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Imaginemos um dia em que as mulheres não vão ao supermercado, não vão trabalhar, não vão à escola, não vão à faculdade, não fazem tarefas domésticas, um dia de greve feminista Onze mulheres mortas em dois meses. A violência doméstica é o crime que mais mata em Portugal. Se há uns anos a violência doméstica era apenas problema de quem a sofria, por ser “doméstica”, hoje é um problema público, é um crime público porque as mulheres disseram “basta” e, ainda assim, continuamos a ser mortas. Só há pouco mais de dez anos foi descriminalizado o aborto em Portugal porque as mulheres disseram “basta” ao número de mulheres mortas em abortos clandestinos e à obrigação de carregar uma gravidez indesejada e de mudar o curso da sua vida, independentemente da sua vontade.

A ideia de que os problemas das mulheres são apenas isso, das mulheres, e que por isso pouco importam à sociedade é combatida diariamente por quem denuncia a desigualdade de gênero, a violência de gênero, pelo movimento feminista. Infelizmente, são precisos exemplos mártires para que se prove que os problemas das mulheres não são de somenos, não são secundários e, acima de tudo, não são “das mulheres”. São questões estruturais. Descartar a opressão de gênero como prioridade na luta por uma sociedade de iguais é, na prática, não lutar por uma sociedade de iguais.

A entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho não contrariou a tendência para que fossem elas a assegurar a sobrevivência dos seus familiares. Em Portugal, uma mulher que trabalhe a tempo inteiro dedica ainda, em média, cerca de 4h/dia a tarefas domésticas, de cuidado. São 12h de trabalho. Acrescentemos a isto que a precariedade laboral atinge sobretudo mulheres, que 87% das famílias monoparentais são mulheres sozinhas com os seus filhos. É inegável que a situação das mulheres hoje é melhor do que há um século atrás, mas é também inegável que o papel social da mulher não se alterou radicalmente e que continua a negar-nos a igualdade e a liberdade que reivindicamos.

A maioria de diplomados do Ensino Superior são mulheres. Porém, isto não se reflete nas carreiras docentes, nem nos cargos de gestão do Ensino Superior. Continua a haver uma assimetria de gênero quanto aos cursos escolhidos. Perguntei uma vez à minha avó que teve o privilégio de estudar na Faculdade de Letras, em Lisboa, nos anos 60, se não achava que a Alameda da Universidade deveria ter árvores. Respondeu-me que na altura as árvores dificultariam a vida à PIDE para controlar os estudantes, mas que também dificultariam a vida às estudantes que não raras vezes eram assediadas naquela zona e temiam pela sua vida.

Quantas de nós saímos das faculdades à noite, espreitando pelo ombro para nos certificarmos de que não somos seguidas? Quantas de nós pensam duas vezes naquilo que levam vestido se tiverem de ir à faculdade à noite? Quantas de nós pensam duas vezes antes de intervir em público, ou nas aulas, ou iniciam a sua intervenção desculpando-se pela mesma de forma inconsciente (“só uma nota rápida”, “não querendo alongar a discussão”)? Quantas de nós, quando saem à noite, tiram a matrícula do táxi, do Uber, ou do que for, se uma amiga for sozinha nesse carro?

Imaginemos um dia em que as mulheres não vão ao supermercado, não vão trabalhar, não vão à escola, não vão à faculdade, não fazem tarefas domésticas, um dia de greve feminista. Supermercados vazios, bocas por alimentar, jornais com páginas em branco, edifícios de escritórios sujos, mesas de centro comercial por levantar, auditórios e salas de aula quase vazios, doentes por tratar – prova de que a nossa sociedade não funciona sem opressão de gênero, sem condicionar mulheres a um papel social específico, prova de que os problemas das mulheres não são “das mulheres”. No estado espanhol, no ano passado, cinco milhões de mulheres saíram à rua e tudo parou durante umas horas. Não são poucas as razões para fazer greve. Dia 8 de março, fazemos greve e saímos à rua porque estamos fartas de carregar o mundo nas nossas costas.

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