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FONTE: Nueva Sociedad/Martin Baña | Junho de 2020 | Tradução: Charles Rosa

Ilyá Budraitskis é um dos jovens pensadores russos mais originais e sofisticados da atualidade. Vive em Moscou e combina sua profissão de historiador com o ativismo cultural e a militância política. É professor na Escola de Ciências Econômicas e Sociais de Moscou e no Instituto de Arte Contemporâneo, e editor de publicações como Moscow Art Magazine e LeftEast. É além disso um prolífico autor, ainda que grande parte de sua obra permanece desconhecida em espanhol. Escreve habitualmente para sites como Jacobin, OpenLeft e openDemocracy, onde reflete sobre a sociedade, a política e as derivas da arte contemporânea em seu país. Durante o Centenário da Revolução Russa publicou Dissidenty sredi dissidentov [Dissidentes entre dissidentes] [1], uma breve porém contundente coleção de ensaios nos quais investigou os efeitos do legado soviético sobre a política, a sociedade e a cultura russas da última década. Em 2013, editou, junto com Ekaterina Degot e Marta Dziewanska, Post-Post Soviet?: Art, Politics, and Society in Russia at the Turn of the Decade [Pós-pós soviético: Arte, política e sociedade na Rússia na mudança de década] [2] e em 2014, junto com Arseny Zhilyaev, Pedagogical Poem [Poema pedagógico] [3], texto onde apresentou os resultados de um projeto interdisciplinar que reuniu reflexões de pedagogos, historiadores e artistas em relação ao futuro dos museus. Em fevereiro último saiu seu último livro, Mir, kotory postroil Huntington i v kotorom zhiviom vse my. Paradoksy konservativnovo povorota v Rossii [O mundo que construiu Huntington e no qual vivemos. Paradoxos do giro conservador na Rússia] [4], onde analisa com grande clarividência os traços que definem o regime de Vladimir Putin desde a dupla perspectiva das conjunturas locais e as tendências globais.


Uma das questões centrais que aborda em seu último livro, O mundo que construiu Huntington e no qual vivemos, são os valores e a ideologia que estão por trás do sistema Putin. Como poderia defini-los?

Efetivamente, um dos argumentos centrais do livro é que o que define o núcleo do regime de Putin é o conservadorismo, esses são seus valores e essa é sua ideologia. Mas também é importante dizer, e é o que tentou demonstrar, que, embora este conservadorismo pode estar enraizado na tradição conservadora russa, está bastante mais relacionado com o conservadorismo global, com as tendências conservadoras de novo tipo que vemos atualmente surgir em todo o mundo. Desta maneira, para analisar a composição ideológica do regime devemos estar atentos, simultaneamente, a duas perspectivas: por um lado, à do conservadorismo russo, e pelo outro, à do conservadorismo global.

E como insere este conservadorismo no contexto ideológico russo atual?

Um elemento importante de qualquer estrutura ideológica conservadora é a brecha que existe entre o conservadorismo como uma filosofia política, digamos, e o conservadorismo como uma práxis política. Basicamente, se olhada a história global do conservadorismo, o que se deve observar é que sempre se apresenta como algo que não é consistente, como algo que muda, que está vinculado às conjunturas políticas. Deste modo, sempre há contradições entre os pensadores conservadores e a prática conservadora real dos regimes políticos. Isso se observa muito claramente para a situação russa. Por um lado, temos um regime que promove uma visão conservadora do Estado, da cidadania, que promove valores conservadores, etc e, ao mesmo tempo, observamos que o pensamento conservador na Rússia é marginal, que não é tão importante para o regime reproduzi-lo num sentido ideológico. Dentro deste marco, o caso de Alexander Duguin é muito sintomático porque ele é, desde minha ponta de vista, a figura mais interessante do pensamento conservador atual na Rússia, mas suas ideias não são bastante necessárias para o regime.

Se olhada a trajetória de seus últimos anos, pode-se ver que Duguin teve alguma esperança no regime. O ponto mais alto foi 2014, quando a Rússia anexou Crimeia e ele começou a crer que Putin é uma pessoa que pode desafiar a ordem neoliberal global desde um ponto de vista “conservador-radical”. Entretanto, sua posição atual é um pouco mais cética. Caso se olhem suas últimas conferências ou comentários, Duguin basicamente explica sua visão do regime e o chama “cesarismo”, ou seja, um mecanismo puramente estatal que é o neutro em relação de qualquer tipo de valores, e que não tem um desenvolvimento importante no sentido ideológico. Para ele, a maior contradição ainda ocorre entre dois campos ideológicos: o patriótico/conservador e o liberal. Ele acredita que sendo o Estado de Putin uma forma puramente vazia, o conflito real se dá desta maneira, entre esses dois grupos dentro da sociedade e da elite, e Duguin pretende ser o líder intelectual do campo patriótico/conservador. Isso significa que para ele a composição ideológica da elite dominante na Rússia ainda é uma composição dual: considera que há liberais que creem na comunidade global, no livre mercado, etc e que há um campo conservador que quer desafiar a ordem liberal global. O mesmo ocorre com a maioria dos pensadores conservadores, mas evidentemente não são tão importantes nem tão visíveis como Duguin.


Como por exemplo sucede com Eduard Limónov…

Exato. Sua posição foi sempre politicamente bastante impressionista, de modo que não podemos dizer que tenha sido uma pessoa conservadora ou de esquerda, mas desde há um tempo sua trajetória tomou a mesma via que a de Duguin, de modo que apoiou com força o governo de Putin no momento da anexação da Crimeia e o começo do conflito com a Ucrânia, mas agora está um pouco mais cético [5].

E o que sucede com o campo liberal?

Creio que os liberais são a mais importante e a mais influente corrente ideológica, não tanto na sociedade mas na imprensa, nas classes educadas, na oposição política, etc. Nesse sentido, são uma espécie de pivô, já que tanto os conservadores como a esquerda têm que lidar com esta situação e têm que discutir expor seus argumentos dentro de um debate que se estrutura a partir das ideias disseminadas pelo liberalismo. Ou seja, a esfera pública russa é ainda majoritariamente liberal.

E como se estrutura a dinâmica desses debates na atualidade?

Creio que por momentos há uma combinação de medidas neoliberais e de cultura política conservadora dentro do regime russo. A imprensa a favor do Kremlin e os propagandistas em geral defendem o regime desde um ponto de vista conservador, mas também usam uma racionalidade neoliberal para defender suas políticas sociais e econômicas, as quais são extremamente neoliberais. Por exemplo, a reforma previdenciária há dois anos foi defendida pela imprensa conservadora favorável a Putin com argumentos neoliberais. Então acredito que podemos falar de uma mistura. Ou seja, a crença na concorrência entre os indivíduos, a crença em desigualdades orgânicas, etc, mas também a existência de argumentos em favor de uma sociedade tradicional. Claro que este tipo de contradição é típica dos projetos neoconservadores desde o princípio. Por exemplo, do thatcherismo na Grã-Bretanha nos anos 80. Creio que aqui temos algo parecido porém, evidentemente, dentro do contexto particular russo. Para o caso russo devemos ter em conta também outra questão: os debates entre os políticos liberais e os conservadores. Isso é outra coisa, porque os políticos liberais aqui não somente creem na liberdade de mercado mas também na democracia liberal, e desde essa posição criticam o regime. Por um lado, para os conservadores o mais importante são os valores e veem os liberais como seus oponentes, já que são pessoas que creem no indivíduo, que creem em valores universais e que creem que o atraso russo deve ser resolvido por meio de alguma forma de integração ao Ocidente. Desta maneira, evidentemente, o campo conservador se define como antagonista do liberalismo. Mas, por outro lado, para os críticos conservadores, alguns puntos que são sustentados pela esquerda democrática aparecem também como valores liberais. Por exemplo, as posturas a favor do feminismo, a defesa dos direitos dos refugiados ou uma posição forte em relação à mudança climática, imediatamente são catalogadas como liberais. E esse é um problema para a esquerda democrática, já que ela trata de se distanciar de qualquer posição em favor do mercado, e nesse sentido se opõe ao campo liberal. Mas em questões culturais podem mesclar-se os papéis.

Neste marco que você descreve, como entendemos o caso do jornalista Iván Golunov, detido em junho de 2019 pela polícia com provas falsas, quando ia publicar um informe que comprometia os serviços de segurança? O que é o que o diferencia de outros casos de pressão política?

Creio que isso está relacionado com a pergunta anterior. O caso Golunov não esteve unicamente vinculado ao que poderíamos considerar um caso de pressão política sobre uma pessoa, mas bem a uma pressão sobre a imprensa em geral e sobre a imprensa liberal em particular. Golunov é um jornalista que trabalha em Meduza, que é um dos sites de notícias de internet mais importantes, e por isso a solidariedade com Golunov foi uma questão que não teve que ver tanto com uma reação política mas sobretudo com uma reação corporativa. É por isso que a imprensa, mais ou menos dominada pelos liberais, se viu absolutamente tocada por este caso, e seu levante em defesa de Golunov foi também por eles, porque ao mesmo tempo temos outros casos de perseguição política, como sucedeu por exemplo quando foram condenados os membros de um agrupamento chamado Set [Red]; e é um caso terrível porque eles foram torturados, foram fabricadas evidências, etc, e o resultado do juízo é realmente tremendo já que alguns foram condenados a 18 anos de prisão, mas ali não se viu o mesmo tipo de solidariedade ou a mesma reação imediata da imprensa liberal como o caso de Golumov [6]. Não quero dizer que não disseram nada a respeito, mas para eles se tratou de um assunto diferente: pessoas de uma cidade de província, anarquistas, com ideias “estranhas”, talvez com algum grau de militância, com o qual ao menos “havia algo”; com Golunov a situação era um pouco mais “clara” para eles.

Sabemos que as possibilidades de protesto e de manifestação na Rússia são bastante difíceis. Como podemos entender dentro deste marco o surgimento dos “piquetes solitários”?

Trata-se de uma escolha política muito pragmática. A liberdade de encontro aqui está muito regulada, é preciso pedir permissão, há poucos lugares na cidade onde é possível manifestar-se legalmente, etc. O piquete solitário é uma das maneiras que encontraram os ativistas para escapar desta situação, já que é legal e não há necessidade de pedir permissão. Entretanto, pode haver problemas: se alguém se coloca atrás de quem manifesta, então se podem considerá-la uma manifestação “massiva”, já que há duas pessoas protestando a menos de 50 metros entre si, com o qual é preciso ser muito cuidadoso em relação ao piquete solitário para não ser detido. Não obstante, é uma prática que está bastante difundida nas grandes cidades da Rússia porque se pode fazer em qualquer lugar, de imediato, etc. O maior problema é que se alguém é detido repetidamente por não cumprir com as normas que restringem os protestos, a detenção pode derivar num caso criminoso. Por exemplo, agora há dois casos que estão sendo investigados. De modo que se pode fazer, mas não muito seguido e não de maneira totalmente solitária. Deveria haver sempre outras pessoas próximas que estejam atentas e impeçam que se somem outras pessoas e que a polícia o confunda com uma mobilização.

Como podemos entender as mudanças no gabinete que Putin realizou em janeiro passado, que incluíram a renúncia de seu primeiro-ministro, Dmitry Medvédev, e o anúncio de mudanças na Constituição?

Creio que ainda não temos o quadro geral nem está claro o modo no qual se quer mudar a Constituição. Por exemplo, uma de suas maiores propostas foi a criação de um novo tempo, o Conselho de Estado, mas suas funções não estarão escritas na Constituição, mas numa lei especial que provavelmente será redigida e adotada muito mais tarde. O que está claro é que todas estas mudanças estão relacionadas com a reprodução deste regime para depois de 2024, quando Putin deveria terminar seu mandato, mas creio que isso não está de todo claro e não podemos prever o que sucederá. Em princípio, estaria de acordo com o ponto de vista que diz que estas mudanças são, pelo momento, um sinal para a elite de que Putin vai seguir estando presente. Mas que ainda não há pronto um plano de como vai estar. Creio que Putin começou um processo que provavelmente mostre que depois dele vão a seguir as mesmas ideias e o mesmo curso de governo. Vemos isso aqui: temos ministros que se convertem em assessores e assessores que se convertem em ministros.

Podemos dizer que a elite quer a continuidade Putin no poder?

A elite que está vinculada pessoalmente a Putin e que é dona das grandes corporações que gerem uma estrutura semi-estatal estão muito interessadas em algum tipo de estabilidade do regime e é por isso que estão de acordo com estes sinais.

Em seu livro anterior “Dissidentes entre dissidentes”você propõe uma análise do legado soviético na sociedade russa que se distancia das visões liberais, mas também dos nostálgicos da União Soviética. Nesse sentido, é interessante a crítica que ali realiza ao conceito de homo sovieticus…

A ideia de homo sovieticus é um pouco antiga, pode-se remontar inclusive a alguns dissidentes da época soviética. A ideia principal que está por trás desse conceito é que durante o regime soviético se construiu um novo tipo de ser humano, que inclusive sobreviveu à queda da URSS e é aquilo que impede que sejamos modernos, que façamos parte da realidade global, etc. Este conceito se tornou algo muito útil para explicar qualquer tipo de problema social ou econômico atual. Por que ainda temos corrupção? Porque temos o passado soviético, este homo sovieticus, que ainda não superado totalmente. Essa ideia esteve atrás da transição ao capitalismo na maioria dos países pós-soviéticos. O último exemplo foi a Ucrânia, onde o processo de “descomunização” esteve baseado nesta ideia. Deixar de lado estátuas, mudar nomes de ruas, destruir qualquer tipo de fenômeno relacionado com esse homo sovieticus. Há algo de momento exorcista nisso, quando se destroem os monumentos ou se mudam os nomes das ruas para deixar de lado o passado e fazer consistente o presente. Esta ideia está bastante difundida na oposição liberal na Rússia, que acredita que a verdadeira natureza do regime atual responde a algum tipo de legado soviético que não se superou e, basicamente, que sob o regime de Putin há um revival do soviético. Por sua vez, se converteu em algo bastante útil para o regime mesmo, porque desde o princípio tratou de estimular a nostalgia soviética já presente em parte da população. Mas esta integração de elementos do passado soviético foi desde o princípio somente simbólica, já que não há nada em comum com essa sociedade, no plano econômico ou inclusive na forma em que se organiza a elite política. Entretanto, esta falsa continuidade foi um elemento importante para a hegemonia ideológica do regime desde 2000 e inclusive agora os putinistas tratam de se mostrar como continuadores orgânicos do regime soviético. Mas é interessante que esta continuidade se apresenta de uma maneira muito conservadora: para que funcione esta reivindicação, não se pensa a geometria variável da época soviética como rutpura mas que, pelo contrário, deva ser integrada na longa história do Estado russo. Ou seja, a consigna é respeitar todas as épocas de nosso passado e todos os elementos de nossa tradição estatal. Sob a URSS, inclusive sob o império dos Romanov, se tratava da mesma Rússia. Tratam de apresentar a URSS como uma série de símbolos como uma forma estatal que deve ser respeitada, e se bem agora devemos entender que vivemos em outra situação e que alguns elementos da realidade mudaram, se trata do mesmo país. Para o governo, a transição de uma forma à outra é orgânica porque estaria enraizada em nossas tradições.

É interessante porque a elite russa atual é a mesma que desmantelou a URSS e agora chama à nostalgia…

Exato. Por exemplo, isso se vê bem no modo em que se comemoraram os 100 anos da Revolução Russa, com uma mensagem e um sentido extremadamente antirrevolucionários e anticomunistas. Mas ao mesmo tempo há um respeito por esta parte da história como uma “forma vazia”; por exemplo, se respeitam os monumentos de Lenin somente porque “é parte de nossa história”, como um legado. Mas não se tem um respeito por Lenin como personagem, já que ele é visto como um revolucionário sanguinário e um fanático que destruiu a continuidade estatal da Rússia.

Nesse sentido, como podemos entender a ativa política cultural de Vladimir Medinsky, ministro da Cultura de Putin desde 2012 até 2020?

É interessante porque apenas renunciou [7], Medinsky se converteu em assessor cultural e sobre temas históricos de Putin. Sua figura e suas políticas foram muito interessantes desde meu ponto de vista porque ele mesmo é um exemplo notável desta combinação entre racionalidade neoliberal e pensamento conservador. Por um lado, se trata de uma pessoa que defende a história russa como um todo orgânico, que defende os valores tradicionais, etc, mas ao mesmo tempo considera que a cultura deve ser algo rentável, algo que não deve dar deficit. Esta é uma ideia que está muito enraizada em sua concepção do qual deve ser a cultura popular: aquela adotada pelas massas, que além é rentável, por um lado, e pelo outro a cultura que confronta os valores tradicionais, experimental, “sexualmente pervertida” e que além é deficitária. Esta é a razão pela qual o Estado não deveria apoiar as experimentações culturais, já que não somente confrontam os “valores russos” mas que também são financeiramente arriscadas. Isso inclui museus, cinema, etc. Medinsky não está totalmente contra a arte contemporânea, mas o que está contra é do apoio estatal à arte contemporânea. Se há alguém que quer apoiá-lo, não há problema, é seu dinheiro e sua cultura. De alguma maneira, é um pragmático como Putin. É interessante, porque Medinsky vem do campo da publicidade. Escreveu um livro que vai desde Vladimir el Santo [8] a Vladimir Putin, e a ideia principal deste livro é que os 1000 anos de história russa são uma história de êxitos, de modo que todas as crenças tradicionais são boas em grande parte porque são efetivas, resultam, de modo que há um enfoque pragmático ali também. Isso é significativo porque uma vez o patriarca Kirill, máxima autoridade da Igreja ortodoxa russa, também disse que a decisão de tomar a cristandade ortodoxa foi a mais acertada porque foi efetiva, e sua efetividade se prova na continuidade das centenas de anos da história russa. De modo que a história e certo entendimento desta continuidade se integram dentro do pragmatismo da lógica neoliberal.

E como entendemos neste marco o auge de certas filosofias “alternativas”? Atualmente o Museu de Arte Moderna Garage está levando a cabo com grande êxito uma mostra sobre o esoterismo russa, e nos últimos anos teve uma revalorização do cosmismo [9]…

Pessoalmente não sou um grande fã do cosmismo, especialmente na maneira em que ele é apresentado atualmente, como por exemplo o fez Boris Groys na antologia de 2016 [10]. Creio que Groys é um pensador interessante, mas maneira em que apresenta o cosmismo dentro da arte contemporânea russa infelizmente leva a certo tipo de orientalização da Rússia, a certa filosofia “nacional” ou a certa maneira “russa” de entender a realidade. Creio que esse é o resultado de olhar o cosmismo além do contexto no qual surge, ou seja, a tradição intelectual russa do século XIX. Certos elementos desta tradição são tomados e apresentados como materiais frescos e novidadeiros e inseridos numa filosofia cool e creio que isso, de fato, debilita o real legado do cosmismo. Por óbvio que ainda hoje há grandes discussões sobre quem foram os verdadeiros cosmistas e que não na tradição russa, se falamos de Nikolay Fiódorov ou de uma tradição maior, mas creio que o cosmismo foi importante como parte de um pensamento utópico do movimento emancipatório russo, apesar do fato de que o próprio Fiódorov não era em si mesmo esquerdista, ao contrário, era monárquico. Mas evidentemente sua visão de alguma maneira foi muito importante para a geração posterior de revolucionários, como Alexander Bogdánov [11]. Creio que o interesse na tradição intelectual utópica e radical russa é muito importante em geral. Nesse sentido, creio também que é bastante positivo que Bogdánov tenha sido recentemente traduzido ao inglês, ainda que deve ser entendido dentro de seu contexto, não somente o russo mas o internacional, já que o pensamento russo do século XIX não estava isolado do mundo e absorveu o impacto da filosofia alemã, do idealismo, etc e, evidentemente, não se pode simplificar e confrontar o cosmismo com a tradição intelectual europeia, ao contrário.

Esta visão se confronta com aqueles discursos que destacam a presença de uma “alma russa” e que veem a Rússia como uma ilha, discurso do qual desprendem outras ideias, como a predisposição do povo russo aos poderes autoritários, mas que também é reapropriado atualmente pelo regime como parte da linha “antiocidental”, não é assim?

Evidentemente, a Rússia não é uma ilha, mas é muito importante destacar que este sentimento anti-ocidental não foi inventado por Putin, mas que está bem enraizado na tradição conservadora russa e está muito enraizado na tradição imperial do século XIX. Basicamente, grande parte do pensamento russo do século XIX e do XX esteve estimulado por esta ideia, por este desafio entre a ocidentalização e mercantilização da Rússia ou a necessidade de tomar um estilo de vida orgânico como oposição a isso. Isso foi descrito assim não somente pelos conservadores mas inclusive pelos socialistas, já que a Revolução Russa e a posição bolchevique estiveram baseadas na mistura de certo internacionalismo com a oposição ao desenvolvimento do capitalismo global. Creio que esta discussão está enraizada na tradição intelectual russa e é importante. Por isso estou em total desacordo com os liberais pró-ocidentais que se evadem destas discussões e dizem que a Rússia é um “país normal”, já que como você sabe temos nossos problemas, nossos assuntos que distam do que eles chamam um “país normal”. Mas ao mesmo tempo creio que as narrativas conservadoras em relação do caminho russo não ocidental devem ser criticadas fortemente no sentido dos direitos humanos ou das liberdades civis, porque uma coisa importante que dizem é que talvez estas liberdades civis, porque uma coisa importante que dizem é que talvez estas liberdades civis são parte da tradição europeia e nós vivemos em outra realidade, em outra tradição onde o povo tem um entendimento totalmente diferente da realidade. Isso não é verdade. Se alguém dirige o olhar para a tradição do movimento emancipatório russo durante os séculos passados, observará a forte influência que teve esta ideia de liberdade nele, de modo que a ideia ocidental de liberdade não foi totalmente irrelevante para o contexto russo.

  • 1- Svobodnoe marksistskoe izdatelstvo, Moscú, 2017.
  • 2. University of Chicago Press, Chicago, 2013.
  • 3. Marsilio Editori, Venecia, 2014.
  • 4. Izdatelstvo khizhnovo magazina «Tsiolkovsky», Moscú, 2020.
  • 5. Limónov morreu em 17 de março de 2020. Para uma versão parcialmente romanceada de sua vida, v. Emmanuel Carrère: Limónov, Anagrama, Barcelona, 2012.
  • 6. María R. Sahuquillo: «La justicia rusa condena a duras penas a un grupo antifascista por terrorismo» en El País, 10/2/2020.
  • 7. Renunciou em janeiro de 2020, junto com outros integrantes destacados do gabinete.
  • 8. Vladimiro I de Kiev (956 o 958-1015). Se converteu ao cristianismo em 988 e iniciou a cristianização da Rus de Kiev [N. del E.].
  • 9. Se trata de uma corrente filosófica que se desenvolveu entre os finais do século XIX e começo do século XX a partir das ideias de Nikolay Fiódorov, muitas delas compiladas em Filosofia da causa comum, publicada em 1906 depois da morte do autor. O cosmismo aspirava, entre outras coisas, a uma superação não só espiritual mas também material da morte e a ressaltar os efeitos dos fenômenos cósmicos na vida social. A aspiração última devia ser a construção do reino de Deus na terra.
  • 10. Russian Cosmism, e-flux, Nueva York, 2018.
  • 11. Médico e filósofo, Bogdánov (1873-1928) foi um destacado militante bolchevique cujas ideias sobre a cultura proletária inspiraram à organização cultural Proletkult durante os primeiros anos da Revolução Russa.

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