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ARGELIA
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Na semana passada o continente africano foi sacudido por mobilizações extremamente massivas no Sudão e na Argélia, levando à deposição de presidentes há décadas no poder. Em ambos os casos, os protestos de centenas de milhares tinham presença marcadamente feminina, fato que, a despeito da já parca cobertura sobre o que ocorre em África, foi ainda menos noticiado.

Para além da evidente necessidade de nos conectarmos aos povos em luta por independência real, participação política e igualdade substantiva, por que deveríamos prestar mais atenção à luta das mulheres na Argélia?

A mobilização das mulheres no país mais extenso do continente africano não é raio em céu azul: elas sempre estiveram na vanguarda dos processos mais agudos de mobilização social. No entanto, chega a nós a caricatura (islamofóbica) de mulheres subordinadas, uma visão não apenas colonizada, mas também o discurso sobre as mulheres por parte daqueles que conseguiram sufocar as vozes públicas das mulheres ao sequestrar a heróica luta de argelinas e argelinos por autodeterminação.

Conhecer um pouco sobre a história dessas mulheres ajuda a entender que a ofensiva sobre os corpos femininos e a tentativa de silenciamento de suas vozes é indissociável de políticas autoritárias e colonalistas. Ou, dito de outra forma: a luta das mulheres para ocupar o espaço público e pelo direito de decidir sobre seus corpos é um poderoso vetor para a derrubada de regimes autoritários e colonialistas (o que também vale para nós no Brasil).

A Guerra por Independência

A Argélia, país da região do Magreb, norte da África, tem na base da sua população nativa o povo berbere, e se identifica culturalmente em sua maioria como árabe. Rica em petróleo e gás natural, desde a década de 1830 foi ocupada pela França, porém sempre com grande dificuldade de ocupação: foi somente no início do século XX, depois de grandes batalhas, que franceses conseguiram se estabelecer no país, principalmente pela ocupação das terras mais privilegiadas, através do assentamento de colonos .

Como em toda guerra, a colonização se fez por meio de amplo uso da força e violência: não se trata apenas do saque e da pilhagem de terras, dos assassinatos, da estigmatização, da tortura sistemática; para dominar o território o exército francês fazia amplo uso dos estupros como arma de guerra. Se Se argelinos eram considerados cidadãoes de segunda categoria, que sequer poderiam votar até 1947, as mulheres eram ainda mais desprezadas. Os colonos franceses impuseram grande resistência à extensão de direitos políticos aos argelinos nativos, passando a organizar grupos de extrema-direita. Por sua vez, a Frente de Libertação Nacional (FLN) se organizou por meio de ações de guerrilha pela independência.

Segundo a historiadora Claire Mauss-Copeauxi:

Em seus primórdios, a FLN, a Frente Nacional de Libertação, era composta inteiramente de homens, naturalmente machistas. Nenhuma mulher entre os fundadores, nenhuma mulher entre seus membros. Ninguém imaginou então que as mulheres pudessem se juntar à Frente.

São as duras condições da luta armada, a clandestinidade e a sobrevivência que obrigam os guerrilheiros a se refugiarem nas famílias, na cidade ou no campo. Nesse contexto, são as mulheres que os alimentam, os escondem, cuidam deles. São elas que carregam suas correspondências, suas armas.

Denunciadas ou caluniadas, obrigadas a se esconder ou simplesmente voluntárias, algumas se juntam a eles. Na guerrilha [maquis], a especialização das tarefas entre os homens e as poucas mulheres que estão lá é explicada pela falta de armas. Os guerrilheiros nem sempre tinham uma arma pessoal. Difícil, nestas condições, se não impossível para um guerreiro, um homem, um verdadeiro, confiar uma arma a uma mulher.

Se mesmo nas tarefas mais “masculinizadas”(bem entendido, aquelas em que há mais poder em jogo, como no manejo de armas), era possível encontrar mulheres em todas as frentes de batalha. As guerrilheiras eram especialmente visadas pela repressão: foram cerca de 11 mil combatentes mulheres vítimas da repressão colonial, de acordo com a pesquisadora Emilie Goudalii.

A luta das “maquisardes” (as guerrilheiras, também conhecidas pelo termo árabe “moudjahidate”) foi importante para o desenrolar da independência argelina, em especial as experiências levadas a cabo pelas mulheres no interior da organização, com a exigência de um programa para a nova sociedade que reconhecesse posições igualitárias. Também foram responsáveis por iniciativas como cursos voltados à alfabetização feminina, formação política, relações com as argelinas imigrantes na França e inclusive com intelectuais famosos (Sartre, Jeanson, Simone de Beauvoir, Helen Cuenat, André Masson e Jacques Lacan )iii.

A ascensão da FLN ao poder, frustrou as esperanças de mulheres que esperavam maior igualdade. Até mesmo a memória da Guerra pela Independência foi moldada conforme os interesses da nova burocracia, bem ao sabor do estalinismo. Se os novos estudos conduzidos por mulheres tem como mérito recontar a história das mulheres guerrilheiras no interior da FLN, ainda há pouco material que registra os movimentos espontâneos que ocorreram durante o mesmo período, que a historiografia oficial procura reunir sobre a tutela do regime hoje agonizante da FLN. É o que podemos ver do relato de Fatiha A., de um bairro popular de Argel:

“Foi através do boca-a-boca no bairro Clos Salembier que ouvi falar dos protestos e foi aqui que iniciei a revolução. No dia 10 de dezembro, dormimos fora. Havia mulheres desde o começo. Elas também carregavam comida e remédios até mesmo de Argel. […] Eu protestei pela independência e pela vida. […]. Nós tínhamos amigos franceses, mas vivíamos com muçulmanos. Eles – os franceses – tinham tudo. […]. Acredito no poder da independência para uma existência melhor.”

“Meu pai, nascido no Kasbah, estava envolvido na política. Meus pais nos contaram sobre suas experiências e meu pai se manteve informado pelo rádio. Nossa casa era um depósito de armas. Os vizinhos também permitem que seus filhos protestassem. Mesmo aqueles que não fizeram a revolução saíram em 11 de dezembro de 1960!

As ideias por independência não eram exclusividade das mulheres e homens que tomavam a decisão de partir pela lutra armada. Pelo contrário, faz parte do simbolismo carregado com orgulho pelo povo argelino, e especialmente pelas mulheres argelinas, que viam na promessa pela independência a possibilidade de uma vida mais autônoma. A historiadora Ouarda Ouanassa Tenghour destaca que o nacionalismo, após a tomada do poder, mandou as pessoas de volta para casa, em especial as mulheres. As promessas frustradas de maior liberdade e igualdade para as mulheres foram irromper novamente algumas décadas mais tarde.

A panela de pressão dos anos 1980: levantes juvenis e luta contra Código da Família

O papel de vanguarda das mulheres argelinas foi especialmente sensível nos anos 1980. Elas estavam à frente de diversas revoltas populares do período. As lutas por reconhecimento da cultura berbere em Cabília levaram a grandes mobilizações juvenis chamadas de Primavera Berbere em 1980, com grande levantes em que presos políticos foram torturados, levando a ocupações de universidades que ecoaram até o ano seguinte.

Em 1982 é a vez de estudantes do ensino médio tomarem as ruas: as condições de vida, especialmente habitação e saúde precárias nos bairros populares, que levaram à morte de uma menina por meningite, geraram protestos com ocupações de escolas e fortíssima repressão. Uma grande greve foi convocada no país, com as palavras de ordem “barkaouna mel villa’t ebniouna Batimat” e “mel barkaouna honda’t dirounna troliet”[“vilas não são suficientes, construam a nossa habitação social” e “Chega de Honda (símbolo de veículo da classe rica, nota), nós queremos ônibus de transporte públicos”.

Outras lutas nos anos seguintes, em defesa de condições de vida digna irromperam, num momento de forte desemprego. Em Argel, o estopim foram os recorrentes episódios de falta d’água, fortemente reprimidos pelo regime.

A partir de 1984 clãs defensores do projeto islâmico para o Estado argelino impõem a aprovação do Código da Família (apelidado de “Código da Infâmia”), um retrocesso para as mulheres argelinas, colocando-as explicitamente como cidadãs de segunda categoria dependentes de seus pais, maridos ou irmãos. O texto, baseado na Sharia institucionalizou a inferioridade da mulher em medidas como: a obrigação de toda mulher ter um tutor até casar; obediência da mulher a seu esposo; reconhecimento da poligamia; autorização parental exclusiva do pai, negada à mãe; impossibilidade de casamento entre muçulmanos e não-muçulmanos; desigualdade na herança para mulheres e homens.

Assim, nos anos de 1980 se conectam dois tipos principais de lutas em que as mulheres se destacam: a luta por melhores condições de vida, tipicamente lutas ligadas à reprodução da força de trabalho, se unem à lutas por direitos políticos iguais, suprimidos legalmente no Código da Família. Sobrevivem nos interstícios da história não oficial lutas parcamente documentadas, mas que compõem o orgulho pela tradição combativa da luta anticolonial da década de 1960, bem como das “primaveras juvenis” (primeiro a berbere nos anos 1980, e depois que culmina na chamada Primavera Negra em 1998, um novo levante berbere que levou a um massacre de centenas de pessoas).

As lutas de 2019: a independência das mulheres é parte da independência da Argélia


Mobilizações massivas tomaram as ruas de todo o país em 2019 contra o regime de Bouteflika e a cúpula militar, instaurado após a guerra civil dos anos 1990. A indignação com um presidente no poder há 20 anos tentando seu quinto mandato levou a protestos todas as sextas-feiras desde fevereiro. Uma destas mobilizações se deu justamento no 8 de março, quando, protestando contra o regime de Bouteflika, as mulheres argelinas também saíram as ruas em defesa da histórica pauta de revogação do Código da Família.

O que poderia ser um impulso ainda maior para ampliar a luta, incorporando as insatisfações das mulheres com o regime de Bouteflika, que manteve substancialmente inalterado o Código Familiar, se tornou um conflito dentro do movimento. Em muitas cidades, mulheres relataram acusações de estarem “dividindo o movimento”, interrupções de suas falas e mesmo agressões daqueles de quem esperavam reciprocidade no apoio às pautas.

Há um paralelo entre as tentativas de mudanças “até meio caminho” do sistema em relação ao corpo das mulheres. Bouteflika e a Junta Militar procuram entregar os anéis para manter os dedos, ou seja, no intuito de manter o regime, trataram de derrubar Bouteflika e falam em uma transição negociada para evitar mudanças mais profundas na sociedade. Em resposta a isso, mesmo sobre violenta repressão, centenas de milhares foram as ruas 12 de abril demandando uma Constituinte, uma mudança radical.

Nenhuma mudança radical é possível mantendo metade da população na condição de semi-cidadã. As mulheres também não estão dispostas a ficar no meio do caminho por sua libertação. Por esta razão estão na linha de frente contra os autocratas da FLN e da cúpula militar – são as mais afetadas pela deterioração das condições de vida, pela crise, pelo desemprego, e denunciam que a mudança do sistema sem a sua emancipação não é independência de verdade. Não é possível se libertar do jugo colonial colonizando seu próprio povo, suas próprias mulheres.

Há uma longa tradição de resistência e luta das mulheres argelinas que sustenta sua resoluta tomada das ruas. É nosso papel, como feministas, como internacionalistas, apoiar e difundir suas lutas.

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