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Via LSR

A história da luta das mulheres na África austral é um tema que precisamos discutir mais para resgatar as lições e experiências dessas lutas. Foi o tema de uma das comissões da Universidade Marxista Virtual, evento realizado pela Alternativa Socialista Internacional (ASI) que aconteceu em julho deste ano. Aqui trazemos um relato desse debate que contou com marxistas do mundo inteiro, incluindo África do Sul, Nigéria e Brasil.

A introdução foi por pela Carmia, militante  do Partido de Trabalhadores e Socialistas (WASP, seção da ASI na África do Sul) e na ASI, um esforço de documentação da luta histórica das mulheres nesta área do mundo a partir de uma análise marxista. No debate, expôs também que o Congresso Nacional Africano (CNA) reivindica uma espécie de monopólio sobre a história da luta na África do Sul.

A libertação do apartheid não resolveu a questão da discriminação racista ou sexista. Afinal, sabemos como marxistas, que a luta para acabar com a opressão está necessariamente ligada à luta para acabar com o capitalismo. Da mesma forma, não se pode ignorar, ao olhar os processos históricos, o papel de setores oprimidos nas lutas democráticas e anticapitalistas. O período crucial da década de 1980 na África do Sul, por exemplo, não pode ser devidamente avaliado ou compreendido sem abordar o papel das mulheres na luta contra o governo enquanto lutavam por sua própria libertação como mulheres e também como trabalhadoras.

Mulheres como Ray Alexander, Emma Mashinini e Linda Komape não desempenharam um mero papel secundário na luta pela libertação, mas foram essenciais para estabelecer o crescimento e a sobrevivência das organizações de trabalhadores durante os retrocessos extremos. As mulheres tiveram um grande impacto nas lutas na África do Sul no século passado e a organização das mesmas desempenhou um grande papel em forjar a solidariedade entre as raças devido às experiências compartilhadas das mulheres sob uma sociedade extremamente patriarcal.

Historicamente, os efeitos do colonialismo, do capitalismo e do imperialismo resultaram em uma sociedade fortemente patriarcal e misógina. Isso é exemplificado por experiências de mulheres em todas as etnias, bem como pelas leis comuns e habituais que regem a África do Sul. Em ambos os sistemas, as mulheres eram consideradas menores legais. Embora o fim da escravidão do Cabo em 1838 tenha dado liberdade aos homens, as mulheres imediatamente adquiriram status de menor legal – ocupando o mesmo espaço que as crianças e sem direito ao trabalho ou autonomia corporal. A ideia de que as mulheres eram essencialmente de propriedade de seus maridos ou parentes do sexo masculino, sem direitos a terra ou a custódia de seus filhos, legitimava a violência contra as mulheres. Elas passaram da propriedade dos donos de escravos para a propriedade dos homens. Até seus contratos de trabalho eram ditados pela figura da autoridade masculina em suas vidas! Esse status legal inferior foi consagrado de diferentes formas nas diferentes leis, até 1984 para mulheres brancas e 1988 para mulheres negras.

As mulheres também foram excluídas da organização política formal, notadamente no CNA, mas é óbvio que sabemos que elas não eram apolíticas. Criaram seus próprios protestos e organizações. A primeira ação realmente notável foi a Campanha Anti-Passe de  1913, quando mulheres negras se organizaram contra os regulamentos oficiais que as forçavam a transportar documentação formal de emprego e restringir seu movimento.

Nessa campanha, mulheres negras urbanas se recusaram a levar seus passes, queimaram-nos nas ruas, e marcharam em protesto. Apesar das múltiplas prisões, isso desencadeou ações semelhantes em todo o país e outras mulheres começaram a marchar, queimar seus passes e se organizar para resistir e protestar. Essas lutas conseguiram forçar o governo a revogar algumas dessas restrições. Mais tarde, criaram também a Liga Feminina Bantu liderada pela doutora Charlotte Makgomo.

A busca para ter uma independência financeira dos maridos e parentes, além de sair de trabalhos abusivos com baixos salários na esfera doméstica, levou muitas mulheres a procurar alternativas onde podiam, como no setor informal. O caso mais famoso foi o processo de destilação e venda de álcool clandestinamente. Esse meio de independência social que trouxe empoderamento político para as mulheres ao longo de suas vidas era uma ameaça ao sistema que dependia fortemente da subserviência das mulheres aos homens. Logo o governo percebeu que poderia parar as aspirações das mulheres à independência financeira e ao empoderamento social, estabelecendo seus próprios locais de consumo municipal “legais” (cantinas). Eles colocaram regulamentos rigorosos sobre a fabricação caseira de cerveja. Isso foi seguido por batidas policiais onde casas foram invadidas e destruídas e mulheres foram assediadas sexualmente. Estas perderam seus rendimentos e seus maridos gastavam seus salários bebendo enquanto financiavam os lucros do estado repressivo – que cobrava 4-5 vezes mais caro do que elas. Tomando as coisas em suas próprias mãos, elas se juntaram à filial local do Sindicato dos Trabalhadores Industriais e Comerciais e resistiram. Mulheres militantes marcharam para as cidades, invadiram as cantinas e agrediram clientes masculinos. Isso resultou em algumas cidades emitindo licenças de fabricação de cerveja para mulheres, mas em grande parte as regulamentações e cantinas permaneceram.

As mulheres resistiram também na década de 1930. Preocupavam-se principalmente com questões sociais urgentes que afetavam toda a comunidade: aluguéis, custo de vida, discriminação no local de trabalho, passes e controles. Foi nesse período, que a Ray Alexander – ainda adolescente na época – organizou trabalhadores negros em sindicatos e politizou muitas mulheres, recrutando-as para sindicatos e para o Partido Comunista Sul-africano.

Em 1948, o Partido Nacional chegou ao poder e instituiu o sistema racializado do apartheid, que desencadeou outra onda de resistência. Em 1954 foi fundada a Federação de Mulheres Sul-Africanas que assumiu questões de concessão, igualdade salarial, aumento dos direitos de propriedade e igualdade racial. Pontuaram também o fato dessa ser uma luta de mulheres e homens.

Muitos outros movimentos de resistência ocorreram. A indignação com esses eventos levou a tumultos e o regime do apartheid declarou estado de emergência, banindo partidos proeminentes da oposição como o CNA e o PAC. A proibição da oposição política nos anos 60 teve um efeito severo sobre as organizações femininas estabelecidas, que perderam membros proeminentes para a prisão política e o exílio. No entanto, as questões que sustentam o espírito de resistência e raiva entre as mulheres não desapareceram.

Nesse período as lutas de trabalhadores influenciaram revoltas estudantis em massa, sendo a mais famosa a Revolta de Soweto em 1976. Muitas jovens se juntaram à luta armada. Mas as mulheres também eram tratadas como cidadãs de segunda classe nestes espaços. Foram forçadas a usar DIU, nos campos foram assediadas sexualmente, e se engravidavam eram banidas. Esses movimentos enfatizaram uma maneira etapista de lidar com a opressão – primeiro o fim do apartheid, depois a opressão das mulheres.

Entre 1979 e 1982, houve a legalização dos sindicatos negros e, como resultado, a sindicalização dos trabalhadores negros dobrou. Em 1987, o Congresso das Mulheres da Frente Democrática Unida (FDU) foi formado por todas as afiliadas femininas. Foi organizado em torno dos princípios da Carta da Liberdade e da Carta das Mulheres dos anos 50. Também teve como objetivo educar os homens na FDU em torno da opressão das mulheres.

Defender o sistema patriarcal era um grande elemento do Apartheid. Mulheres africanas, de cor e indígenas enfrentam a opressão racial sob o sistema, como os homens também. Mas também enfrentaram questões como agressão sexual e violência doméstica, desigualdade salárial, discriminação no local de trabalho, falta de acesso adequado à saúde e à educação.

As mulheres desempenharam um papel crucial nessa arena, foram essas “questões domésticas” que as politizaram e as trouxeram para o movimento da classe trabalhadora.

As lutas após o aprtheid também tiveram participação das mulheres organizadas, menos em torno de gênero e mais em torno de classe. Havia um reconhecimento da luta comum com os homens contra o colonialismo e o apartheid. Nas lutas das mulheres mais recentes, há uma tendência maior da influência de política de identidade que tem limites e paralisou o movimento de certa forma. Mesmo assim, foi um ponto importante de inflexão para geração de novas ativistas feministas.

Podemos extrair dos últimos anos mais exemplos das mulheres na frente das lutas. O movimento de paralisação total em 2015 com lutas de mineiros e estudantes teve forte participação de mulheres. Foi a experiência dessas lutas que levou as camadas mais avançadas a entender que a  tática de paralisar a economia era essencial na luta pela igualdade de gênero. Em 2018, o brutal assassinato de uma estudante em um contexto de mais de 50 feminicídios em um mês levou milhares de mulheres às ruas.

Na África do Sul, como no mundo inteiro, as mulheres foram a linha de frente na luta contra a Covid. Também as mulheres imigrantes são outro elemento importante no país. Essas lutas precisam ser unificadas contra os ataques do capitalismo. As mulheres hoje têm sido protagonistas em liderar as lutas contra o neoliberalismo ao redor do país. Nos embates, as mulheres têm liderado a luta das opressões impostas pela pandemia.

Precisamos tirar lições desses movimentos e dos exemplos inspiradores e heroicos das mulheres na África austral. Nossa luta tem que ser internacional para poder derrotar um capitalismo que nos leva cada vez mais próximo ao barbarismo. Só com a solidariedade de classe e o internacionalismo poderemos construir uma real alternativa socialista e acabar com a exploração e opressão de todos. 

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