015, numa tentativa de “capturar um pouco do dinamismo da campanha Sanders” – sem dúvida inspirada pelo exército de jovens apoiando Sanders e sua plataforma climática anti-corporativa de esquerda – “e direcioná-la para os problemas ambientais”.

Embora ainda seja muito cedo para saber se a segunda campanha presidencial de Sanders teve impactos semelhantes, há bons sinais. Para começar, muitos “Estudantes por Bernie”, longe de serem cooptados para apoiar os democratas corporativos, juntaram-se ao DSA para anunciar publicamente que seus grupos universitários não endossariam Biden depois que Bernie desistisse. Ativistas dos “Estudantes por Bernie” de Connecticut ao Colorado, ao invés disso, têm lutado para defender a saúde, a segurança, a moradia e a remuneração de estudantes e trabalhadores do campus durante a pandemia.

Assim como os professores da Virginia Ocidental em 2018, os trabalhadores que se organizaram na campanha Sanders 2020 estavam bem posicionados quando a crise da COVID atingiu seus locais de trabalho. Enquanto seu sindicato estava relutante em sacudir a situação, os professores de base da cidade de Nova York usaram as redes e a liderança construída através de seu projeto “Educadores para Bernie” para ajudar a organizar e espalhar exigências para exigir que as escolas fossem fechadas. O sindicato e o distrito escolar sentiram o calor e concordaram em fechar as escolas mais cedo do que de outra forma teriam – salvando inúmeras vidas no que se tornou um grande epicentro do vírus.

Post e Smith descrevem o projeto Emergency Worker Organizing Committee (EWOC) como uma “iniciativa chave que pode ajudar a construir a resistência da classe trabalhadora diante da pandemia”. O que eles não mencionam é que o EWOC foi iniciado pelos principais ativistas da campanha da Sanders, e alcançou sucesso em parte graças às redes de membros da DSA que participaram da massiva campanha independente do DSA para Sanders. Steven Greenhouse descreve como os organizadores do EWOC trabalharam para encontrar “uma maneira de canalizar a energia insurgente [da campanha Sanders] para novas batalhas por justiça social”. Uma organizadora de trabalhadores do comércio que está sendo apoiada pelo EWOC disse à Greenhouse que a campanha Sanders a inspirou a se organizar em seu local de trabalho: “A percepção de que nosso poder coletivo pode desafiar a ganância corporativa e de que podemos vencer ajudou a tornar realidade a possibilidade de me organizar em meu próprio local de trabalho”.

Destes e de outros exemplos, fica claro que a campanha de Sanders fomentou a luta de classes além das urnas. Acreditamos que as campanhas de Sanders tiveram um efeito mais amplo na organização da classe trabalhadora porque, de forma limitada, mas importante, elas desempenharam algumas das principais funções que têm historicamente os partidos de trabalhadores. A seguir, apresentamos uma avaliação mais detalhada das características importantes da campanha de 2020 em particular. Esperamos que isto ajude a ilustrar concretamente o enorme valor estratégico de um partido para os muitos ativistas americanos que nunca tiveram experiência direta com um partido de trabalhadores.

Programa nacional e movimento abrangentes
Mais do que qualquer outro fenômeno da história recente, a campanha Sanders 2020 reuniu uma coalizão multirracial de classe trabalhadora em torno de um programa nacional abrangente de reformas de esquerda.

As organizações sem fins lucrativos se concentram em uma ou algumas questões, e os sindicatos se concentram principalmente nas demandas de seus membros (e, na melhor das hipóteses, nas demandas relacionadas aos círculos aliados). Em contraste, a plataforma abrangente da Sanders incluiu demandas que abrangem a gama de questões enfrentadas pelas pessoas da classe trabalhadora. Sua plataforma também era de âmbito nacional, ao invés de enraizada em um círculo eleitoral geograficamente limitado.

O que foi incrível na campanha da Sanders não é apenas o fato de ela ter defendido políticas radicais como Medicare for All, habitação social, um Green New Deal, o fim do sistema de pagamentos de fiança e o fim da dívida estudantil – é também o fato de Sanders ter defendido todas elas, e o ter feito em todos os lugares para onde a campanha foi. Igualmente importante, as várias bandeirasse uniram em uma narrativa abrangente da classe trabalhadora contra os capitalistas.

A campanha reuniu uma ampla gama de forças progressistas, incluindo sindicatos progressistas, DSA, Movimento Sunrise, Black Lives Matter e ativistas de justiça ambiental. As organizações sem fins lucrativos, sindicatos, celebridades e políticos que apoiaram Sanders o fizeram sob o risco de se alienarem do establishment do Partido Democrata, de doadores associados e da maior parte da burocracia sindical dos EUA. Essa confiança em uma política independente do establishment corporativo é exatamente o que será necessário em um nível muito mais alto se quisermos construir um movimento de massa da classe trabalhadora – um movimento que possa travar lutas massivas contra as corporações e os bilionários que financiam a mídia, os partidos Democrata e Republicano, e a maioria das organizações sem fins lucrativos.

Sanders arrecadou mais de 200 milhões de dólares de quase dois milhões de doadores para sua campanha de 2020. Enquanto ele era o favorito entre professores, enfermeiros e ajudantes, Sanders também era apoiado por um silencioso exército de trabalhadores mal remunerados e desorganizados que doaram para sua campanha. Dezenas de milhares de trabalhadores de grandes empresas não sindicalizadas como Amazon, Starbucks e Walmart doaram para a Bernie. Isto não é nenhuma surpresa, dada a forma como Sanders e suas campanhas têm lutado contra esses grandes empregadores ao lado e em nome desses trabalhadores e, em alguns casos, ganhando ganhos materiais reais. A campanha também apoiou os esforços de ativistas locais de todos os tipos que se mostraram apoiadores de manifestações e piquetes que nada tinham a ver com sua campanha.

O apoio entre trabalhadores com baixos salários, em sua maioria não sindicalizados, nos ajuda a ver os milhões em doações como servindo parcialmente à função que as contribuições dos associados teriam em um partido de massa: financiamento substancial independente dos grandes doadores capitalistas, que apoiam a organização de classe dentro e fora do local de trabalho que, sem os sindicatos, esses trabalhadores são, em sua maioria, incapazes de realizar, especialmente em nível nacional. Até novembro de 2019, 175 mil apoiadores haviam se inscrito para doações mensais para a campanha. (Para comparação, o antigo Partido Trabalhista britânico tem quase 600.000 membros pagantes de quotas).

Infra-estrutura material e aparato de propaganda de massa
Os milhões de dólares arrecadados pela campanha de pequenos doadores construíram uma operação de campanha maciça, com quase 1000 funcionários, mídias tradicionais e sociais e escritórios, organizadores, publicações e comícios em dezenas de estados. Centenas de milhares de voluntários aderiram à campanha oficial em todo o país.

Sanders teve um inovador programa de organização descentralizada, incluindo uma rede de membros de sindicatos (que ilustremente ajudaram a ganhar o primeiro caucus “satélite” de Iowa [4] e o caucus dos trabalhadores dos hotéis de Nevada), e os “Estudantes para Bernie”, lançados em 2019 com uma escola organizadora de verão de 1500 alunos.

O império de mídia da campanha merece atenção especial. Inúmeros funcionários trabalharam em propaganda, incluindo mídias sociais e vídeos curtos, belos anúncios na TV, um podcast brilhante e um boletim informativo. Como mostra este comovente artigo, a equipe de vídeo de Sanders estava empenhada em utilizar a plataforma de sua campanha para dar voz aos oprimidos e explorados de nossa sociedade. Sem um partido de massa nos Estados Unidos, não há outra organização interessada e capaz de manter este tipo de mídia em larga escala.

O escopo da campanha é em si um fator importante: ao mostrar que milhões de outras pessoas não só compartilham seus problemas como estão dispostas a lutar com você para resolvê-los, a campanha de Sanders inspirou mais participação e ajudou a corroer a resignação e desmoralização que normalmente mina a resistência coletiva de qualquer tipo.

Com o desmantelamento da infra-estrutura da campanha do Bernie, a esquerda não conseguirá atingir o mesmo público. Nós simplesmente não podemos alcançar milhões de pessoas diariamente se não tivermos pelo menos dezenas de milhões de dólares. E isso ainda seria pálido em comparação com o poder da grande mídia corporativa e dos grandes partidos.

Partidos de trabalhadores e formação de classe

Ao elevar as expectativas e trazer pessoas da classe trabalhadora para a luta sob um programa comum e uma organização comum, as campanhas de Sanders ajudaram a facilitar a formação da [consciência de] classe dos trabalhadores americanos.

A classe trabalhadora tem o interesse em transformar profundamente a sociedade e, em última instância, pôr um fim ao capitalismo – e tem o poder potencial para fazê-lo. Mas a maioria dos trabalhadores não pensará necessariamente em si mesmos como membros da classe trabalhadora, ou instintivamente agirá em conjunto com outros para promover seus interesses como trabalhadores. Nos termos de Marx, uma classe que existe em si mesma não se torna automaticamente uma classe autoconsciente para si mesma. Ou seja, as pessoas da mesma classe não pensam automaticamente em si mesmas como tendo interesses comuns e não têm automaticamente a capacidade de agir em conjunto pelo seu interesse comum. Eles têm que desenvolver essas habilidades através da luta comum. Isto é particularmente verdadeiro para a classe trabalhadora, que é exponencialmente maior e mais diversificada do que qualquer outra classe.

O fato de a formação de classes não acontecer automaticamente não significa que as pessoas da classe trabalhadora sejam ignorantes. Pelo contrário, é racional que os trabalhadores tentem avançar seus interesses como indivíduos, mantendo a cabeça baixa e trabalhando duro quando acreditam que não há alternativa. A formação de classes é o processo pelo qual os trabalhadores, ao invés de se pensarem somente em si, passam a lutar como um grupo, lutando para avançar em seus interesses coletivos.

Esta era a tarefa dos partidos de trabalhadores de massa dos séculos XIX e XX. Esses partidos convenceram os trabalhadores a se engajarem na luta de classes através da educação política e propaganda; reuniram trabalhadores e sindicatos de todo tipo, movimentos sociais diversos e instituições culturais da classe trabalhadora sob uma organização comum e permanente; e proporcionaram programas nacionais abrangentes para unir esses movimentos sob uma única bandeira. Embora disputar eleições não seja a única ou mesmo a coisa mais importante que esses partidos fizeram, as campanhas eleitorais foram, como Chris Maisano observa, um meio essencial para apresentar “uma visão alternativa de governo para toda a sociedade [e um] desafio [para] a liderança política da classe dominante”.

Historicamente, a formação da [consciência de] classe surgiu como resultado dos esforços dos trabalhadores para construir suas próprias organizações, principalmente sindicatos e partidos políticos. Mas os sindicatos, embora essenciais para nossa causa, são inerentemente limitados em sua capacidade de unir as pessoas trabalhadoras como uma classe. Como os sindicatos dependem para sua sobrevivência da rentabilidade contínua dos empregadores, a liderança sindical enfrenta pressões estruturais para se comprometer com os empregadores e até mesmo suprimir a militância dos trabalhadores. Sem a estrutura institucional de um partido de trabalhadores facilitando a unidade da classe trabalhadora, os sindicatos são geralmente seccionais, lutando por um grupo de trabalhadores e não pela classe trabalhadora como um todo. No seu pior, alguns sindicatos têm promovido os interesses de seus próprios associados às custas de outros trabalhadores.

Os sindicatos também são limitados em sua capacidade de ganhar demandas do governo, e assim, em sua maioria, negociam diretamente com seus empregadores. Esta é uma das razões pelas quais os EUA são o único grande país onde o seguro saúde é baseado no emprego, e não é um direito social universal. Portanto, embora os sindicatos sejam essenciais, eles são insuficientes por si só para construir uma unidade duradoura da classe trabalhadora além das empresas individuais, indústrias ou localidades.

Mesmo com os mais fortes e progressistas sindicatos, a anarquia do capitalismo desorganiza constantemente os trabalhadores e decompõe sua solidariedade. Quando os fabricantes abandonam suas fábricas no Meio-Oeste tradicionalmente sindicalizado, eles expulsam comunidades inteiras do trabalho e matam os movimentos trabalhistas locais que foram construídos em torno desses empregos. Quando um desastre como o Furacão Katrina ou o coronavírus ataca, ele também desloca pessoas de empregos e comunidades para as quais elas talvez não retornem. Com tanto caos, a organização no local de trabalho ou mesmo a nível municipal é insuficiente para construir e manter as organizações e culturas de solidariedade necessárias para a ação coletiva. Esse caos é exacerbado por ideologias e práticas divisórias como o racismo, o sexismo e a xenofobia. Além disso, os trabalhadores são segregados por setor, emprego, educação e geografia em fragmentos raciais, nacionais e de gênero que são difíceis de unificar, organizando-se apenas no nível da empresa.

É por isso que os partidos de massa dos trabalhadores têm sido essenciais para o processo de formação da [consciência] de classes. O Partido Social Democrata (SPD) da Alemanha antes da Primeira Guerra Mundial fornece uma ilustração dramática deste processo. No seu auge, o SPD ajudou a forjar uma identidade coletiva da classe trabalhadora e um sentimento de solidariedade entre milhões de trabalhadores. Em conjunto com um forte movimento sindical e pluralidade no parlamento, construíram uma vasta rede de instituições em toda a sociedade, incluindo clubes educacionais, publicações políticas e teóricas, clubes esportivos, mercearias e teatros. A atividade dos partidos social-democratas de massa tem sido igualmente crucial para definir atitudes e atividades da classe trabalhadora em outros tempos e lugares. Ao contrário da visão determinista que vê a estrutura de classes levar automaticamente à formação de partidos, Chris Maisano escreve que “em grande medida foram os partidos que organizaram as classes, não o contrário”.

Além do SPD alemão, há uma variedade de exemplos de diferentes formas de partidos de trabalhadores, incluindo o Partido Bolchevique da Rússia, o Partido Socialista Americano do início do século XX, o Partido Comunista Americano dos anos 30, os Partidos Socialista e Comunista no Chile antes e durante a presidência de Allende, e o Partido de Esquerda Sueco, o Partido dos Trabalhadores (PT) e PSOL no Brasil e Podemos na Espanha de hoje. Cada um deles merece seu próprio estudo; há muito em cada exemplo a aprender, imitar e evitar.

Olhar para exemplos históricos de partidos e processos de formação de classe nos ajuda a ver porque a campanha Sanders 2020 foi um avanço tão grande para a esquerda. Na ausência de um partido de trabalhadores de massa, a campanha, no entanto, trouxe inúmeros trabalhadores para a luta com base em uma identidade de classe trabalhadora compartilhada. Especialmente importante é a forma como a campanha ajudou a superar a resignação de muitos trabalhadores ao status quo. Ao mobilizar milhões em torno de demandas como o Medicare for All e o perdão das dívidas, Sanders convenceu muitos de que um mundo melhor era possível – e que havia um movimento disposto a lutar por ele.

Mas a reflexão sobre o papel histórico dos partidos de trabalhadores também ilustra as limitações da campanha Sanders. Um problema é que a campanha, ao contrário de um partido, tinha um prazo de validade. Outra é que ela foi centrada em torno de uma figura singular, que em grande parte definiu a agenda da campanha de forma antidemocrática, de cima para baixo. E o eventual desmantelamento por Sanders da infra-estrutura de sua campanha e o endosso do candidato democrata corporativo racista equivalem a destruir grande parte da organização e do ímpeto que sua campanha havia construído.

CONSTRUINDO O PARTIDO
Que tipo de partido nós queremos?

Não cabe a nós ou a qualquer socialista pensar com antecedência nos detalhes de como funcionaria um partido de massa da classe trabalhadora. Para que tal partido fosse legítimo, precisaria ser formado democraticamente, com a participação de uma ampla gama de líderes da classe trabalhadora, em um processo que provavelmente seria confuso no início. Mas podemos identificar alguns critérios centrais para o tipo de partido que os socialistas democráticos devem trabalhar para construir.

Deve ser um partido de classe: de e para a classe trabalhadora e independente dos capitalistas, não um partido policlassistas ou “populista”. Deve visar ser um partido de massa, o que significa tanto que tem a participação e o apoio de centenas de milhares ou mesmo milhões de trabalhadores, como que é internamente democrático. Deveria ser um partido eleitoral, concorrendo em eleições para cargos em todos os níveis, em última instância em sua própria lista de votação. O partido deve igualmente ser um veículo permanente de luta de classes para além das eleições, coordenando e unificando as muitas tensões de luta dos trabalhadores em toda a sociedade, desde lutas no local de trabalho até greves de clima juvenil, passando por protestos contra a violência policial. Deve também realizar a educação política de seus membros, aumentando as fileiras dos quadros de ativistas permanentes que participam da organização e debate de partidos e movimentos sociais.

Para criar e manter o entusiasmo e a confiança das massas, os partidos de trabalhadores devem conquistar vitórias eleitorais. Uma vez no governo, os políticos podem ajudar os trabalhadores a travar uma guerra de classes dentro do Estado, lutando por e ganhando reformas que beneficiem os trabalhadores, ao mesmo tempo em que os fortalecem em suas lutas por toda a sociedade. Essas vitórias podem fazer avançar a capacidade e a confiança da classe trabalhadora para lutar por si mesma. Tal partido é diferente em espécie do pequeno e puramente eleitoral Partido Verde, ou qualquer número de pequenas seitas socialistas que se autodenominam partidos.

Também já deve ficar claro por que o Partido Democrata não pode cumprir as funções de um partido de trabalhadores. Não só é completamente antidemocrático, como é, fundamentalmente, um partido capitalista. Dado o superior poder financeiro e estrutural da classe capitalista, este partido geralmente prioriza os interesses do capital em detrimento dos trabalhadores. Um partido que inclua capitalistas simplesmente não pode realizar as tarefas que descrevemos, assim como um sindicato que inclua tanto trabalhadores quanto proprietários de empresas não poderia representar genuinamente os interesses dos trabalhadores. Desde que os trabalhadores se tornam parceiros juniores de seu inimigo mortal, um partido policlassista é, como escreveu Eugene Debs, uma “monstruosidade” como “o lobo e o cordeiro em abraço amoroso”.

As campanhas de Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez mostram o valor dos socialistas que concorrem nas listas do Partido Democrata no presente, por mais contraditórias que sejam. Mas os socialistas não devem tentar transformar o Partido Democrata, dominado pelos capitalistas, em um partido dos trabalhadores. Embora seja certamente possível mudar a liderança do partido ou a plataforma política para a esquerda, as tentativas de transformar completamente a composição de classes do Partido Democrata estão fadadas ao fracasso. Ao invés disso, a classe trabalhadora deve lutar por um partido próprio.

Passos imediatos
Não acreditamos que seja possível formar um partido dos trabalhadores imediatamente, e não achamos que votar em um candidato a presidente “de protesto” em 2020 faça avançar significativamente a luta de classes. Mas a construção de um partido político de classe trabalhadora deve ser o principal objetivo estratégico dos socialistas a médio prazo. A curto prazo, há três tipos de tarefas que podemos assumir para trabalhar em direção à meta de um partido.

Primeiro, devemos ajudar a reavivar um movimento sindical democrático, lutando com o movimento de trabalhadores que pode vencer. Os socialistas podem fazer isso através da busca da estratégia de organizar a base: tentar reconstruir a camada de organizadores de trabalho conscientes e comprometidos com a classe que tem sido essencial para difundir e dar direção à militância trabalhista. Recriar essa “minoria militante” e transformar o movimento sindical será crucial para inspirar os trabalhadores a lutar por si mesmos. Além do alvo principal – o patrão – será necessário que os trabalhadores sindicais superem o obstáculo de uma burocracia trabalhista que se resignou em grande parte e seus integrantes a táticas conciliatórias de negociação e a uma parceria sem saída com os democratas. De forma mais geral, os socialistas devem apoiar as lutas no local de trabalho através de ações de solidariedade, propaganda e ajuda aos trabalhadores a se organizarem através de projetos como o EWOC. Um movimento operário organizado, revitalizado e substancialmente maior servirá quase certamente como a base de massa de qualquer futuro partido de trabalhadores.

Em segundo lugar, é preciso que haja candidatos de classe, que serão efetivamente independentes do Partido Democrata, mesmo que usem sua legenda eleitoral por enquanto. Estas campanhas podem dar continuidade ao trabalho da campanha Sanders em elevar as expectativas dos trabalhadores e trazer cada vez mais trabalhadores para a luta. Eles também podem ajudar os socialistas a desenvolver as habilidades de organização e infra-estrutura que um partido independente da classe trabalhadora irá contar. Eleições orientadas ao movimento e à luta de classes em lugares como Nova York, Chicago e Austin construíram organizações locais e deram aos membros da DSA uma experiência de campanha crucial. Assim como Sanders, os candidatos devem se candidatar a programas abrangentes e simples de justiça racial, ambiental e econômica. Mais importante ainda, as campanhas precisam ser explícitas sobre a política de classe e a necessidade de organização independente. A realização dessas campanhas ajudará ainda mais na coesão dos vários movimentos da classe trabalhadora que a campanha Sanders começou a reunir.

Campanhas como estas poderiam lançar as bases para a criação do que Dustin Guastella e Jared Abbott chamam de “partido-substituto“, ou uma organização proto-partidária. Reunir os grupos que apoiaram a campanha Sanders para uma convenção ou série de reuniões pode ser um bom começo. Esses encontros poderiam incluir grupos como National Nurses United, Sunrise Movement e DSA em nível nacional, mas tais encontros poderiam acontecer também em nível local e estadual. As coalizões entre socialistas, sindicatos e organizações progressistas deveriam chegar a um acordo sobre uma plataforma compartilhada baseada [no programa de] Bernie, e pressionar políticos e grupos de esquerda a assinar. A adoção desta plataforma seria uma condição para receber um endosso destas coalizões pós-Sanders. Os candidatos endossados poderiam então contar com o apoio público, e talvez com o apoio organizacional e financeiro do proto-partido local.

Mas Guastella e Abbot estão errados em ser agnósticos sobre a questão de se devemos tentar realinhar o Partido Democrata. Alegam que ou o realinhamento do Partido Democrata ou uma “dirty break” seria um “resultado” da luta política, não necessariamente o resultado de uma estratégia consciente. Isso não reflete a experiência histórica, onde partidos formados por socialistas e movimentos de trabalhadores resultaram de anos ou décadas de planejamento e coordenação consciente. Para construir um partido dos trabalhadores até, digamos, 2030 – e acreditamos que tal partido seja um objetivo estratégico crucial para o movimento socialista – precisamos começar seriamente a lançar as bases agora. Advogar abertamente para tal partido, e explicar as limitações da tentativa de construir um através do Partido Democrata, é um elemento necessário desse trabalho de base.

Sempre que possível, devemos encorajar os candidatos a não se candidatarem como democratas, a fim de nos separarmos o máximo possível dos governantes do partido. Por exemplo, há um argumento para fazer isso na Califórnia, onde o acesso às urnas não é restrito pelas primárias dos partidos políticos. E porque na verdade queremos ganhar e colocar socialistas no cargo, em cidades e estados onde o acesso às urnas depende da vitória nas primárias de um grande partido, devemos permanecer abertos ao uso da legenda do Partido Democrata, por enquanto.

Finalmente, devemos continuar construindo o DSA. O DSA é o lar de um grande grupo de ativistas socialistas que, aprendendo e praticando política juntos, estão bem equipados para ajudar a revitalizar o movimento trabalhista e a realizar com sucesso campanhas eleitorais de luta de classes. O DSA tem sérias limitações, é claro. Sua estrutura descentralizada dificulta sua capacidade de executar campanhas em nível estadual ou nacional. Seus associados ainda são um grupo pequeno, e a maioria desses membros são pouco mais do que apoiadores formais. Demograficamente, o DSA não é representativo da classe trabalhadora norte-americana: seus membros são desproporcionalmente jovens, brancos e de colarinho branco. Os membros do DSA devem trabalhar para crescer e diversificar a organização e desenvolver estruturas para a tomada de decisões e coordenação que permitam campanhas nacionais e regionais eficazes. Nossa esperança é que o DSA possa ser um elemento importante na fundação de um futuro partido de trabalhadores de massa.

Marx acreditava que “a emancipação das classes trabalhadoras deve ser conquistada pelas próprias classes trabalhadoras”. Compartilhamos essa convicção e acreditamos que a classe trabalhadora precisa de um partido de massa próprio para poder lutar por si mesma. Os socialistas devem começar a ajudar a construir esse partido imediatamente.

Via The Call

[1] “Ruptura suja” é uma expressão dos socialistas norte-americanos para designar a tática de utilizar a legenda eleitoral do Partido Democrata para disputar eleições em prol da construção de uma alternativa independente.

[2] BLANC, Eric. “Red State Revolt: The teacher´s strike wave and working-class politics. New York, Verso Books, 2019.

[3] O “Comitê de Organização de Emergência de Locais de Trabalho”(EWOC) é um grupo de membros de sindicatos e organizadores trabalhando com o DSA e a United Electrical (UE) para ajudar trabalhadores a se organizar durante o momento de crise do coronavírus.

[4] Um caucus “satélite” é um tipo de primária partidária dos EUA na qual os votantes podem participar de forma remota.

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